A pandemia do novo coronavírus continua a alastrar-se pelo mundo a um ritmo alarmante. Nos EUA, a catástrofe é inegável; na América Latina, é no Brasil que a tragédia ganha os contornos mais grotescos sob o governo de extrema-direita de Bolsonaro; em África, a situação sul-africana piora velozmente e evidencia os riscos em todo o continente; também a Índia, sob o governo ultra-reaccionário de Narendra Modi, deixa cada vez mais claro o que significa esta pandemia para as massas pobres de operários e camponeses da Ásia, onde até a China é surpreendida por uma nova e súbita onda de infecções. Na Europa, onde vários governos declaram que o pior já havia passado, o desconfinamento imposto pelos grandes capitalistas ― desejosos de voltar à “normalidade” de exploração e acumulação ― está agora a precipitar uma segunda onda de infecções que, sem o regresso a medidas de confinamento, ameaça ser pior do que a primeira onda, aquela que devastou a Itália, a França e o Estado espanhol deixando um rasto de dezenas de milhar de mortos. As fantasias de uma rápida retomada da economia mundial, entretidas pelos “especialistas” das mais importantes instituições do capitalismo mundial, definham e caem agora, meros três meses depois de serem anunciadas.
A nova crise do capitalismo, que já ultrapassa não só a Grande Recessão de 2008 como ainda o crash de 1929, avança e deixa todas as burguesias divididas perante o problema de como enfrentar um problema que não podem evitar nem entender. Cada burguesia nacional procura, antes de mais, exportar as piores consequências políticas desta crise económica, como tão graficamente demonstra a luta intestina na União Europeia. Por cima destes choques, no entanto, há uma questão na qual a unidade das variadas burguesias é absoluta: agora, tal como em 2008, querem que sejam os trabalhadores e os pobres a pagar pela crise. Por todo o mundo é declarada uma guerra à classe trabalhadora e aos oprimidos, e por todo o mundo a nossa classe responde com as armas que tem à sua disposição.
O governo PS: um governo da burguesia e para a burguesia
«O executivo do Estado moderno não é mais do que uma comissão para administrar os negócios colectivos de toda a classe burguesa.»
- Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, 1848
Em Portugal, as perspectivas iniciais eram de uma queda anual abaixo dos 10%, segundo Centeno. As actuais são de uma queda entre os 9% e os 13% do PIB nacional e de uma taxa de desemprego entre os mesmo valores percentuais, dependendo da existência e da severidade de uma segunda onda do novo coronavírus. Entretanto, a dívida pública disparou novamente para recordes históricos e o tão badalado excedente orçamental conseguido por Centeno ― carinhosamente apelidado de “Ronaldo das finanças” nos jornais e telejornais ― esfumou-se no espaço de dias.
Desde o início da crise que o governo foi muito claro em relação às suas prioridades. As verbas sistematicamente negadas aos serviços públicos, ao aumento real dos salários ou a uma resposta consequente à dramática crise de habitação foram esbanjadas num ápice para garantir os lucros da burguesia. Falamos de mais de 9.000 milhões de euros, no conjunto das medidas. Desta enorme quantia, a pequena-burguesia viu algumas migalhas… e a classe trabalhadora não viu nada.
A facilitação do lay-off, medida de ouro para “proteger o emprego”, não só não impediu o aumento explosivo do desemprego como representou ainda um brutal assalto à classe trabalhadora. Foram sobretudo as grandes empresas que beneficiaram da medida, tendo cerca de 55% das mesmas recorrido ao lay-off, enquanto que entre as chamadas micro empresas esse número é de apenas 7,4%. Existem, neste momento, mais de 850 mil trabalhadores em lay-off. Quanto ao desemprego, só entre Março e Abril 115 mil trabalhadores inscreveram-se nos centros de emprego. Em termos homólogos, no mês de Abril, o desemprego cresceu 50% em 40 concelhos e 25% noutros 102.
