Passou um ano desde a vitória de Biden nas presidenciais. A sua campanha baseou-se na promessa de reverter as contra-reformas sociais e os ataques aos direitos democráticos feitos pela administração Trump, entre os quais está a histórica descida de impostos para os mais ricos. Cumpriu a promessa?

“Sou capitalista, se podes ganhar um milhão ou mil milhões de dólares, bom para ti”

Estas foram as palavras de Biden ao sair de uma recente reunião com os congressistas democratas. Toda uma declaração de princípios que condiciona a sua ação presidencial.

O certo é que a agenda política doméstica de Biden se apoia em dois elementos chave. O primeiro seria o plano de investimento em infraestruturas públicas, algo muito necessário à primeira vista, dada a situação em que se encontram muitas estradas, pontes, aeroportos e sistemas de água e eletricidade em todo o país, na sua maioria construídos na década de cinquenta ou antes, agora degradados ou em ruínas devido à falta de investimento das últimas décadas.

O congresso acaba de aprovar uma versão adoçada do plano original, que passou dos 2,6 biliões iniciais aos 1,2 biliões de dólares para os próximos dez anos, e dos quais apenas 550.000 milhões serão novo investimento, o resto já estava orçamentado anteriormente. As grandes empresas de construção e de transporte apoiaram entusiasticamente esta lei porque vão beneficiar da maior parte do dinheiro com contratos governamentais, subvenções e reduções de impostos.

O pacote económico inclui 110.000 milhões para estradas e pontes, 66 milhões para a ferrovia, 40.000 milhões para os transportes, 73.000 milhões para modernizar a rede elétrica e 55.000 milhões de dólares para renovar a rede de abastecimento de água. São quantidades consideráveis de dinheiro, mas insuficientes. De acordo com a Associação de Engenheiros Civis, os 300.000 dólares anuais do plano não chegariam, nem de longe, para cobrir os custos de manutenção da dita infraestrutura, muito menos para a reparação ou construção de novas.

De acordo com o relatório anual desta associação, 43% das estradas do país estão em estado “pobre ou medíocre”, as barragens e reservatórios têm uma média de 57 anos, e centenas de estradas rurais estão encerradas porque se encontram em ruínas. No estado de Michigan, um dos principais centros industriais do país, apenas um quarto das pontes se encontra em boas condições. Segundo contas oficiais, seriam precisos 786.000 milhões de dólares para reparar estradas e renovar pontes.

Ainda que alguns se tenham apressado a equipará-lo ao New Deal dos anos trinta, este plano de infraestrutura não tem nada de semelhante. Não só porque o contexto político, económico e social é completamente diferente, mas também porque o projeto de Biden é um conjunto de medidas dirigidas essencialmente a impedir que a China continue a “ganhar” ao capitalismo estado-unidense. A parte mais importante do plano constitui-se de subvenções públicas destinadas a melhorar a competitividade das empresas dos EUA e a manter a cadeia de abastecimentos que hoje, em grande parte, depende do gigante asiático.

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O plano de investimento em infraestruturas públicas de Biden é um conjunto de medidas dirigidas a impedir que a China continue a “ganhar” ao capitalismo estado-unidense.

Uma das partes mais importantes são os 120.000 milhões de dólares que se destinarão à investigação e desenvolvimento de tecnologias chave, que beneficiará os monopólios privados, já que os liberta da custosa tarefa de atribuir dinheiro à inovação e ao desenvolvimento, permitindo-lhes aproveitar-se dos resultados que obterão com o investimento público neste terreno.

A “expansão da infraestrutura humana”

O segundo elemento chave sobre o qual se apoia a agenda política doméstica de Biden é a política social e climática, englobada no projeto Build Back Better World (Reconstruir um mundo melhor), também denominada eufemisticamente “expansão da infraestrutura humana”. 

Inicialmente, o programa incluía o ensino pré-escolar universal, a utilização do poder de compra do Medicare para negociar diretamente com as farmacêuticas a redução do preço dos medicamentos, a inclusão da medicina dentária, da auditiva e da oftalmologia na saúde pública. Era um programa com aumento dos gastos em habitação, o aumento do orçamento destinado à luta contra a pobreza e à extensão da saúde pública àqueles que não têm seguro de saúde. Ambos os programas, infraestrutura e política social, seriam financiados pelo aumento dos impostos aos mais ricos e às grandes empresas — segundo a revista Forbes, anualmente, os 1% mais ricos dos Estados Unidos da América fogem dos impostos em 160.000 milhões de dólares.

