"A humanidade chacinada em rituais de sangue, os perpetradores filmavam orgulhosamente o seu espetáculo infernal. Mulheres choravam de horror enquanto crianças eram arrastadas de suas casas e massacradas ao lado de seus maridos, pais e avós. O Hayat Tahrir al-Sham (HTS), absurdamente reconhecido internacionalmente como as "forças de segurança legítimas" da Síria, transmitia orgulhosamente as suas atrocidades: civis forçados a rastejar, ladrar, implorar... até que as balas silenciassem as suas súplicas; cadáveres de mulheres e crianças empilhados num monumento grotesco".

Os testemunhos dos massacres perpetrados contra a minoria alauíta pelas forças militares e paramilitares do governo de Damasco são chocantes. Em apenas três dias, de 6 a 9 de março, os fundamentalistas fascistas do HTS, liderados pelo atual presidente sírio Ahmed Al-Sharaa, desencadearam o terror nas províncias costeiras do noroeste de Latakia e Tartous. Trata-se da mesma pessoa que os EUA, a UE, e os meios de comunicação ocidentais têm vindo a apresentar nos últimos três meses como o garante de uma Síria livre e democrática.

Mais de 1500 pessoas da minoria alauíta foram mortas, na sua maioria civis indefesos, e milhares de outras estão a fugir do país em direção à fronteira libanesa, ou procuraram refúgio na base militar russa de Khmeimim.

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Os fundamentalistas do HTS desencadearam o terror. O seu líder Ahmed Al-Sharaa é aquele que os EUA e a UE apresentam como o garante de uma Síria livre e democrática.

Barbárie e limpeza étnica na Síria "libertada

Durante a ofensiva do HTS para tomar o poder, já havia uma série de alegações de acções punitivas de limpeza étnica contra alauítas, curdos, drusos e outras minorias nacionais e religiosas, e de repressão brutal contra as mulheres. Não podemos esquecer que as forças "insurrectas" patrocinadas pela Turquia, pelos EUA, pela UE e pelo governo sionista de Netanyahu são os mesmos fundamentalistas reacionários do ISIS e da Al Qaeda que há anos lutam para instaurar uma ditadura fundamentalista na Síria.

Representantes de vários países da NATO e da UE deslocaram-se a Damasco para abraçar Al-Sharaa. Magicamente, os terroristas jihadistas de há poucos meses tornaram-se "combatentes da liberdade" e "democratas respeitadores da diversidade religiosa e cultural", graças a uma campanha vomitiva de desinformação que continua até hoje. O assassínato a sangue frio de civis indefesos tem sido apresentado pelos media ocidentais como "confrontos provocados por ataques de grupos leais ao antigo ditador".

A propaganda de Washington e Bruxelas de que Al-Sharaa lideraria um governo de transição que convocaria eleições democráticas dentro de alguns meses desmoronou-se como um castelo de cartas. Perante a evidência de que os seus fantoches em Damasco estavam longe de ter o controlo total da situação, Washington e os seus aliados concordaram que não se realizariam eleições durante pelo menos quatro anos! Entretanto, os seus peões estão a trabalhar arduamente para esmagar a sangue e fogo qualquer oposição interna.

O discurso sobre o suposto abandono do fundamentalismo pelo HTS e "o papel central das mulheres" na nova Síria não vai melhor. Não há uma única mulher no gabinete de Al-Sharaa, porque, como explicou o porta-voz do governo, elas devem desempenhar "as tarefas que lhes competem". A pedido dos seus senhores ocidentais, Al-Sharaa aceitou criar um Gabinete dos Assuntos da Mulher e colocou à sua frente uma mulher fundamentalista que apela às mulheres para que "não ignorem as prioridades da sua natureza criada por Deus" e cumpram "os seus papéis no seio da família". Este desprezo chauvinista e reacionário já provocou mobilizações de protesto em Damasco e noutras cidades.

Mas onde as contradições explodiram de forma mais brutal foi na questão nacional. A Síria é um território multiétnico, com diferentes línguas, culturas e confissões religiosas. O discurso oficial sobre a "unidade nacional" e a "defesa da integridade territorial", celebrado com entusiasmo por líderes ocidentais não significa outra coisa senão a repressão a sangue e fogo daqueles que lutam não só pelo direito à autodeterminação, mas também pela autonomia e por um mínimo de respeito pelas línguas, tradições culturais e diferentes confissões religiosas.

O massacre contra a população alauíta foi o episódio mais brutal, mas não o único. Organizações de solidariedade para com o povo curdo denunciaram os ataques criminoso a Rojava, no Curdistão sírio. Tanto aviões turcos como tropas do Exército Nacional Sírio (SNA) causaram centenas de mortes de civis curdos e destruíram infra-estruturas vitais para a vida de mais de um milhão de pessoas. Cristãos, drusos e outras minorias também sofreram a brutalidade das políticas repressivas da Al-Sharaa e do seu principal patrocinador, o regime turco.

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O massacre contra a população alauíta foi o episódio mais brutal, mas não o único. As organizações de solidariedade para com o povo curdo denunciaram os ataques criminoso a Rojava, no Curdistão sírio.

A divisão imperialista da Síria

Por trás de toda esta violência está o Grande Jogo imperialista para a divisão do país em áreas de influência sob o controlo dos EUA, da Turquia e de Israel. Confrontado com a sua derrota na Ucrânia e desesperado com a ascensão imparável do bloco imperialista rival da China e da Rússia, Washington precisou de tentar recuperar a autoridade e as posições no Médio Oriente. Só o poderia fazer apoiando-se em aliados como o regime reacionário de Erdogan e o governo sionista de Netanyahu, que partilham objectivos comuns de enfraquecer e isolar o Irão, outro aliado da China e da Rússia, e de consolidar os respectivos poderes na região. Mas Ancara e Telavive também têm agendas e interesses próprios.

