Danijoy Pontes, um jovem são-tomense de 23 anos, morreu no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) no passado dia 15 de setembro, após 11 meses de prisão preventiva e de ser condenado a uma pena de 6 anos por roubo de telemóveis, apesar de não ter nenhum antecedente criminal. No mesmo dia, na mesma ala da prisão, com apenas alguns
minutos de diferença, morreu Daniel Rodrigues, homem de 37 anos que foi preso também por roubo, depois de cair na pobreza e no alcoolismo.

À família de Daniel foi dito, num primeiro momento, que a morte se deu por ataque cardíaco. Mais tarde, a morte foi atribuída a acidente vascular cerebral. Já a família de Danijoy teve a notícia de que o jovem “teria falecido durante o sono”. Sabiam ainda que o jovem estava a ser forte e sistematicamente medicado sem explicação. Daniel, como revelaria mais tarde a autópsia, também estava a ser medicado sem justificações claras. A medicação de ambos passava por metadona, ansiolíticos e medicamentos para epilepsia, mas nenhum deles entrou para o EPL com problemas de consumo de drogas ou diagnósticos de doenças mentais ou epilepsia. Não houve quaisquer respostas quanto a isto, e quando até a Embaixada de São Tomé e Príncipe pediu esclarecimentos ao Estado português sobre a morte do cidadão são-tomense, a resposta foi que o assunto era “segredo de Justiça”.

O que sabemos é que a procuradora responsável por tratar das mortes de Danijoy e Daniel não foi outra senão Alexandra Catatau, a mesma que ordenou o levantamento do corpo de Ihor Homenyuk — o homem espancado até à morte pelo SEF —, declarando morte por “causas naturais”, como pediram os polícias. Catatau atuou exatamente da mesma maneira neste caso, sem sequer chamar a Polícia Judiciária (PJ) para investigar as mortes, apesar de as circunstâncias serem altamente suspeitas.

Por fim, um mês após as mortes de Danijoy e Daniel, a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) — o órgão do Estado responsável pelo sistema prisional — deu uma explicação oficial para ambas as mortes, e é a que se esperava: “causas naturais”.

É preciso perguntar: desde quando é que uma morte natural é “segredo de Justiça”? Por que motivos estavam Danijoy e Daniel a ser medicados desta maneira? Por que motivo foi necessário mais de um mês para ser dada uma resposta clara às famílias? Como se justifica uma prisão preventiva de 11 meses e uma condenação a pena de 6 anos por um crime não violento, e ainda por cima quando o condenado é um jovem sem qualquer antecedente criminal? Como se justifica a prisão de pessoas que sofrem de alcoolismo — um problema de saúde! — e se encontram em situação de pobreza? Se Danijoy e Daniel se tornaram toxicodependentes na cadeia, como tiveram acesso às drogas?

Está muito claro, logo à partida, que há ocultação e que estas mortes foram tudo menos naturais. Danijoy e Daniel nunca deveriam sequer ter sido presos, foram vítimas mortais do sistema prisional. Os responsáveis por estas e tantas outras mortes semelhantes, assim como pela destruição de milhares de vidas nas prisões, são os verdadeiros criminosos.

O caráter racista e de classe do sistema prisional

Apesar dos escassos dados que o Estado publica sobre a população encarcerada, é possível ter uma visão nítida do caráter racista e de classe do sistema prisional.

A quase totalidade dos prisioneiros são trabalhadores e pobres. De acordo com dados DGRSP, em Portugal, no ano de 2020, 96,9% dos presos não teve acesso ao ensino superior, e 81,2% é analfabeto ou não passou do 9º ano de escolaridade. Fica claro quais são os estratos sociais que enchem as prisões portuguesas.

Outra evidência do caráter de classe do sistema são os crimes que são punidos com prisão. Mais uma vez, de acordo com a DGRSP 43,3% dos crimes punidos com prisão são “crimes relativos a estupefacientes” e “crimes contra património”. Por outras palavras, quase metade da população encarcerada em Portugal está a ser punida por crimes não violentos relacionados com drogas e roubos.