Não é, assim, de estranhar que todas as associações patronais tenham apoiado a medida e pressionem o governo para a sua manutenção enquanto levam a cabo despedimentos colectivos e distribuem chorudos dividendos aos seus accionistas. O governo, ao invés de proibir os despedimentos, anunciou a prorrogação do lay-off simplificado até Julho, ao mesmo tempo que mantém a caducidade da contratação colectiva e a recusa de reduzir a jornada de trabalho para as 35 horas para todos os trabalhadores.
O discurso de “unidade nacional” esconde uma nova ofensiva contra a classe trabalhadora
Os últimos meses foram marcados por uma propaganda intensa sobre a “unidade de todos os portugueses contra o vírus”. Amparados tanto à direita como à esquerda, Marcelo e Costa são os rostos desta suposta unidade de interesses. À direita, Marcelo conseguiu finalmente cumprir o sonho reaccionário de Cavaco, agregando à sua volta o bloco central que se prepara para o instalar em Belém por mais meia década. À esquerda, os dirigentes da esquerda parlamentar comportam-se cada vez mais como ministros sem pasta do governo, zelando pela sua estabilidade a qualquer custo.
À sombra do “combate à pandemia” foi desencadeado um ataque feroz aos direitos e às condições de vida da classe trabalhadora. O Estado de Emergência, que proibiu as greves mas não os despedimentos, nunca teve como objectivo a protecção da saúde pública, mas antes a criminalização da resistência dos trabalhadores contra os abusos patronais que continuam a ser respaldados pelo governo. O apoio das direcções da esquerda parlamentar a este ataque aos direitos democráticos não foi menos que criminoso. Agora, o governo procura manter essas medidas repressivas através do “Estado de Calamidade” e outros subterfúgios legais. A ofensiva aos nossos direitos democráticos conta com o apoio de toda a burguesia que, através dos seus meios de comunicação, ataca diariamente o direito de manifestação, fazendo comparações espúrias com todo o tipo de festas e eventos religiosos. Há que lutar contra toda e qualquer restrição ao nosso direito de manifestação, reunião e greve!
A hipocrisia torna-se evidente a cada manhã que somos obrigados a usar transportes sobrelotados ou a trabalhar sem condições de higiene e segurança. Chegamos ao absurdo de ser obrigados a trabalhar em locais de trabalho onde se sabe haver casos de infecção. E os trabalhadores precários, na sua maioria jovens, mulheres e imigrantes, estão na primeira linha de exposição ao vírus. Sentimos agora em toda a sua brutalidade as contra-reformas ao código laboral, a “Lei Cristas” ― a liberalização total do mercado imobiliário e das rendas ― e a negligência das burocracias sindicais. Assim se explica que o desconfinamento esteja a afectar com particular violência a área metropolitana de Lisboa e a chegar cada vez mais à população jovem. E por cima de tudo isto, os estudantes foram obrigados a regressar às aulas em escolas degradadas pelo subfinanciamento crónico da Educação.
A histeria e o moralismo que a comunicação social burguesa procura agitar contra quem frequenta espaços públicos tem como objectivo mascarar as responsabilidades do governo e da classe dominante numa segunda onda da pandemia que se aproxima a passos largos. Da mesma forma, a apresentação da pandemia como causa única da crise económica serve para ocultar que é o capitalismo a verdadeira causa da catástrofe social que já estamos a viver e que, em tudo o que depender do governo e da burguesia, só se agravará.
A austeridade que, sem jamais ter sido terminada ou revertida, sem dúvida alguma abrandou durante os anos de débil crescimento económico, vai agora intensificar-se. A burguesia, desesperada para proteger os seus lucros ante uma depressão histórica, está a exigir do governo PS um autêntico tsunami de ataques aos trabalhadores e à juventude. A transferência de Centeno para o Banco de Portugal foi o tiro de partida, e o novo ministro das finanças não podia ter sido mais indiscreto quando anunciou que “austeridade, para já, não” ― ou seja: austeridade, para mais logo, sim.
O facto é que o investimento público, em termos reais, sempre esteve em queda durante o período da geringonça. Entre 2016 e 2019, a degradação do sector público atingiu mais de 7 mil milhões de euros, segundo o último estudo publicado a este respeito pelo economista Eugénio Rosa. E a tendência só se viu reforçada em 2020.