Os massacres dos últimos dias colocam em causa a credibilidade do discurso do imperialismo estado-unidense e como os seus objectivos estratégicos na região estão longe de estar garantidos. A Rússia, para além de sair da guerra na Ucrânia como vencedora indiscutível e de ter desferido um rude golpe na máquina militar dos EUA e da UE, está a compensar rapidamente o revés sofrido na Síria. Putin já assinou novos acordos para instalar bases militares e aumentar a sua presença económica e militar no Sudão e na Líbia com o governo de Benghazi, que controla 70% do país, garantindo assim uma posição-chave no Mar Vermelho, reforçando ainda mais a sua influência em África e proporcionando uma plataforma a partir da qual poderá intervir em novos desenvolvimentos no Médio Oriente.

E na Síria, longe de reinar a estabilidade, a divisão territorial entre os bandidos está a criar novas contradições. A 13 de março, o exército israelita bombardeou um bairro de Damasco, sob o pretexto de que albergava um grupo fundamentalista. É uma mensagem de aviso para Damasco e Ancara de que, perante a sua ofensiva para consolidar o controlo sobre regiões que até agora não controlava, o regime sionista não cederá um milímetro nos seus planos para dominar o sul do país.

O objetivo de todas as potências imperialistas é concluir a divisão da Síria o mais rapidamente possível, antes que o descontentamento e a agitação que se acumulam entre as massas empobrecidas possam provocar explosões susceptíveis de alterar a atual correlação de forças.

A integração das SDF no exército sírio e o futuro de Rojava

Como explicámos em artigos anteriores, a luta heróica dos homens e mulheres das milícias curdas das Unidades de Proteção Popular (YPJ) e das Unidades de Defesa das Mulheres (YPG) que constituíram as Forças Democráticas Sírias (SDF) e libertaram o território que é agora Rojava, representou uma luz de esperança para a Síria e para todo o Médio Oriente.

Nos últimos dias, as denúncias dos milicianos curdos foram fundamentais para sensibilizar a comunidade internacional para os crimes cometidos pelo HTS contra os alauítas. Muitos destes activistas apelaram, com razão, a uma luta conjunta de curdos, alauítas, drusos, árabes e outros povos da Síria contra os crimes dos fundamentalistas que controlam o governo de Damasco, e por uma Síria livre do domínio de qualquer potência imperialista e do sectarismo religioso.

Precisamente por causa deste historial heroico e da referência que Rojava representa, devemos ser claros sobre o impacto da assinatura de um acordo entre Mazloun Abdi, chefe da milícia curda SDF, e o presidente sírio Al-Sharaa. Um pacto que integra "todas as instituições civis e militares do nordeste da Síria, incluindo postos fronteiriços, aeroportos e campos de petróleo e gás natural, na gestão do Estado sírio".

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O acordo entre Mazloun Abdi, chefe da milícia curda SDF, e o presidente sírio Al Sharaa será utilizado pelo governo de Damasco e pelo regime turco para atacar os direitos conquistados pelos curdos e outras minorias nacionais nos últimos anos.

No texto acordado, o governo afirma que irá garantir aos curdos "os seus direitos de cidadania e todos os direitos constitucionais" e "que todos os sírios deslocados que regressem às suas cidades e aldeias serão protegidos pelo Estado sírio". Em contrapartida, as SDF comprometem-se a "apoiar a luta do Estado sírio contra qualquer ameaça remanescente do regime de Assad, bem como contra as ameaças à segurança e à unidade, e a rejeitar os apelos que visam criar divisões entre as componentes da sociedade síria, os discursos de ódio e as tentativas de semear a discórdia".

Este compromisso, que é uma armadilha mortal para as milícias e para o povo curdo, já está a ser utilizado pelo governo fundamentalista e pelas potências ocidentais como um aval para justificar as suas políticas, para encobrir os crimes contra a minoria alauíta e para relançar a sua campanha de propaganda com mais força, apresentando a Al-Sharaa e o HTS como defensores do diálogo, da paz e dos direitos democráticos. Os compromissos do governo sírio sobre os direitos constitucionais e a segurança da população são os mesmos que assumiu perante os alauítas e já vimos para que servem. Mas os compromissos das SDF são muito específicos: submeter-se às ordens de Damasco e atuar contra qualquer ameaça à "segurança e unidade".

A desmobilização provocada por este pacto será utilizada pelo governo de Damasco e pelo regime turco para atacar os direitos conquistados nos últimos anos pelos curdos e outras minorias nacionais em Rojava e para reforçar o seu poder. Este acordo, tal como os anteriores com Washington para obter ajuda militar, não oferece nenhuma solução real para o problema nacional curdo, representa um abandono aberto de uma posição de classe e internacionalista que renuncia completamente ao socialismo, e apenas provocará novos conflitos ao enfraquecer a força armada e o apoio político das milícias curdas.

A evolução dos acontecimentos na Síria deixa mais uma vez bem claro que, sob o imperialismo e o capitalismo, não há saída. A união dos oprimidos através das divisões étnicas, religiosas e nacionais só pode ser feita sob a bandeira da revolução socialista e da luta por uma Federação Socialista dos Povos do Médio Oriente.

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