A 22 de agosto morreu um idoso no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, após 5 horas de espera para ser transferido para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Os bombeiros que o transportaram para o Beatriz Ângelo prontificaram-se para fazer a transferência para Lisboa, mas o hospital não deu autorização porque “o transporte inter-hospitalar era da responsabilidade de uma empresa externa". Nesse mesmo dia 22 ambulâncias de vários corpos de bombeiros ficaram retidas no Beatriz Ângelo devido à falta de macas e ao elevado tempo de espera no atendimento. Um exemplo do estado em que se encontram as urgências do Sistema Nacional de Saúde (SNS) — com várias horas de espera no atendimento, inclusive dos casos mais graves, e até encerramentos — e dos seus resultados trágicos, fruto do subfinanciamento do SNS, da entrega de tarefas essenciais ao seu funcionamento a privados e da falta de profissionais de saúde e de condições para poderem exercer as suas tarefas.

Mas esta morte poderia ter sido evitada, tivesse a administração do hospital dado prioridade à saúde do paciente em vez de aos lucros da empresa privada de transporte. De resto, esta administração não fez mais que seguir as pegadas do governo, que sistematicamente coloca os lucros do capital à frente das necessidades da classe trabalhadora. Agora, a administração, o governo, e até o reacionário Presidente da República Marcelo, vêm chorar lágrimas de crocodilo e exigir a abertura de um inquérito para apurar culpados. Mas são eles próprios, fiéis defensores dos interesses da burguesia, ao continuarem com políticas que destroem o SNS, os verdadeiros assassinos!

O governo afasta os profissionais de saúde e utentes do SNS, alimentando o crescimento da saúde privada

Em 2022, o governo anunciou um recorde de investimentos no SNS: 555 milhões de euros. Mentiu. Os gastos totais não ultrapassaram os 230 milhões de euros. Na realidade, se descontarmos o investimento diretamente relacionado com a pandemia — aquisição de equipamento da rede de cuidados intensivos e material de proteção individual — o valor anual dos gastos com o SNS mantém-se o mesmo desde 2019. Por outras palavras, o governo não tem investido no SNS, apesar da premente necessidade de contratar mais profissionais de saúde, aumentar-lhes os salários, comprar equipamentos de diagnóstico e terapêutica e garantir a manutenção de edifícios hospitalares com décadas.

A falta de investimento no SNS alimenta o crescimento dos hospitais privados. Com urgências com tempos de atendimento de várias horas e listas de espera para diagnósticos ou cirurgias de anos, a compra de seguros de saúde disparou nos últimos anos, havendo em 2022 já 3,4 milhões assegurados, uma em cada três pessoas. Mais, se no SNS falta equipamento ou médicos de uma determinada especialidade necessários para tratar um paciente, este é enviado para um privado que os garante, muito bem pago pelo Estado, claro está. Por fim, a terceirização da aquisição de material hospitalar, limpezas, catering, etc, por empresas privadas é um gigantesco sorvedouro de dinheiro do SNS. Já em 2020 o Estado gastava 41% do dinheiro destinado à saúde com privados! Fica claro que é o Estado a financiar o sistema de saúde privado com gigantescas injeções de dinheiro público que devia ser investido no SNS. Um ciclo vicioso que só tende a piorar.

Mas nenhum outro exemplo é tão chocante como a utilização de empresas de trabalho temporário (ETTs) para garantir enfermeiros e médicos tarefeiros, sem contrato e pagos à hora, em condições de completa precariedade. Os hospitais públicos pagam rios de dinheiro às ETTs em vez de contratar diretamente os médicos, o que não apenas sai muito mais caro, mas é completamente contraproducente. Ao escolherem locais de trabalho e horários de forma sem qualquer planeamento, as ETTs impedem a formação de equipas que se conheçam e entreajudem, e um acompanhamento dos médicos inexperientes. Ao invés, promovem a competição e a desunião entre colegas de trabalho, acentuando o caos nas urgências.

Exaustos ao fim de trabalhar durante dois anos em condições muito difíceis e com ritmos de serviço insanos — sendo até impedidos de tirar férias — os profissionais de saúde tinham a expectativa de serem compensados de alguma forma depois da pandemia. Pelo contrário, o governo não contrata, não aumenta salários — tendo grande parte dos profissionais perdido 20% do poder de compra em 12 anos — e abusa das horas extraordinárias para manter o SNS à tona. Por lei, cada médico pode ser obrigado a fazer 150 ou 200 horas extra por ano, dependendo do tipo de contrato, mas muitos são assediados para fazerem mais.

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O governo não contrata, não aumenta salários — tendo grande parte dos profissionais perdido 20% do poder de compra em 12 anos — e abusa das horas extraordinárias para manter o SNS à tona.

