Quem hoje olha para os parlamentares da esquerda na Assembleia da República, vê um conjunto de doutores, advogados, jornalistas, superiormente educados e completamente integrados no parlamentarismo, com uma ligação ténue à luta concreta e vivida pelas massas de trabalhadores em Portugal, plenos de respeito pela “instituição parlamentar” e o “regime democrático”.

Nem sempre foi assim. Quando a massa dos operários e demais trabalhadores invadiu o espaço da política, na Revolução de Abril, necessariamente a instituição parlamentar viu refletida na sua composição, o turbilhão político que varria Portugal. Américo Duarte, recentemente falecido, pode ser descrito como um deputado operário revolucionário na Constituinte.

A grande questão do PREC: Democracia Burguesa ou Revolução?

Com a desobediência em massa aos apelos do MFA para ficarem em casa, os trabalhadores, particularmente os operários das cinturas industriais de Lisboa e Setúbal, marcaram a entrada na cena política de centenas de milhares de explorados e oprimidos.

Num generalizado e furioso debate, os trabalhadores iniciaram o desmantelamento do Estado fascista e ensaiaram formas de construir uma nova sociedade a que, genericamente, chamavam socialismo.

Todas as instituições foram abaladas, incluindo os sindicatos e novas formas de organização surgiram, as Comissões de Trabalhadores e de Moradores, replicando instintivamente exemplos de outras revoluções, como a Revolução de Outubro e os seus sovietes.

Do saneamento de pides e bufos à organização contra a sabotagem patronal, as CT assumiram um papel crucial no processo revolucionário. Também as Comissões de Moradores, surgidas maioritariamente em bairros de barracas ou pobres, tomaram o destino nas suas mãos e procederam à ocupação de casas devolutas, organizaram creches, assumiram um papel ativo no dia-a-dia dos trabalhadores.

A ideia de uma Constituição não era, de forma nenhuma, central nas aspirações dos trabalhadores: queriam respostas concretas aos problemas da Paz — fim da guerra colonial —, Pão — direito ao trabalho —, Terra — face aos latifúndios, impor a Reforma Agrária e garantir a sobrevivência aos assalariados agrícolas — , Liberdade — direitos democráticos individuais e colectivos, incluindo direito à greve, à organização, à livre expressão, entre outros.

As eleições de 25 de Abril de 1975 e a Assembleia Constituinte

As eleições para a Assembleia Constituinte, que iria redigir a Constituição democrática, realizaram-se a 25 de abril de 1975 com a maioria participação de sempre.

A esquerda PS-PCP-MDP-UDP obteve 3.156.165 votos e a direita PSD-CDS 1.943.783. Mas o PS era já o ponta-de-lança da recuperação capitalista. Se a massa dos trabalhadores que votaram PS queriam o Socialismo, não seriam Soares e Companhia que iriam lutar por isso.

A Assembleia Constituinte (1975/1976) teve então como seus deputados várias operárias e operários, na maioria do PCP, alguns do PS e o deputado Américo Duarte da União Democrática Popular (UDP).

Embora, na generalidade, deputados operários do PCP, como Américo Leal, António Abalada, António Gervásio, Dias Lourenço, Dinis Miranda, Georgette Ferreira, Hermenegilda Pereira, Jaime Serra e mesmo Jerónimo de Sousa viessem da clandestinidade e tivessem travado duras batalhas de classe, a orientação era de participar no processo de construção duma democracia parlamentar burguesa. Isso decorria da linha política definida no VI Congresso do PCP (Kiev – 1965), ratificada no VII Congresso (extraordinário) em Novembro de 1974, em que se abdicou da luta pela revolução socialista.

Isso decorria da famigerada Teoria das Etapas, desenvolvida por Stalin no final dos anos 20 do século passado, fazendo uma recuperação das ideias dos Mencheviques que diziam que antes do socialismo era inevitável um período de democracia burguesa até, eventualmente, haver condições para o Socialismo.

Apesar de ser uma teoria completamente contrária à teoria e prática de Lenin e do Partido Bolchevique, a sua aplicação, ao subordinar os interesses dos trabalhadores aos interesses dos chamados “sectores democráticos e anti-monopolistas” das burguesias nacionais, levou à derrota de inúmeras revoluções como a Chinesa de 1925-27, a Indonésia de 1963-65, a Chilena de 1970-73 e a própria Revolução Portuguesa de 1974-75.

Na verdade, a UDP, que na altura se reivindicava maoísta, desenvolvia uma teoria semelhante, colocando como fase intermédia para o Socialismo uma nebulosa Democracia Popular.

Na Assembleia Constituinte enfrentavam-se interesses antagónicos de classe, o que se refletiu nos seus debates durante os turbulentos meses de Junho de 1975 até pouco depois do golpe reaccionário do 25 de Novembro na Assembleia Constituinte.

Quem era Américo Duarte?

Nascido em Outubro de 1942, Américo Duarte era operário e filho de operários. Começou a trabalhar aos 11 anos. Foi operário na Sorefame (empresa de metalurgia pesada construtora de comboios), foi mobilizado para a guerra colonial em Angola e ao regressar entrou para a Lisnave, como serralheiro de bordo.

