Que era o imenso esforço exigido aos médicos através de horas extraordinárias que mantinha as urgências do SNS abertas, já se sabia. Mas a greve dos médicos às horas extraordinárias está a expor a real dimensão do problema. Cerca de metade das 80 urgências espalhadas pelo país estão atualmente desfalcadas, e este número só aumentará à medida que mais médicos atinjam as 150 horas extra obrigatórias por lei e apresentem as declarações de dispensa.
A situação é tão grave que a Direcção Executiva do SNS (DE-SNS), de forma a tentar minimizar o impacto, escreveu um plano de reorganização das urgências, que vai atualizar semanalmente. Admite, logo na primeira linha do documento, que o SNS “atravessa um período crítico da existência”, e, mais à frente, que existe uma “elevada dependência histórica” das horas extraordinárias para o funcionamento das urgências. Deixou de ser possível escondê-lo.
Os impactos da greve são mais visíveis nas urgências — onde as horas extra são pedidas muitas vezes em cima de turnos de 12 horas ou mais, um trabalho extenuante física e psicologicamente — mas não se resume aí. Segundo as contas dos sindicatos, 850.000 consultas são anualmente garantidas apenas graças às horas extraordinárias. E nos últimos anos a situação só piorou. Entre 2017 e 2021 o recurso a horas extras no SNS mais que duplicou, de 9,6 milhões para 21,9 milhões, um aumento médio de 3 milhões por ano. A tendência crescente acentuou-se com a pandemia, mas a principal razão continua a ser a sangria de profissionais de saúde do SNS.
O facto do governo não aumentar salários aos profissionais de saúde há mais de uma década — levando a uma perda de poder de compra de 20% — e de não contratar em quantidade suficiente de forma a garantir condições de trabalho dignas — pelo contrário recorrendo cada vez mais às horas extra — fez com que muitos médicos saíssem do SNS para o privado ou emigrassem. O número de médicos a reformar-se também quebra records todos os anos, aproximando-se perigosamente do número de novos médicos a formarem-se.
Não é de admirar portanto que quando a 24 de julho o Sindicato Independente dos Médicos (SIM - Independente) lançou a greve às horas extraordinárias acima das 150 horas obrigatórias a adesão tenha sido massiva. A Federação Nacional dos Médicos (FNAM - CGTP), sindicato maioritário dos médicos, já tinha começado uma campanha de entrega de declarações em maio, mas sentindo-se pressionada pelo SIM avança também com uma greve no início de Agosto. Provavelmente foi apanhada de surpresa pelo número de médicos que pediram excusa, mas já não havia como voltar atrás.
O governo faz-se de idiota e as burocracias sindicais continuam a agir como sempre
Escolhendo ignorar a realidade, o Ministro da Saúde diz que “o funcionamento em rede do SNS tem permitido atender as pessoas”. Milhões de pessoas sem médico de família, listas de espera de anos — e que não param de aumentar — para consultas, cirurgias e exames médicos, mães que não conseguem parir em segurança, mulheres que não têm acesso a aborto seguro, urgências fechadas ou com tempos de espera de várias horas, o que chega a resultar em mortes. É este o tipo de atendimento que defende Pizarro para o SNS!?
Evidentemente, procura a todo o custo esconder a culpa que tem na situação depois de ter arrastado as negociações com os médicos por um ano e meio. Fazendo-se de idiota, desde a demissão de Costa que está a “avaliar as condições” para negociar com os sindicatos. Pretende lavar as mãos e arrastar a situação por mais quatro meses até ao fim do mandato do governo demissionário.
A FNAM e o SIM juntaram-se para apresentar uma proposta conjunta ao governo, um passo importante de união — mas a que foram obrigados por pressão das bases. A proposta, de apenas 3 pontos, é no entanto claramente insuficiente e muito recuada. Não avança para o fim da obrigatoriedade das 150 horas extra, para a contratação dos milhares de médicos necessários ou de um aumento do investimento no SNS. Para além disso, continuam a convocar greves isoladamente, decididas de cima para baixo e de apenas um ou dois dias.
O Sindicato Nacional dos Enfermeiros (SNE - Independente) e o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor - UGT) também começaram campanhas às horas extraordinárias, o primeiro até 25 de novembro e o segundo até ao final do ano. Tal como aconteceu com a FNAM, o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP - CGTP) será pressionado a juntar-se.
O que todas estas direções sindicais tinham de fazer — especialmente partindo das da CGTP, que são as maioritárias — era juntar-se para organizar plenários conjuntos dos profissionais da saúde em cada lugar de trabalho para construírem uma enorme greve geral da saúde que obrigasse o governo a levá-los a sério. Pelo contrário, estão mais preocupados em garantir os seus lugarzinhos face aos outros sindicatos do que em defender de facto o SNS. Isso é também claro quando procuram em Marcelo, na DE-SNS e até na União Europeia algum tipo de apoio, quando quem tem o poder de e interesse em resolver a situação são os profissionais da saúde e toda a classe trabalhadora.
Não é de somenos importância que os sindicatos da CGTP andem a reboque de sindicatos mais pequenos em vez de serem eles a estarem na linha da frente das lutas. As suas direções burocráticas habituaram-se a décadas de concertação social, de greves de calendário e de desconfiança para com a classe trabalhadora. Recusam-se a atuar perante uma situação explosiva, avançando apenas quando obrigadas pela pressão das bases mais avançadas e de outros sindicatos. A longo prazo esta estratégia traz, por um lado, desgaste das direções e desmoralização de parte das bases, mas por outro uma oportunidade de construção de organizações mais combativas.
Para salvar o SNS, avançar para a greve geral da saúde!
São estas bases mais radicalizadas, constituídas em boa parte por jovens precarizados, que têm de ultrapassar a inação das direções e começar a construir comités de greve em cada hospital, centro de saúde, e restantes locais de trabalho, capazes de se coordenar para construir uma greve geral da saúde. Foi deste modo que os colegas da educação pública ultrapassaram os bloqueios das burocracias sindicais e trouxeram centenas de milhares de pessoas para as ruas em várias ocasiões.
Uma e outra vez médicos, enfermeiros e todos os profissionais da saúde mostraram estar dispostos a aumentar o nível de luta para salvar o SNS e garantir condições de trabalho dignas para todos eles, e de atendimento para os utentes. Para tal é imprescindível a sua união numa greve geral da saúde, construída a partir de baixo pelos comités, e avançando com um programa socialista.
Os míseros 3 pontos do acordo dos sindicatos dos médicos não vai salvar o SNS. Para tal, será preciso chocar com os interesses capitalistas: exigir a nacionalização sem indemnização dos privados da saúde, a contratação coletiva de todos os profissionais de saúde necessários, com condições e salários dignos e a nacionalização de toda a banca de forma a garantir os recursos para a execução destas medidas. Foi pondo em cheque estes interesses que a classe trabalhadora construiu o SNS há quase 50 anos, e só voltando a fazê-lo agora o poderá salvar.