Enquanto Biden e a CIA investigam se os OVNIs ou os balões, muito convenientemente avistados nas últimas semanas no céu estado-unidense, são de origem chinesa ou extraterrestre, em East Palestine (Ohio) vive-se um pesadelo. Um monstruoso comboio de mais de 150 vagões, várias dezenas dos quais continham matéria-prima para o fabrico de PVC, descarrilou a 3 de fevereiro. O risco de explosão obrigou à combustão controlada de todo esse material, gerando fosgénio gasoso no processo. Este componente é altamente tóxico e foi usado como arma química na Primeira Guerra Mundial.

A exposição intensa ao cocktail tóxico libertado pode causar vómitos, tonturas e problemas respiratórios. Isto a curto prazo, mas a longo prazo as consequências são temíveis: diversos tipos de cancro, destacando-se do fígado, do pulmão e leucemia. Embora as autoridades tenham decretado que a pequena cidade de East Palestine, localizada a cerca de dois quilómetros do local do acidente, é segura, os habitantes não confiam. Denunciam que o cheiro é insuportável, que o desastre ambiental já é irreparável e temem que infiltrações tóxicas contaminem a água que consomem.

A situação é tão tensa que os moradores realizaram uma assembleia comunitária, no dia 15 de fevereiro, exigindo informações da Norfolk Southern Corporation (NSC) — a empresa envolvida — e das autoridades locais. Mas, para indignação desta pequena cidade de 5.000 habitantes, a NSC recusou-se a participar na reunião, alegando que temia pela integridade física dos seus representantes. Claro, uma desculpa lamentável para não informar os afetados e, aliás, criminalizar as vítimas.

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A Norfolk Southern Corporation recusou-se a participar na reunião de 15 de fevereiro convocada pelos habitantes para exigir informações, alegando que temiam pela sua integridade física.

Uma catástrofe nada inesperada

O acidente de Ohio não é um caso isolado nem uma surpresa para os agentes envolvidos. Poucos dias depois, no Texas, ocorreu outro acidente ferroviário fatal para um camionista e, a 16 de fevereiro, outro em Detroit.

Mas não só isso. Em fevereiro de 2020, outro comboio que transportava crude descarrilou em Guernsey, Saskatchewan (Canadá) e explodiu. Apenas uma semana depois, outro comboio carregado com etanol descarrilou no Kentucky e pegou fogo. Nos últimos 5 anos, houve oito descarrilamentos de comboios em Pittsburgh. E as estatísticas oficiais mostram que há 1700 descarrilamentos de comboios anualmente!

A Railroad Workers United (RWU) tem vindo a denunciar estes problemas de segurança desde pelo menos 2014. Essa organização é a confederação que organiza unitariamente os ferroviários filiados nos 12 principais sindicatos nacionais, uma ferramenta para superar a divisão dos ferroviários de diferentes sindicatos que, mesmo trabalhando nas mesmas grandes empresas, são forçados a organizarem-se em diferentes sindicatos. E a sua importância foi fundamental para promover a greve que Biden proibiu em dezembro de 2022.

Como resultado da intensa campanha de denúncias públicas dos trabalhadores, o United States Government Accountability Office — órgão técnico-consultivo do Congresso — foi obrigado a documentar, num relatório de 2021, os riscos denunciados pelos trabalhadores. No entanto, o governo democrata dos EUA nada fez a esse respeito.

Um reflexo do colapso do capitalismo

A origem de todo estes desastres é a gestão capitalista do serviço ferroviário e da sua manutenção. E isto manifesta-se através de dois fatores específicos, ambos derivados da concentração monopolista do serviço ferroviário:

Em primeiro lugar, a deterioração crónica das infraestruturas norte-americanas que afeta pontes, autoestradas, infraestruturas ferroviárias e marítimas. Isto é abertamente reconhecido pelo establishment e está por trás de uma enorme campanha de investimento público, ao serviço de empresas privadas, no âmbito da guerra comercial com a China.

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A origem de todo este desastre é a gestão capitalista do serviço ferroviário e sua manutenção. Isto manifesta-se na deterioração crónica das infraestruturas em todos os Estados Unidos.

Em segundo lugar, em 2017, o plano estratégico Precision Scheduled Railroading foi implementado em larga escala. Este plano, lançado em resposta às reivindicações dos monopólios que controlam o setor, consiste em montar comboios o mais longos possível com o mínimo de tripulação indispensável. Estamos a referir-nos a comboios com centenas de vagões com tripulações que não chegam a 5 trabalhadores. Em 2022, os ferroviários lançaram uma campanha pela obrigatoriedade legal de incluir pelo menos dois trabalhadores na tripulação, pois é cada vez mais comum apenas o maquinista estar a bordo.

Mas as empresas querem ir muito além e, de fato, estão a explorar o próximo passo com experiências-piloto: comboios sem maquinista que incluem apenas um técnico de manutenção, graças à incorporação de sistemas de frenagem automática e Inteligência Artificial nos comboios. Os sindicatos, que não se opõem à incorporação dessa tecnologia como medida de segurança, exigem que a tripulação humana não seja substituída.