O orçamento suplementar ― aprovado na generalidade com o apoio das direcções da esquerda reformista ― aprofunda a política de imposição dos custos da crise à classe trabalhadora, canalizando milhões para o Capital e à custa de mais austeridade. Para fazer frente ao brutal desgaste que a pandemia impõe ao SNS, “aumenta” o investimento público na saúde em apenas 76 milhões de euros e nuns insultuosos 200 mil euros para despesas de pessoal. Como se não bastasse, enquanto o seu governo se nega a subir os salários dos enfermeiros e trabalhadores da saúde, Costa ainda nos diz que estes trabalhadores serão premiados com a realização da Liga dos Campeões em Portugal!
Já na educação, o governo prepara-se para dar início ao novo ano lectivo mantendo o subfinanciamento mesmo sob as dramáticas condições da pandemia ― o que significa, por exemplo, a manutenção de um número incomportável de alunos por turma.
Em todas as áreas, o investimento público manter-se-á a níveis anémicos. A cada choque com o patronato, a cada movimento dos trabalhadores e da juventude, a cada greve num local de trabalho, a máscara do governo PS vai estalando, por muito que as direcções reformistas do PCP e do BE se esforcem por lhe retocar o verniz.
A burguesia avança com um brutal ataque contra as mulheres: a legalização do proxenetismo
Em tempos de crise, é muito útil à burguesia uma massa crescente de desempregados ― aquilo que Marx chamou de exército industrial de reserva ― que compete por cada miserável posto de trabalho e, assim, rebaixa os salários de toda a classe trabalhadora, ou seja, aumenta a taxa de exploração e engorda os lucros dos capitalistas. As mulheres trabalhadoras são as primeiras a ser arregimentadas neste exército. É evidente que a paralisação da economia capitalista as afecta com particular violência. São as mulheres trabalhadoras quem ocupa os trabalhos mais precários no sector dos serviços, na restauração, no turismo, na limpeza industrial, etc. São elas as primeiras a sofrer com o desemprego, as primeiras a quem a família impõe o cuidado dos filhos e o aumento das tarefas domésticas. Não é por acaso que a violência machista cresceu nos últimos anos, durante o desmantelamento do Estado social e com a crise de habitação. E tampouco é por acaso que essa violência viu uma explosão em 2020, com o confinamento e o desemprego.
Como em todas as crises capitalistas, a exploração sexual das mulheres espalha-se e aprofunda-se. Em Portugal, os capitalistas do sector mais afectado pela crise, o turismo, olham para esta catástrofe social como uma nova oportunidade para avançar com um projecto com o qual sonham há vários anos: a legalização do proxenetismo. Com o sector turístico em colapso, o turismo sexual é o mercado que estes capitalistas vêem como alternativa para os seus investimentos ― um mercado com claras condições para se expandir entre a miséria de centenas de milhar de mulheres pobres, especialmente se a exploração sexual for legalizada. Assim se compreende que Ana Loureiro, uma proxeneta, possa levar uma petição à Assembleia da República para exigir a legalização do lenocínio, e ainda defender esta proposta com afirmações racistas e xenófobas contra as mulheres brasileiras.
O Estado burguês, o mesmo que espanca e assassina jovens negros sistematicamente, o mesmo que condena a penas de prisão efectivas milhares de pobres que cometeram crimes não-violentos, o mesmo que rompe piquetes de greve com a polícia de choque e persegue grevistas sob ameaça de prisão e espancamento, estende agora um tapete vermelho a uma criminosa que faz da violação de mulheres pobres o seu negócio. A mesma comunicação social burguesa que vilaniza as prostitutas e celebra a objectificação das mulheres e o machismo, faz agora carinhosas reportagens sobre “trabalho sexual”.
