Em menos de ano e meio desde a queda do governo do PS por suspeitas de corrupção de António Costa, e menos de um ano de governo da AD, abre-se uma nova crise política devido a um caso de corrupção envolvendo o Primeiro-Ministro Luís Montenegro.
A alteração à lei dos solos, que abre novos terrenos à construção e especulação imobiliária, levou a um escrutínio das ligações de deputados e membros do governo a empresas imobiliárias por possíveis conflitos de interesses. A 15 de fevereiro jornalistas descobriram que a empresa Spinumviva, criada em 2021 e registada enquanto imobiliária, pertencia à família de Montenegro. Se numa primeira fase o Primeiro-Ministro argumentou que a empresa geria exclusivamente património recebido por heranças, mais tarde defendeu que prestava exclusivamente serviços de gestão de dados pessoais. As incongruências não ficaram por aqui.
Revelou que recebia pagamentos mensais de várias empresas, entre as quais a Solverde, que explora 4 unidades hoteleiras, 5 dos 13 casinos físicos em Portugal e o autoproclamado maior casino online. A Solverde começa a pagar 4.500€ por mês à Spinumviva pouco depois desta ser fundada, sendo responsável por um terço dos quase 180 mil euros faturados em 2024. Já havia pagado 2.500€ mensais a Montenegro por serviços jurídicos através do seu escritório de advogados, incluindo pela representação nas negociações com o anterior governo sobre os efeitos da pandemia na atividade dos casinos, que acabou por decidir, como compensação, uma prorrogação das suas concessões no valor de milhões de euros até ao final deste ano.
Apesar de, em 2022, quando é eleito presidente do PSD, Montenegro ter cedido a sua quota da Spinumviva à mulher e filhos — na altura um menor e outro com 20 anos —, nenhum destes tem competências para garantir serviços de gestão de dados pessoais, tornando-se claro que não passam de testas-de-ferro. É óbvio que a Solverde e os outros clientes pagam à recente e pequena Spinumviva — com apenas dois jovens juristas — não por ser uma referência na área, mas para garantir que o Primeiro-Ministro defende os seus interesses.
Enquanto somos expulsos dos centros das cidades e obrigados a partilhar quartos em situações insalubres, senão mesmo obrigados a viver em tendas, devido aos salários de miséria e prepotência de senhorios e bancos, Montenegro consegue pagar duas casas a pronto por 715 mil euros com o dinheiro que a burguesia lhe pagou pelos serviços prestados!

A cumplicidade do PS mantém o governo de pé
No dia 21 de fevereiro, quando apenas se sabia que a Spinumviva era uma empresa imobiliária que beneficiaria com a alteração da lei dos solos, o Chega avançou com uma moção de censura, tanto para desviar as atenções da avalanche de revelações de crimes cometidos pelos seus militantes e deputados como para fazer pressão sobre o PSD. A moção foi rejeitada por todos os outros partidos, à excepção do PCP, que se absteve.
O PS continua a invocar “a necessidade de estabilidade” para votar contra e permitir a tranquila acumulação de capital acima de qualquer outro critério, como já havia ocorrido aquando do Orçamento do Estado. Claro que esta conclusão também está subordinada às sondagens que continuam a dar um empate técnico entre o PS e a AD. O PS tem tentado cativar eleitores ao PSD adoptando um discurso mais à direita — como se viu nas declarações de Pedro Nuno Santos (PNS) em relação à imigração — mas esta é uma tática falhada. A crise capitalista está a polarizar a sociedade quer à direita quer à esquerda, esvaziando o centrão político que PNS quer ocupar.
Já o BE e o PCP por um lado cederam em toda a linha à justificação do PSD de que “não há nenhuma ilegalidade”, perdendo a oportunidade de serem eles a lançar a moção, e por outro tiveram pudor em votar com o Chega, deixando o caminho livre para a demagogia de um partido do sistema manchado até ao pescoço com corrupção e outros escândalos.