Mas as promessas do investimento na agenda social passaram, em poucos meses, de 6 biliões a 1,75 biliões de dólares durante os próximos dez anos, uma quantidade realmente ridícula quando comparada com os mais de 8 biliões que se gastarão em defesa no mesmo período de tempo, ou com os 105.000 milhões de dólares que a Reserva Federal injeta mensalmente nos mercados financeiros.

Os laços diretos das grandes empresas com o establishment do Partido Democrata não são segredo nenhum, e nesta ocasião pudemos ver essa realidade sem nenhum tipo de dissimulação. Era previsível que estas propostas de Biden não teriam um único voto a favor dos republicanos, mas, neste caso, a oposição mais feroz também veio do campo democrata, dos senadores e congressistas mais à direita no partido.

Os democratas têm uma maioria muito justa em ambas as câmaras e por essa razão optaram por aprovar ambos os planos mediante o chamado “procedimento de reconciliação”, um método que permite aprovar o financiamento de qualquer lei com a maioria simples do senado e com o voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris. Tendo em conta que, no Senado, os democratas apenas têm mais um senador que os republicanos, não podem permitir nenhuma deserção das suas fileiras.

A oposição democrata aos planos de Biden é encabeçada pelos senadores Joe Manchin, da Virgínia Ocidental, e Krysten Sinema, do Arizona. O primeiro foi responsável por reverter todas as medidas relacionadas com a transição climática: o próprio Manchin ganhou 500.000 dólares no ano passado com a sua própria empresa de carvão. Já Sinema, antiga dirigente da Green Party com relações diretas com as empresas financeiras, opõe-se radicalmente ao aumento de impostos sobre os ricos e a qualquer medida que implique a redução dos preços dos medicamentos.

Em todo este processo tem sido visível a batalha feroz das grandes empresas que não estão dispostas a renunciar a um único dólar dos seus lucros gigantescos. Só o lobby farmacêutico dedicou 1.500 pessoas a fazer lobby junto aos senadores e congressistas e gastou milhões de dólares para evitar que se avançasse com qualquer medida que implicasse a redução dos preços dos medicamentos.

Num artigo intitulado Corruption, American style (Forbes, 22/01/2009), afirmava-se já que “o lobbying não se diferencia assim tanto da ‘corrupção do Terceiro Mundo’, onde o narcotráfico e outras atividades ilegais são uma parte integral da economia”. Em 2014, foram registados 11.800 grupos de lobby que, só nesse ano, gastaram coletivamente, em nome dos seus clientes, 3.400 milhões de dólares.

Segundo um estudo da Fundação Sunlight, uma organização destinada a defender a transparência dos governos, em 2010, as maiores empresas dos Estados Unidos da América desfrutaram de uma redução de impostos na ordem dos 11.000 milhões de dólares em relação ao ano de 2007. Também se destaca no estudo que o reembolso obtido por estas empresas pelo seu investimento em lobbies foi de 2.000%. (Lobby More, Pay Less, Sunlight Foundation. 16/04/2012)

O senador Bernie Sanders, numa entrevista ao programa This Week da ABC, explicou-o com clareza: “Não estamos a lidar com o senador Manchin ou a senadora Sinema. Estamos a lidar com toda a classe dominante deste país. As empresas farmacêuticas, as seguradoras de saúde, a indústria do combustível fóssil estão a gastar centenas e centenas de milhões de dólares para impedir que façamos o que quer a população americana. É realmente um teste para saber se a democracia dos Estados Unidos pode ou não funcionar.”

Os ricos estão muito tranquilos

O mais significativo dos planos de Joe Biden é a renúncia a um dos mantras da sua campanha eleitoral: Biden não subiu num único dólar os impostos sobre os mais ricos. Algo que serve para nos recordar de quem realmente manda nos Estados Unidos da América.

Mesmo que a maior parte seja dedicada à transição climática — 555.000 milhões de dólares —, ficaram de fora medidas como um imposto sobre a emissão de carbono ou multas às empresas poluentes. Mais de metade, 320.000 milhões de dólares, serão crédito para os fabricantes de veículos elétricos e empresas que produzem baterias para esses veículos. Outros 10.000 milhões vão ser destinados a subvenções diretas para os produtores de “baterias solares e outros materiais”, assim como para “estimular a competitividade das indústrias atuais como o aço, o cimento ou o alumínio”. Mais uma vez, trata-se de não ficar atrás dos seus concorrentes estrangeiros.