Como consequência do deterioramento das suas condições de trabalho há uma sangria dos profissionais da saúde para fora do país e para os hospitais privados, que prometem urgências mais leves e menos caóticas, horários regulares, equipas fixas e nalguns casos um salário um pouco melhor. Aliado a isto existe um número recorde de médicos a pedir a reforma, e prevê-se que nos próximos 4 anos se reformem mais 3.200, cerca de 10% do total de 30.000 médicos em funções no SNS. Assim, o SNS tem cada vez menos médicos e cada vez mais exaustos.1 Nos últimos meses dezenas de chefes de urgências pediram demissão e milhares de médicos e enfermeiros pediram escusas de responsabilidade por falta de condições de trabalho.

Os utentes, em particular a classe trabalhadora, que não tem como pagar os preços praticados pelos privados, são quem mais sofre com as políticas do governo. Em 2022 registou-se uma mortalidade elevada, com correlação com o estado do SNS: aumento do tempo em listas de espera para consultas e cirurgias, aumento do tempo de deslocação para urgências mais distantes devido a encerramentos ou aumento do tempo de espera em urgências aumenta a probabilidade de morte nos dias e meses seguintes, como aconteceu a 22 de Agosto no Beatriz Ângelo. Em particular, a falta de obstetras e de anestesistas nas urgências obstétricas provocou um aumento muito significativo da mortalidade materna nos últimos anos, mais que duplicando de 6 para 15 mortes por 100.000 partos entre 2015 e 2021. Estamos a ser assassinados pelo governo do PS para que os seus amigos da saúde privada e da banca possam aumentar os seus lucros!

A direção executiva do SNS é o bode expiatório do governo para preparar um novo ataque ao SNS

Tendo acelerado nos seus mandatos a degradação do SNS, o governo do PS cria agora uma “Direção Executiva do SNS” (DE-SNS) que o vem “salvar”. Que conveniente! Com poder para nomear gestores e privatizar hospitais com autonomia face ao Ministério da Saúde, o seu verdadeiro objectivo é muito claramente o oposto. A reorganização de hospitais e centros de saúde em Unidades Locais de Saúde (ULS) e o corte de “gastos”, às custas das condições dos profissionais de saúde, têm a intenção de preparar apetecíveis “cabazes” a serem comprados pela saúde privada dentro de alguns anos.

Este é o segundo passo do plano do governo para a privatização do SNS. Primeiro lançou as bases da privatização dos Centros de Saúde com a municipalização da saúde, que fez com que a sua construção, manutenção e gestão e dos seus profissionais passassem a ficar a cargo das autarquias, podendo decidir privatizá-los. Agora chegou a vez dos hospitais, mas com um “middle-man” de nome pomposo. A DE-SNS foi o bode expiatório concebido pelo governo para poder avançar com o seu programa de privatizações sem arcar diretamente com a culpa.

Existem já 8 ULS em funcionamento e a DE-SNS quer criar mais 31. Os hospitais que fiquem de fora dos ULS são encerrados, fazendo com que a população que serviam se tenha de deslocar para muito mais longe para ter acesso a cuidados de saúde. É o caso do Hospital das Caldas da Rainha, que serve um concelho com 50.000 habitantes e ainda concelhos vizinhos, e cuja população lançou o movimento “Eu luto pelo hospital” para o manter.

Já tivemos provas inegáveis do carácter reacionário da DE-SNS este verão. Primeiro, com o “plano estratégico” de reorganização das urgências de pediatria na região de Lisboa e Vale do Tejo, tendo decidido manter permanentemente abertas apenas 8 das 14 urgências. Encerrar urgências em vez de contratar mais profissionais da saúde e melhorar as suas condições de trabalho é uma opção ideológica que visa continuar a degradação do SNS. E depois, quando exigiu controlar toda a comunicação entre os hospitais e a imprensa.

Apesar de empregar métodos que nos remetem para os tempos do fascismo e de ter um propósito óbvio, as Ordens e sindicatos do sector reconheceram a sua autoridade sem questionamento, e inclusivamente depositam esperanças que possa resolver a crise do SNS. De igual forma, têm a esperança equivocada que Marcelo sirva de intermediário com o governo que ignora as suas reivindicações. O que fazem é dar mais força a esta figura bonapartista, que se alguma vez vier a defender o SNS será apenas com vista a estabilizar um sistema capitalista em crise de modo a salvar a restante burguesia.

Os profissionais de saúde aumentam a luta em defesa do SNS mas são impedidos de avançar pelas burocracias sindicais

Os profissionais da saúde têm sido protagonistas de uma onda de greves na saúde como não há memória, demonstrando para mais uma apurada consciência de que as suas condições de trabalho estão intrinsecamente ligadas ao destino do SNS e por isso lutam por ambos. Muito a contragosto das direções burocráticas dos sindicatos da saúde, que dão sempre primazia às negociações com o governo à porta fechada, onde podem fazer as suas negociatas secretas, e que por isso boicotam a luta, empregando os métodos de luta da classe trabalhadora da forma mais ineficaz possível

As direções burocráticas têm separado e isolado as lutas dos profissionais, mantendo o corporativismo que vinga no sector desde a vitória da contra-revolução. O exemplo mais icónico foi quando no espaço de duas semanas no final de junho/início de julho o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP) e a Federação Nacional dos Médicos (FNAM), ambos da mesma Confederação Sindical, a CGTP, convocaram greves separadas. A direção do SEP chegou ao cúmulo de afirmar com orgulho que convocou dezenas de greves este ano. Mas que conseguiu com todas estas greves isoladas, muitas delas abrangendo exclusivamente os enfermeiros de um único hospital? Nada, assim como as outras burocracias que convocaram greves isoladas de médicos, técnicos de diagnóstico, etc. É uma estratégia destinada ao fracasso.