Impedindo-nos de ver o racismo do sistema prisional de forma clara, o Estado português não recolhe dados étnico-raciais da população, e isso significa que não temos como saber ao certo quantos prisioneiros negros estão nas prisões portuguesas. Contudo, qualquer pessoa que tenha tido o mínimo contacto com o sistema prisional está consciente da brutal sobre-representação da população negra, e os dados recolhidos e divulgados sobre a nacionalidade dos prisioneiros são esclarecedores.

Os imigrantes, sendo apenas 6,4% da população portuguesa, são 15,5% da população encarcerada. E se olhamos concretamente para as populações angolana, cabo-verdiana, guineense, são-tomense e brasileira, a desproporção é 5 a 10 vezes maior.

Fonte: Cruzamento de dados do Instituto Nacional de Estatística e da DGRSP.

Como se explica isto? Sem dúvida, as condições de vida dos trabalhadores imigrantes são ainda mais duras do que as dos trabalhadores nacionais. Em 2019, de acordo com o Pordata, a taxa de desemprego oficial entre os trabalhadores nacionais era de 6%, mas entre os estrangeiros era de 11,7%, e, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, a diferença de salário médio era de 28,9%. Estes números mostram bem a situação de superexploração em que se encontram os trabalhadores negros e imigrantes em Portugal. E assim se entende que 41,9% dos prisioneiros de nacionalidade portuguesa tenham sido condenados por crimes ligados a drogas e roubos, e que entre imigrantes o número ascenda a 52,3%.

É impossível separar estes crimes do desemprego e da pobreza. As condições de miséria e de total ausência de perspectiva de futuro nas quais vive uma camada da população são o que explica este tipo de criminalidade. Que liberdade existe quando a vida é uma sucessão de humilhações e insultos, exploração desenfreada, alcoolismo, depressão e todo o tipo de doenças físicas e mentais? Na pobreza não existe “liberdade”. A única alternativa, para muitos jovens, é o crime. E é o cúmulo da hipocrisia que o Estado que mantém milhares de pessoas nestas condições venha depois agredi-las com a polícia, julgá-las com os juízes e castigá-las com penas de prisão que chegam a 6 anos pelo roubo de um telemóvel.

Mas a pobreza não explica tudo. A brutal sobre-representação da população negra nas prisões portuguesas mostra o racismo do Estado. Há, sem dúvida alguma, uma perseguição dos jovens negros e imigrantes, e isto não é um acaso.

A classe dominante não pode simplesmente ignorar a população que é empurrada para a pobreza — e que, durante esta crise orgânica do capitalismo, inclui até mesmo trabalhadores com um ou mais empregos. Esta população é material explosivo que o Estado procura gerir e, acima de tudo, desorganizar. Isto é feito de várias formas, e os instrumentos mais importantes para manter a “ordem” são os órgãos repressivos, ou seja, as polícias, os tribunais e, por fim, as prisões onde são colocados os pobres em condições abjetas.

Nisto, os jovens e trabalhadores negros são corretamente identificados pela burguesia como especialmente perigosos para o seu sistema. A explosão do movimento de massas Black Lives Matter, em 2020, reafirmou o potencial revolucionário da juventude negra e mostrou como as suas reivindicações ressoam imediatamente entre toda a juventude, classe trabalhadora e vastas camadas da população. Em Portugal, o maior e mais combativo protesto dos últimos anos foi precisamente a manifestação anti-racista de 6 de junho de 2020, que uniu jovens da classe trabalhadora por cima de todas as fronteiras raciais.

Não é de estranhar, portanto, que a classe dominante concentre o seu Estado na repressão e desmoralização dos jovens negros e imigrantes. Estes, juntamente com as mulheres, pessoas LGBTI e restantes grupos oprimidos, são alvos da extrema-direita pelos mesmos motivos.

Por último, esta repressão serve também para dar matéria à comunicação social racista e a todos os meios que se dedicam a reforçar as ideias mais reacionárias entre a população, incluindo entre trabalhadores, dividindo-nos em linhas raciais e nacionais. Ao pobre e trabalhador branco, a burguesia diz que o inimigo é o pobre ou trabalhador negro, cigano ou imigrante... Assim distrai as atenções de si. Mas é a burguesia o verdadeiro inimigo, é para seu benefício, para garantir os seus lucros e o seu sistema doentio de acumulação infinita de capital, que nós vivemos com salários de miséria e desemprego, crescentes preços de eletricidade e combustíveis, inflação dos preços dos alimentos e bens de primeira necessidade, especulação imobiliária e rendas esmagadoras…

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O maior e mais combativo protesto dos últimos anos foi precisamente a manifestação anti-racista de 6 de junho de 2020, que uniu jovens da classe trabalhadora por cima de todas as fronteiras raciais.