Entretanto Montenegro foi obrigado a revelar os clientes da Spinumviva, incluindo a Solverde, o que tornou a corrupção clara como água. No sábado passado convocou uma reunião do Concelho de Ministros extraordinária da qual resultou um comunicado ao país, onde jogou a cartada de vítima de perseguição política, recusando-se a dar mais esclarecimentos sobre a empresa e exigindo que acreditemos na sua honradez. Tentou ainda desviar o assunto para o grande trabalho que tem feito pelo país — um país composto por classes, e se tem feito muito pela burguesia é à custa da miséria crescente da classe trabalhadora, onde o sector da habitação é apenas um de muitos exemplos. Em vez de se demitir, no final do comunicado Montenegro propôs uma eventual moção de confiança de modo a colocar a responsabilidade da crise política sobre os ombros da oposição.
Minutos depois foi a vez do PCP lançar uma moção de censura e o PS apressou-se a anunciar que a chumbaria. Foi a luz verde que o PSD precisava para avançar com todo o seu aparato — nada menos que cinco ministros em direto para cinco televisões diferentes! — para nos fazer crer que “o chumbo de duas moções de censura significa que o Parlamento entende que o Governo pode continuar a governar” e que, portanto, iria deixar cair a proposta de moção de confiança.
Os mesmos que diziam que António Costa não tinha condições para continuar a governar perante uma suspeita de corrupção defendem agora que Montenegro pode manter o cargo. O próprio presidente Marcelo, sempre tão crítico nas crises que foram aparecendo durante o anterior governo PS, agora está calado que nem um rato. É o tipo de malabarismo moral que podemos esperar dos políticos burgueses!
A corrupção é inerente ao sistema capitalista
2024 foi o ano mais rentável de sempre para o setor imobiliário, com um volume de negócios de 30 mil milhões de euros. É o equivalente ao volume das quatro maiores empresas combinadas — Petrogal, EDP, Modelo Continente e Pingo Doce — e, com um aumento de faturação de 26%, muito mais rentável. O capital flui sempre para os sectores mais rentáveis, o que explica que tanto a burguesia nacional como internacional estejam a investir fortemente no sector.

A empresa de Montenegro é apenas um caso entre dezenas no parlamento. Têm participações em empresas imobiliárias dezenas de deputados do Chega e PSD, o líder da bancada parlamentar Hugo Soares, o presidente da Assembleia da República José Pedro Aguiar-Branco, assim como as Ministras do Trabalho e da Justiça. O próprio responsável pela Administração Local e Ordenamento do Território, secretário de Estado Hernâni Dias, havia criado duas empresas imobiliárias para se aproveitar das alterações à lei dos solos que ajudara a passar.
Como disseram Marx e Engels, “O moderno poder de Estado não passa de um comité de gestão dos negócios comuns de toda a classe burguesa”1. Para os homens e mulheres do Estado, a lei dos solos é uma oportunidade de ouro para construir mais casas de luxo para si e para os seus clientes especularem, enriquecendo como nunca antes, enquanto para nós trabalhadores só significa mais miséria.
A corrupção é inerente ao sistema capitalista. Políticos, juízes e outros agentes do Estado são eles próprios burgueses — como vemos claramente no gabinete de Trump — ou tornam-se, comprados pela burguesia, passando a defender os interesses da sua classe. Na fase imperialista do capitalismo, monopólios e cartéis controlam sectores inteiros da economia, acumulando volumes absurdos de capital e influência, capazes de controlar todos os níveis de poder.
Os casos judiciais da operação Marquês, Madeira ou Tutti-Frutti demonstram-no, indo desde autarcas a juízes e ao Primeiro-Ministro. Nos últimos 8 anos mais de 200 políticos tornaram-se suspeitos de corrupção, e trata-se com certeza apenas da ponta do iceberg. Quando a esquerda leva projetos de lei à Assembleia para pôr fim às “portas giratórias” entre política e negócios, mostra não compreender que a corrupção nunca acabará por decreto, mas apenas alterando as bases materiais da sociedade, pondo fim à propriedade privada e substituido a democracia burguesa pela proletária.