Como resultado, o governo passou o último ano a ignorar as negociações com médicos e enfermeiros, para finalmente apresentar uma proposta de aumentos irrisórios dos salários e pioria das condições de trabalho. Pior ainda, com vista a manter estas condições miseráveis e baixos salários, o governo quer contratar 300 médicos cubanos por 3 anos e reconhecer diplomas estrangeiros para médicos do SNS, com o qual pretende atrair médicos brasileiros. Estas medidas só favorecem os privados. A falta de médicos no SNS não será colmatada desta forma. A única solução para a falta de profissionais de saúde e restantes problemas do SNS é a expropriação da saúde privada sob o seu controlo democrático.

Os partidos de esquerda, incapazes de proporem tal solução, de irem para além do reformismo dentro do sistema capitalista, também não têm uma solução para a destruição do SNS. De que valem os discursos apaixonados do PCP em defesa do SNS se depois não se traduz na prática numa união dos sindicatos da CGTP numa greve geral da saúde? E de que valem todos os movimentos em defesa do SNS que o BE e outros estão a formar, se se ficam por protestos que não têm como base a força dos métodos de luta da classe trabalhadora como a greve?

A força dos profissionais de qualquer sector está na sua união contra o patronato e o Estado burguês e na paragem do trabalho. Não podemos ter nenhuma esperança que seja o governo burguês do PS, figuras do Estado burguês como o Presidente ou “direções executivas” a salvar o SNS. Os seus amos são os capitalistas, os seus interesses são os interesses do capital! A classe trabalhadora só pode depender de si mesma para lutar por uma vida digna!

É preciso avançar para a greve geral da saúde, construída democraticamente a partir de baixo!

As bases dos sindicatos e partidos de esquerda e todos os profissionais da saúde têm de rejeitar a visão institucional e reformista das suas direções e virar-se para a luta de massas nas ruas e locais de trabalho. Está na hora de se inspirarem no exemplo dos colegas da educação pública que, todos juntos, professores, auxiliares e outros trabalhadores da educação, através de comités de greve em cada escola, ultrapassaram os bloqueios das burocracias sindicais e construíram greves e manifestações nacionais que uniram e mostraram a força de centenas de milhares de pessoas.

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Está na hora dos profissionais do SNS seguirem o exemplo dos colegas da educação pública que ultrapassaram os bloqueios das burocracias sindicais e construíram greves e manifestações que uniram e mostraram a força de centenas de milhares de pessoas.

Médicos, enfermeiros, técnicos auxiliares, pessoal da limpeza, das cantinas e da manutenção, entre outros — todos são precisos para fazer os hospitais e centros de saúde funcionarem. A melhoria das suas condições de trabalho e a defesa do SNS enquanto serviço público, gratuito e de qualidade depende da sua união em comités de greve em cada centro de saúde e hospital na construção de uma greve geral da saúde que tenha por base um programa socialista, recusando privados na saúde e exigindo o controlo democrático da saúde por si mesmos e pelas populações que servem. Esta greve geral da saúde seria um passo fundamental para a construção de uma greve geral que una todos os sectores da sociedade e alcance vitórias para toda a classe trabalhadora!

Defendemos:

  • Fim do encerramento de hospitais e construção de novas estruturas hospitalares onde seja necessário.
  • Investimento massivo no SNS, nas infraestruturas e no material médico! Contratação coletiva de todos os profissionais de saúde necessários, com condições e salários dignos.
  • Nacionalização sem indemnização de todos os hospitais e clínicas privadas e de todas as empresas privadas que fornecem materiais ou força de trabalho ao SNS.
  • Criação de órgãos de profissionais da saúde para a gestão democrática dos hospitais e centros de saúde, a única forma de garantir a eficiência e qualidade dos serviços e do atendimento no SNS.
  • Nacionalização de toda a banca de forma a garantir os recursos para a execução destas medidas e colocar a gigantesca riqueza acumulada durante décadas pelos capitalistas ao serviço do bem-estar da esmagadora maioria da população.

Só uma greve geral da saúde que exija a expropriação dos privados, investimento massivo e controlo democrático dos trabalhadores e utentes pode salvar o SNS!


Notas

1. Se há um ano 1.3 milhões de pessoas não tinham médico de família, este valor subiu este ano para os 1,7 milhões, e se nada mudar vai subir ainda mais nos próximos anos. Naturalmente, falhar em apostar em cuidados primários e preventivos traduz-se numa maior pressão a jusante, sobrecarregando ainda mais as urgências.

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