Há dois anos, o Sri Lanka, um país de 22 milhões de habitantes que raramente aparece nas primeiras páginas da imprensa internacional, tornou-se um exemplo de revolução. Após 50 dias de mobilizações de massas e várias greves gerais, a insurreição da juventude, da classe trabalhadora e do campesinato pobre derrubou o odiado governo da corrupta família Rajapaksa.

Nem a selvagem repressão militar e policial, que deixou dezenas de mortos e centenas de feridos, nem os ataques de grupos fascistas organizados pelo Estado conseguiram travar o movimento de massas. Após décadas de corrupção e parasitismo da oligarquia, de pilhagem das multinacionais, dos bancos e dos fundos de investimento imperialistas que levaram o país à falência, a ânsia de mudança revolucionária era tão forte que Gotabaya Rajapaksa e o seu irmão Mahinda, o primeiro-ministro, tiveram de fugir do país.

Apenas a ausência de um programa socialista e de um plano de ação da esquerda e dos sindicatos impediu os trabalhadores de tomarem o poder efetivo. E isso permitiu que a classe dominante recuperasse esforços para aplicar a mesma estratégia que noutros países: mudar as caras do governo para que o fundamental permaneça na mesma.

A família Rajapaksa foi substituída por Ranil Wickremesinghe, um veterano político burguês historicamente ligado ao imperialismo norte-americano, pertencente a outra das famílias oligárquicas que dominam o país desde a independência em 1949, e que já tinha sido primeiro-ministro cinco vezes. As eleições de 21 de setembro de 2024 destinavam-se a legitimar esta mudança de fachada e a estabilizar o país. Mas o resultado foi exatamente o oposto.

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Há dois anos, o Sri Lanka, um país com 22 milhões de habitantes, tornou-se um exemplo de revolução. Apenas a ausência de um programa socialista e de um plano de ação da esquerda e dos sindicatos impediu os trabalhadores de tomarem o poder efetivo.

O movimento de massas destrói o plano do regime

Os candidatos mais diretamente ligados aos grandes partidos burgueses que governam o país há décadas foram varridos do mapa. O presidente Wickremesinghe, apesar de contar com a máquina governamental e o apoio inicial de setores decisivos da classe dominante e do imperialismo, não conseguiu obter mais de 17% dos votos, ficando em terceiro lugar. Namal Rajapaksa, representante do clã expulso do governo pela insurreição popular, obteve uns patéticos 2,5%.

Com uma taxa de participação muito elevada, de 79,46%, o grande vencedor e novo presidente é Anura Kumara Dissanayake, líder do JVP, um partido de origem estalinista que liderou várias revoltas guerrilheiras nas décadas de 1970 e 1980. Liderando a coligação de esquerda, National People's Power (NNP), Dissanayake obteve 5.740.179 votos na segunda volta, 55,89%, derrotando Sajith Premadasa, um político burguês que liderou a oposição parlamentar a Rajapaksa de 2019 a 2022, e que obteve 4.530.902, 44,11%.

O candidato derrotado foi a aposta in extremis da oligarquia, da qual tentou criar uma imagem "progressista" e "crítica", forjando uma ampla coligação em torno do seu partido (uma cisão de um dos partidos burgueses tradicionais desacreditados) com sociais-democratas, representantes das minorias tamil e muçulmana, e até alguns sindicatos.

Mas milhões de jovens, trabalhadores e camponeses (pelo menos no sul, no centro e no oeste do país, onde predomina a etnia cingalesa) viram em Dissanayake o único candidato capaz de derrotar os partidos do sistema.

Esmagada pelo peso de uma dívida que atingiu 83 mil milhões de dólares, a economia do Sri Lanka caiu 12% em 2022, agravando uma situação desesperante. No final de 2023, de acordo com o Banco Mundial, 25,9% da população — entre cinco e seis milhões de pessoas — vivia abaixo do limiar da pobreza. Outras fontes apontam para 50%.