A sua vida política iniciou-se bem cedo, ainda na Sorefame. Em contacto com um dirigente do PCP, torna-se simpatizante e distribui o Avante na empresa e na Escola Industrial e Comercial de Sintra, onde estudava. A sua consciência de classe leva-o a assumir responsabilidade por um incidente na fábrica porque o outro companheiro tinha filhos e ele estava quase a ir para a tropa. Suspenso, colocou a Sorefame em tribunal e, apesar dos conselhos para não se meter com a empresa, defendeu-se e ganhou.

Incorporado na recruta militar em Elvas, viu-se confrontado com a violência de um sargento, enfrentou-o e por consequência foi colocado em Queluz, como mecânico, ganhando o apelido do “Boxe”. Sabotou várias viaturas e “ganhou” uma comissão de serviço em Angola. Antes de partir, pediu ajuda ao PCP para desertar. Isso era contrário à linha do partido, o que o levou a afastar-se.

Ao regressar, em 1968, vai trabalhar para os Estaleiros Navais da Lisnave. Mergulha imediatamente na luta. Menos de um ano depois está na organização da primeira greve operária da Lisnave. Organiza-se, então, num dos muitos grupos maoístas que surgiram durante a década de 1960.

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Na manifestação dos operários da construção civil, em Novembro de 75, como deputado revolucionário, acompanhou a massa de trabalhadores, que virou as costas aos reformistas que queriam ir para o Ministério do Trabalho e que acabou por cercar o Parlamento.

Após o 25 de Abril, é eleito para a Comissão de Trabalhadores da Lisnave e fica com a responsabilidade da Comissão de Saneamento. Em Novembro de 1974 está na organização de uma grandiosa manifestação dos operários da Lisnave, que desafiando as orientações reformistas, invade as ruas de Lisboa.

Em Dezembro de 1974, numa fusão de grupos maoístas, é criada a UDP que concorre às eleições para a Constituinte. A UDP elege um deputado em Lisboa, o Dr. Pulido Valente. Mas acaba por ser Américo Duarte, com 33 anos, o segundo da lista a assumir o cargo, já que Pulido Valente foi sancionado pela direcção do partido por ter visitado um amigo de longa data, proprietário colonial em Angola.

Deputado Revolucionário

Foi o primeiro deputado a intervir na Constituinte e logo de uma forma contundente, exigindo que a Comissão de Verificação de Mandatos excluísse os eleitos que tivessem integrado a Assembleia Nacional fascista.

A sua intervenção expôs os limites da Constituinte e advogou a própria extinção da Assembleia, deixando expressa a dinâmica revolucionária, ancorada nas Comissões de Trabalhadores e Moradores, que se vivia nas fábricas, bairros, campos e escolas que ia muito além da democracia parlamentar burguesa.

Nas sessões, usava o período antes da ordem do dia, para advogar as lutas concretas que se travavam e denunciar os constantes travões que as forças reacionárias e reformistas procuravam impor à luta de classes.

Na manifestação dos operários da construção civil, em Novembro de 75, como deputado revolucionário, acompanhou a massa de trabalhadores, que virou as costas aos reformistas que queriam ir para o Ministério do Trabalho e que acabou por cercar o Parlamento.

Entretanto, um drama humano atinge Américo Duarte. Enquanto deputado, entregava o seu ordenado integralmente ao seu partido. Mas quando necessitou de 25.000$00 para tratamento de uma filha que tinha cancro, foi-lhe negado esse apoio, acabando a criança por falecer. Isto não seria a solidariedade operária que tão bem conhecia.

Quando se dá o golpe reacionário de 25 de Novembro de 1975, apesar da falta de orientação da UDP, participa ativamente na tentativa de resistência popular nas imediações do quartel da Polícia Militar, na Calçada da Ajuda.

A direção da UDP de então, centrista, tinha sérios defensores da luta de classes mas também integrava indivíduos como José Manuel Fernandes (Observador), Henrique Monteiro (Expresso), Manuel Falcão (hoje monárquico), pequeno-burgueses que, pese embora o radicalismo verbal, criavam obstáculos ao surgimento de uma política genuinamente revolucionária. Atualmente são porta-vozes das ideias mais reaccionárias no país. Mas, obviamente, Américo não se enquadrava nesse plano.

Pouco depois do 25 de Novembro, é substituído como deputado. Desiludido com a sua organização, voltou à Lisnave mas deixou a vida política partidária, nunca se demitindo de participar nas lutas da sua classe.

Contra ventos e marés, Américo Duarte foi, de facto, aquilo que os revolucionários devem ser num parlamento burguês: um porta-voz dos interesses e aspirações da classe, sem pactos nem mesuras. A anos-luz da prática dos actuais parlamentares de esquerda. Independentemente das diferenças ideológicas e programáticas que haviam entre os nossos pontos de vista, Américo Duarte deu o melhor de si para servir a causa da Revolução.

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