A corrupção está tão disseminada que é fácil para os diferentes sectores da classe dominante e partidos encontrar provas que comprometam rivais e possam ser usadas em certos momentos para ganhar uma vantagem momentânea. O preço a pagar pelo rol de casos de corrupção é o desgaste da confiança da classe trabalhadora no regime e nas instituições burguesas. Para a esquerda reformista, que se cinge a operar dentro das instituições burguesas, esta descredibilização é algo negativo. Aquilo que deveria ser uma oportunidade de desmascarar as contradições do capitalismo torna-se num trunfo para a hipócrita extrema-direita que usa as falsas vestes do “anti-sistema”.
Os partidos de esquerda cometem ainda o erro crasso de usar como guia de ação a “legalidade” burguesa. A classe dominante molda as leis à sua imagem. Tempos houve em que o tráfico de pessoas escravizadas, o feminicídio ou o apartheid eram legais. Aliás, hoje mesmo a burguesia mais poderosa do mundo, a estado-unidense, já se desenvencilhou do empecilho da ilegalidade neste preciso assunto ao legalizar o suborno.
Para nós revolucionários não importa se a corrupção é legal ou ilegal. Não medimos os acontecimentos pela régua da jurisprudência burguesa nem agimos em função desta. O que sim importa é usarmos estes acontecimentos para fazer avançar a consciência da classe trabalhadora, explicando como a corrupção e os outros males do capitalismo são o resultado das relações sociais neste sistema e como só terão fim com a gestão democrática dos meios de produção pela classe trabalhadora e a abolição da classe burguesa parasitária.

Para fazer cair o governo e o seu programa a esquerda tem de voltar à rua!
Concordamos com a iniciativa do PCP em lançar a moção de censura. Na sua apresentação o PCP vai, corretamente, para além da simples corrupção, promovendo-a como forma de travar as políticas reacionários do governo2. Mas condena a queda do governo ao fracasso ao cingir-se à acção parlamentar, caso o PS mantenha a sua cumplicidade com o governo. Ao avançar entretanto com uma comissão de inquérito, o objetivo do PS é ir desgastando o PSD para ver se ganha eleitorado à direita, e então propor a sua própria moção de censura (ou mesmo esperar o fim do mandato). Temos de nos livrar deste governo já, não daqui a alguns meses quando der jeito ao PS!
Para ultrapassar estes jogos calculistas, as direções do PCP e BE não podem depositar a sua confiança num possível apoio do PS ou numa possível moção de confiança do governo, mas apenas na classe trabalhadora! Enquanto comunistas revolucionários sabemos que o parlamento burguês pode ser usado como um palanque de denúncia dos partidos e sistema burgueses, mas nunca como um fim em si mesmo. O poder da classe trabalhadora está na sua organização nos locais de trabalho e nas ruas, nunca no parlamento, instrumento de dominação da burguesia. Moções de censura, comissões de inquérito, ou outras ferramentas da democracia burguesa não são nada comparadas com o poder da classe trabalhadora na rua!
É por isso que é preciso sobretudo mobilizar os trabalhadores e trabalhadoras para fazer cair este governo e lutar por:
- Expropriação de apartamentos e casas a bancos, fundos abutres e grandes rentistas!
- Regularização imediata de todos os imigrantes e descendentes de imigrantes!
- Saúde e Educação públicas e gratuitas! Expropriação dos privados!
- Salário igual para trabalho igual! Direito ao aborto livre! Direitos plenos para a comunidade queer!
- Fim dos processos de privatização da TAP, RTP, sistema de pensões e de todos os outros!
- Nacionalização da banca e dos grandes monopólios sob controlo dos trabalhadores!
Junta-te à Esquerda Revolucionária!
Notas:
1. O Manifesto Comunista. Marx e Engels. Fundação Federico Engels 2021.
2. O PCP falha infelizmente em mencionar a viragem do governo à extrema-direita e os ataques aos trabalhadores imigrantes, a camada mais oprimida da nossa classe. Lê a nossa análise no último editorial d’A Centelha: “O Governo da direita é cada vez mais parecido à extrema-direita! É preciso uma esquerda combativa para os travar!