Como resultado desta política, a destruição de postos de trabalho no setor tem sido descomunal. Entre novembro de 2018 e dezembro de 2020, foram cortados 40.000 empregos e, atualmente, o número de trabalhadores atingiu um nível mínimo recorde. A consequência imediata é a intensificação da exploração do trabalho: os ferroviários denunciam que devem estar disponíveis 24 horas por dia, 7 dias por semana, que não têm baixa médica, não têm tempo para redistribuir as cargas entre os vagões para equilibrar a estabilidade dos comboios e que são pressionados a ignorar problemas críticos de manutenção e segurança. No outro extremo, os lucros e a distribuição de dividendos entre os investidores dispararam.

Os trabalhadores exigem a nacionalização do setor ferroviário

No seu congresso de outubro de 2022, o comité executivo da Railroad Workers United votou por unanimidade uma resolução a favor da nacionalização do setor ferroviário.

Esta declaração vem culminar um debate que os ferroviários iniciaram na sua conferência de 2012, e cujo encerramento reflete a enorme radicalização do setor nos últimos anos. Nesta declaração, os ferroviários expõem as razões para a medida, e os marxistas revolucionários não poderiam concordar mais com seus argumentos:

Denunciam que atualmente o transporte ferroviário é operado basicamente por três ou quatro empresas monopolistas que dividem as rotas. Com os ferroviários manietados pela famigerada Lei anti-greve do Trabalho Ferroviário (RLA) de 1926, a política empresarial do setor ferroviário responde apenas aos investidores e não há incentivo para investir em infraestrutura, segurança e melhoria das condições de trabalho dos funcionários. Por outro lado, a propriedade pública do setor permitiria reinvestir os lucros na prestação de um serviço melhor, mais seguro e com melhores condições de trabalho.

Também argumentam que é uma necessidade responder às mudanças climáticas. Atualmente o peso do transporte de cargas por via rodoviária, muito mais poluente, é muito superior ao ferroviário. Mas a eletrificação dos comboios é muito insuficiente, havendo uma enorme dependência dos motores a gasóleo. A propriedade pública do setor, insistem, abriria a possibilidade de estender uma rede maior e mais verde.

A proposta de nacionalização está a ganhar popularidade renovada. Embora a grande comunicação social tente silenciar o debate, ele começa a infiltrar-se em artigos e revistas de circulação nacional. Aliás, está a adquirir tamanha relevância que os grandes poderes contrários à nacionalização já lançaram uma campanha feroz para difamar o que é público. A cartada da confusão está a ser jogada igualmente a partir de posições supostamente progressistas: aprovar leis para controlar o monopólio por meio da "nacionalização".

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A Railroad Workers United prepara uma campanha de comícios em todo o país para defender a nacionalização do setor ferroviário e conquistar a opinião pública.

Mas uma reportagem recente intitulada A Questão da Nacionalização dos Caminhos-de-Ferro na revista In These Times ilustra muito bem a resistência dos trabalhadores a serem enganados. Nela pode-se ler as declarações de um maquinista:

“Quando falamos em nacionalização, as pessoas podem pensar que estamos a falar em tirar o controlo de uma indústria das mãos das corporações e entregá-lo ao mesmo governo que toma todo tipo de decisões com base nos lucros […]. Nós estamos a lutar é pela nacionalização democrática”.

A mensagem é clara. Nas suas próprias palavras, o que os ferroviários estão a trazer para o debate público é a nacionalização sob controlo operário de um setor estratégico. O potencial revolucionário das perguntas e respostas que o movimento está a fazer também se reflete no artigo da In These Times: “No entanto, regulamentar simplesmente o seguro saúde — seja o Obamacare ou o que quer que se tenha — não é uma solução real. Precisamos de um Sistema de Saúde Pública. E acho que o mesmo é válido para o setor ferroviário, disse outro trabalhador consultado na reportagem.

Um novo marco para um programa de independência de classe

No entanto, aos trabalhadores não faltam péssimos companheiros de viagem. Muito ilustrativas são as palavras de Jeremi R. Ferguson, líder do maior sindicato ferroviário — que reúne 28.000 trabalhadores —, em relação à proibição da greve ferroviária e à imposição de um acordo pelo Congresso:

“Ele [Biden] fez a coisa certa [proibiu a greve] com base nas cartas que tinha na mão. Ninguém põe na cabeça que nenhum partido político nos deixaria fazer uma greve geral, afundando a economia antes do Natal. […] Impor o acordo foi a melhor opção para o presidente e o Congresso. […] Não culpo Biden. Ele colocou o país em primeiro lugar, ele colocou a economia em primeiro lugar."

Agora, com a greve pelo acordo coletivo ilegalizada de facto até 2025 — quando se reabre o período de negociações — a RWU prepara uma campanha de comícios por todo o país para defender a nacionalização do setor ferroviário e conquistar a opinião pública. Este é o caminho correto. Em todo o caso, estes acontecimentos reiteram, uma vez mais, a necessidade dos sindicalistas e ativistas da esquerda militante que impulsionam a luta social nos Estados Unidos a organizarem-se num partido que se baseie numa estratégia socialista de independência de classe.

Pela nacionalização do setor ferroviário!

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