Por fim, uma certa “esquerda” ― particularmente entre as direcções do Bloco de Esquerda e do PS ― que se reclama feminista e defensora das trabalhadoras, celebra agora uma proxeneta racista e apoia a sua proposta de lei, que mais não é do que a legalização do proxenetismo. Ao invés de usar toda a sua força para organizar as mulheres trabalhadoras e lutar consequentemente por trabalho, habitação, saúde e educação, esta “esquerda” diz às mulheres trabalhadoras e pobres que o problema é estarem a ser violadas sem descontar para a segurança social. E isto no momento em que rebenta a maior crise da história do capitalismo, com as consequências que já explicámos. Não pode haver uma política mais rasteira e desprezível do que esta ― facilitar a expansão da compra e venda de mulheres, com tudo o que esta implica, desde o tráfico humano à exploração sexual de crianças.
A luta da Esquerda Revolucionária não é pela regulamentação do proxenetismo, é pelo fim da exploração sexual, por uma sociedade na qual nenhuma mulher tenha de vender o corpo para poder comer ou ter um tecto!
Romper com a conciliação de classes! É preciso uma política da classe trabalhadora, independente e combativa!
As direcções do BE e do PCP, assim como a da CGTP, seguiram até aqui uma política de conciliação de classes, dizendo-nos que o governo PS representava o fim da austeridade e o início de uma nova era de melhorias graduais e seguras para a classe trabalhadora. Procuraram de todas as formas transformar as organizações que dirigem em meros aparelhos de estabilização do governo de Costa. Mostrando-se “responsáveis” e imbuídos de “sentido de Estado”, pretendiam aumentar os seus lugares no parlamento, nas autarquias e nos restantes órgãos do Estado, eleição após eleição. Falaram-nos de “puxar o PS para a esquerda”, de “ganhar a maioria social”, de um “tempo novo” e de tantos outros disparates. E para manter a coesão apesar desta política, precisaram, por um lado, de perseguir e atacar todos os militantes que denunciassem os efeitos desastrosos dessa política; por outro lado, foi-lhes necessário fomentar ao máximo o sectarismo entre as organizações da esquerda, procurando impedir qualquer unidade nas lutas.
Foram capazes de prolongar esta farsa por todo o período de débil crescimento económico sem sofrer as consequências mais nefastas imediatamente, mas o crescimento acabou. Abate-se agora sobre o mundo a maior depressão da história do capitalismo, e as celebradas “vitórias” que nos apresentaram os doutores da democracia, a partir dos seus gabinetes e assentos parlamentares, esfumam-se no espaço de alguns dias, deixando incontáveis milhares de famílias trabalhadoras na pobreza para que um punhado de capitalistas possa continuar a enriquecer mesmo durante uma pandemia.
A verdade é que o governo de Costa, como qualquer governo burguês, funciona como uma “comissão para administrar os negócios colectivos de toda a classe burguesa”. O PS não deu um único passo para a esquerda, foram o BE e o PCP quem correu milhas para a direita. E a falsidade da política seguida por estas direcções é agora por demais evidente. A geringonça não nos serviu para nada.
Isto é assim porque a força da classe trabalhadora nunca estará no parlamento e no circo da “democracia” burguesa. A força da classe trabalhadora está na sua organização independente e na luta de massas, combativa e consequente, nas ruas, nos bairros, nos locais de trabalho, com métodos como a manifestação, a greve, a ocupação, a greve geral e restantes métodos de luta que já deram provas da sua eficácia ao longo da história.
Há que usar estes métodos combatendo sempre o sectarismo, unindo a juventude e os trabalhadores em todas as lutas e movimentos sociais ― como o movimento feminista, o anti-racista, o climático ― à volta de um programa comum e verdadeiramente socialista! Levantar como bandeiras de luta a nacionalização de todos os sectores chave da economia sob controlo dos trabalhadores, a expropriação dos grandes proprietários e especuladores imobiliários, um plano de habitação social acessível, um plano de pleno emprego, um plano de transição energética, a criação de sistemas de saúde, educação e transportes públicos e completamente gratuitos.
E tudo isto só é possível rompendo decididamente com o governo e a conciliação de interesses inconciliáveis. A crise não pode ser contornada com “unidade nacional”! A crise capitalista tem um preço altíssimo. Trata-se de determinar, na luta de classes, quem pagará esse preço: a classe trabalhadora ou a classe capitalista.
Que os capitalistas paguem pela crise!
Junta-te à Esquerda Revolucionária!
Está na hora da organização e da luta!