A justiça burguesa: dura com os pobres, dócil com os ricos

Está à vista de todos o contraste entre, por um lado, o tratamento que nós, pobres e trabalhadores, recebemos e, por outro lado, o tratamento que recebem os criminosos da finança, os machistas, racistas e fascistas que lucram com a nossa exploração.

De acordo com os dados da DGRSP, 84,3% das penas de prisão são de média e longa duração (acima de 3 anos). No entanto, os crimes realmente violentos (violência doméstica, violação, homicídio...), são apenas 31% das condenações. Isto evidencia como a aplicação de penas brutais para a pequena criminalidade não é rara. O caso de Danijoy não é exceção, é regra.

É igualmente relevante notar que, de acordo com a mesma fonte, 83,5% dos presos condenados estão em prisões de segurança elevada, e ainda que 19,9% da população prisional está em prisão preventiva.

Uma vez mais, a severidade é redobrada contra os imigrantes, entre os quais a ocorrência de crimes violentos é 8,1% mais baixa, mas as penas de prisão de 3 ou mais anos são 4,2% mais comuns e a medida de prisão preventiva é aplicada em mais 14,2% dos casos.

Ao mesmo tempo, burgueses como João Rendeiro podem cometer crimes com impunidade, sendo mantidos em liberdade para fugir tranquilamente com os seus milhões. E racistas como Vítor Ramalho, o membro do Chega que, por ódio racista, tentou assassinar a tiro uma família inteira, não são considerados pelo Ministério Público suficientemente perigosos para ficar em prisão preventiva. A justiça tem classe!

Por justiça para Danijoy e Daniel, contra o capitalismo e o seu sistema prisional!

O Estado não é nosso nem está do nosso lado. O seu sistema prisional não existe para punir burgueses ou fascistas, existe para manter sob controlo os explorados e oprimidos. Danijoy e Daniel são só duas das mais recentes vítimas desta violência.

Combater este sistema exclusivamente por vias legais e burocráticas, recorrendo aos tribunais e ao Ministério Público sem mobilização dos trabalhadores e da juventude nas ruas é garantir a nossa derrota.

A classe trabalhadora só pode contar com a sua própria força! A organização dos trabalhadores e da juventude para uma ação política de massas é a única via real para a transformação da sociedade, como demonstrou o potente movimento Black Lives Matter recentemente, e como demonstra toda a história de luta da classe trabalhadora.

Há que lutar por:

- Libertação e fim das penas de prisão para todos os prisioneiros condenados por crimes não violentos. A prisão não é uma forma de “reinserção” nem de “educação”!

- Saneamento dos fascistas e racistas na polícia, nas guardas prisionais, nos tribunais e em todos os órgãos do Estado.

- Aumento do salário mínimo nacional, das pensões mínimas e do subsídio de desemprego para 1.200 euros. 

- Investimento massivo na habitação, com a criação de parques de habitação pública de qualidade e com rendas acessíveis. Nacionalização de todo o setor da energia e das águas sob controlo dos trabalhadores e estabelecimento de preços acessíveis.

- Investimento massivo num sistema de educação público, gratuito e de qualidade. Investimento numa rede nacional e pública de centros culturais, de desporto, lazer e bibliotecas. A juventude precisa de acesso gratuito à cultura e à educação!

- Direitos iguais para trabalhadores imigrantes e nacionais! Direito à nacionalidade portuguesa para todos os trabalhadores em Portugal.

- Nacionalização sob controlo dos trabalhadores e integração de todas as empresas de saúde privadas num Serviço Nacional de Saúde gratuito, universal e de qualidade. Investimento massivo, construção de infraestruturas e contratação de trabalhadores para o SNS.

- Reforço e desenvolvimento dos tratamentos para alcoolismo, toxicodependência e outros vícios no SNS.

- Nacionalização da banca sob controlo dos trabalhadores para permitir a realização de todas estas reivindicações.

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