O Sri Lanka ocupa o segundo lugar no mundo em matéria de subnutrição infantil, com 410.000 crianças subnutridas. Desde 2019, de acordo com um estudo de LIRNEasia, quase metade da população alterou os seus hábitos de consumo, cortando nos alimentos para satisfazer outras necessidades. Mais de 50% não têm poupanças e 6% dos agregados familiares deixaram de enviar os seus filhos para a escola.

Em 2023, a entrada de capitais, nomeadamente da China, o primeiro país a conceder empréstimos e a anunciar investimentos após o incumprimento temporário da dívida externa decretado pelo governo do Sri Lanka, impediu o colapso total. Mesmo assim, o PIB registou uma queda de 2,3%.

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O Sri Lanka ocupa o segundo lugar no mundo em matéria de subnutrição infantil, com 410.000 crianças subnutridas. Desde 2019, quase metade da população alterou os seus hábitos de consumo, cortando nos alimentos para satisfazer outras necessidades.

As contradições do JVP e a questão Tamil

A primeira ação de Dissanayake como presidente foi dissolver o parlamento, dominado por partidos de direita, e convocar eleições legislativas em busca de uma maioria parlamentar. De notar que, embora o líder do JVP tenha sido apresentado como "marxista-leninista" na imprensa internacional, a sua atitude tem sido muito cautelosa, limitando-se a prometer a luta contra a corrupção e a pobreza, mas mantendo-se fiel à renegociação do acordo do anterior governo com o FMI.

As imagens de manifestantes a celebrar a sua vitória com bandeiras vermelhas e retratos de Marx e Lenine são enganadoras. O programa e o historial de Dissanayake e do seu partido não refletem as ideias do socialismo científico.

O JVP renunciou à política e aos métodos comunistas há décadas. Não põe em causa a propriedade dos grandes capitalistas e latifundiários, nem mesmo o pagamento da dívida aos grandes bancos. A sua tática nas últimas décadas tem sido a de procurar pactos com diferentes setores da oligarquia. Em 2004-2005, Dissanayake foi ministro da Agricultura num governo capitalista. Durante a insurreição de 2022, ele e o seu partido desapareceram e, após a sua vitória eleitoral, quer convocar os partidos burgueses para um grande acordo nacional.

Mas onde a sua posição se afasta mais das ideias de Lenine e Marx é na questão nacional. A opressão da minoria tamil, que representa 15% a 18% da população, pela maioria cingalesa, 80%, e que é um legado direto do Império Britânico, levou a uma guerra civil entre 1983 e 2009 que resultou em milhares de mortes e centenas de milhares de pessoas deslocadas.

Após a independência, a burguesia cingalesa desencadeou uma onda de chauvinismo, impondo a religião budista e a língua cingalesa, marginalizando os tamil, maioritariamente hindus mas também muçulmanos, e levando a cabo pogroms sangrentos contra eles.

Para obter o apoio das massas, uma parte da burguesia cingalesa chegou mesmo a efetuar algumas nacionalizações, e combinou o seu discurso chauvinista com uma demagogia pseudo-socialista. De facto, após décadas de capitalismo selvagem, o nome oficial do país continua a ser República Socialista Democrática do Sri Lanka.

A maior parte da esquerda cingalesa, com raízes estalinistas e maoístas, em vez de defender o direito dos tamil à sua língua, religião e cultura, e à sua autodeterminação, juntou-se à onda chauvinista. O JVP, fazendo do nacionalismo cingalês a sua bandeira, participou diretamente na repressão contra os tamil, que reagiram proclamando um Estado independente liderado por outra guerrilha de origem estalinista: os Tigres Tamil.

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O JVP renunciou à política comunista há décadas. Não põe em causa a propriedade dos grandes capitalistas, nem o pagamento da dívida aos grandes bancos. As imagens dos manifestantes a celebrar a sua vitória com retratos de Marx e Lenine são enganadoras.