Na realidade, longe de ser uma legislação que reduzirá a pobreza e melhorará as condições de vida dos trabalhadores, a falsa agenda social de Biden molda-se aos interesses atuais da classe capitalista. De facto, os subsídios e ajudas que originalmente estavam incluídos na lei para ajudar os mais necessitados foram, na sua grande maioria, eliminados.

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Joe Biden renunciou um dos mantras da sua campanha eleitoral e não subiu num único dólar os impostos sobre os mais ricos. Algo que serve para nos recordar de quem realmente manda nos Estados Unidos da América.

Uma das consequências das más condições laborais e dos baixos salários foi que quase 4 milhões de trabalhadores se demitiram, o que representa 2,7% da força laboral e é o número mais alto desde 2000, ano em que se começaram a registar estes números. O motivo é que os salários são tão baixos que, para muitos trabalhadores, sobretudo mulheres, não compensa continuar a trabalhar. Os salários não bastam para pagar a creche dos filhos ou a deslocação para o trabalho.

É esta a razão pela qual se manteve até agora uma das poucas medidas sociais: a implementação da educação pré-escolar universal e gratuita para crianças dos 3 aos 4 anos de idade. Outras, como a licença parental remunerada de 12 semanas (que incluiria licença de maternidade), desapareceram das propostas porque, evidentemente, iriam contra o tão ansiado retorno ao mercado de trabalho. A inclusão dos cuidados de saúde dentária no Medicare vai ser limitada a um vale de 800 dólares, e tudo indica que a saúde ocular e auditiva não serão sequer incluídas.

Ao mesmo tempo que se conheciam os detalhes do plano, a revista Forbes noticiava que durante os primeiros 19 meses da pandemia, a riqueza dos milionários estado-unidenses tinha aumentado 2,1 biliões de dólares (mais de 70%), e que o número de multimilionários aumentou em 131, passando de 614 para 745. Ao mesmo tempo, milhões de trabalhadores sofriam com os estragos da crise económica, do desemprego e de uma pandemia que, só nos EUA, causou mais de 750.000 mortos.

No mesmo artigo, explica-se que os ricos não pagaram impostos por este grande aumento da sua riqueza. A maior parte das suas receitas vem do “aumento do valor dos seus investimentos em ações ou imóveis”. Em 2020, as cinquenta maiores empresas dos EUA pagaram zero dólares em impostos enquanto tiveram, no seu conjunto, lucros superiores a 40.000 milhões de dólares.

Derrota democrata na Virgínia

Neste contexto, no dia 2 de Novembro, os democratas sofreram a sua primeira derrota eleitoral na eleição do governador da Virgínia, apesar da participação na campanha de Obama, Kamala Harris e Biden. O estado era controlado pelos democratas nos últimos oito anos e, nas eleições presidenciais, Biden foi capaz de ficar 10 pontos acima de Trump. Onde os democratas mantiveram o controlo foi em Nova Jérsia, mas alcançando uma vitória muito apertada, apesar de Biden ter vencido por 15 pontos nas presidenciais. O fracasso do voto democrata é consequência da enorme abstenção nas zonas operárias de ambos os estados.

O apoio a Biden despenhou-se: em outubro era apenas 42%, o nível mais baixo de qualquer governo nesta fase da presidência. Segundo a última sondagem da NBC, apenas 18% dos eleitores apoia Biden totalmente, e 46% desaprova-o. Tudo isto a um ano das eleições intercalares, onde é mais do que possível que os democratas percam o controlo de ambas as câmaras.

Lamentavelmente, Sanders, Ocasio-Cortez e outros representantes da esquerda com capacidade de mobilizar a juventude e a classe trabalhadora para exigir uma política social que beneficie a maioria da população, deixaram-se arrastar pela obstrução parlamentar e pelas intrigas palacianas, e pelo caminho fizeram concessões constantes ao establishment democrata.

A onda de lutas operárias que percorrem o país nas últimas semanas também é um bom exemplo do desgaste do governo Biden. Cada vez são mais os jovens e os trabalhadores descontentes com o status quo, que compreendem o caráter capitalista do Partido Democrata e entendem a necessidade de criar um partido dos trabalhadores independente: as últimas sondagens demonstram que o apoio a um terceiro partido é de 60%.

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