Este Estado chegou a cobrir um terço do território do norte do país. Mas os métodos dos Tigres, que combinavam a resistência da guerrilha com ataques à população cingalesa e alianças com setores reacionários da direita ultranacionalista, enfraqueceram o seu apoio entre os próprios Tamil. Os últimos focos guerrilheiros tamil foram esmagados em 2009.

A burguesia cingalesa tomou como resolvido o problema com a sua vitória militar e algumas concessões muito limitadas sobre a questão linguística e religiosa, mas a negação do direito à autodeterminação e de outros direitos democráticos nacionais continuou a alimentar o conflito.

Num contexto de profunda crise económica e de manobras pelo poder por parte de diferentes setores da oligarquia e das potências imperialistas regionais que tradicionalmente intervêm no Sri Lanka para aumentar o seu controlo, a situação pode voltar a explodir a qualquer momento.

Enquanto o apoio a Dissanayake nas zonas de maioria cingalesa ultrapassava os 60% e atingia os 70% nas zonas trabalhadoras e camponesas, no nordeste tamil e muçulmano era inferior a 20%, e nos distritos do norte que eram bastiões dos Tigres Tamil não chegava aos 10%. Nestas zonas, os partidos burgueses mobilizaram o medo do nacionalismo cingalês do JVP, conseguindo um apoio de 60%.

O Sri Lanka na luta inter-imperialista

A posição estratégica do Sri Lanka nas rotas marítimas comerciais e militares do Oceano Índico faz com que potências regionais como a Índia e o Paquistão e os blocos imperialistas liderados pelos EUA e pela China tenham interesses no país.

Embora Dissanayake se tenha mostrado disposto a negociar com todos, a sua vitória representa mais um avanço da China, cujo peso económico e político na ilha continua a aumentar, em detrimento dos EUA, que também vêem os seus peões serem afastados do governo.

Tudo indica que os acordos com Pequim serão reforçados. E não apenas porque Dissanayake e o JVP assim o desejam mas porque, objetivamente, o investimento chinês é o que tem impedido o colapso total do Sri Lanka.

Quando o Sri Lanka entrou em falência, os meios de comunicação social estadunidenses e europeus lançaram uma campanha mediática brutal, retratando-o como o primeiro default causado pela pressão chinesa. Na realidade, o gigante asiático detinha 10% da dívida e 81% da dívida acumulada era a bancos e fundos especulativos dos EUA e do Ocidente. De facto, foram estes últimos, através do FMI, que impuseram as condições draconianas que aceleraram o colapso económico.

Um cenário tempestuoso de luta de classes

Uma parte da classe dominante do Sri Lanka viu nos investimentos chineses em portos e infra-estruturas uma oportunidade de beneficiar do boom logístico e quer reforçar essas relações. Conscientes do risco de afastar completamente a Índia, também fecharam alguns acordos com Nova Deli. As empresas estadunidenses ainda tentam entrar na corrida mas chegaram tarde e perderam terreno considerável.

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A história do Sri Lanka está repleta de lutas guerrilheiras, greves gerais e insurreições, e estas tradições revolucionárias voltarão a surgir. Dissanayake terá de escolher entre apoiar as exigências do povo ou apoiar os imperialistas e o FMI.

A tentativa de Dissanayake de responder à pressão das massas sem tocar nos bancos, na terra e nos grandes monopólios, e mantendo a sua posição chauvinista sobre a questão tamil, só pode provocar novas crises e confrontos.

A história do Sri Lanka está repleta de lutas guerrilheiras, greves gerais e insurreições, e estas tradições revolucionárias e de classe, tal como em 2022, voltarão a emergir. Num contexto em que a consciência anticapitalista de milhões de pessoas está a avançar rapidamente, Dissanayake terá de fazer uma escolha: ou atender às exigências do povo, ou destruir as suas esperanças e vergar-se aos interesses dos imperialistas e do FMI. Não há meio-termo. E essa contradição continuará a alimentar a luta de classes até à vitória final.

Artigo publicado originalmente a 1 de outubro de 2024.

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