A degradação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Portugal chegou a um ponto intolerável. No nosso último artigo sobre o SNS já tinhamos avisado que sem alterações estruturais que revertesse a degradação do SNS seria apenas uma questão de tempo até as tragédias se multiplicarem[1]. Esse tempo infelizmente chegou: no espaço de duas semanas, duas mulheres grávidas perderam os seus bebés.

No primeiro caso, tratou-se de uma residente do Seixal, que, queixando-se de dores intensas, foi encaminhada a cinco hospitais diferentes ao longo de duas semanas só para lhe ser garantido em todos eles que tudo se encontrava bem. O bebé nasceu com batimentos cardíacos fracos e morreu logo após o parto. No segundo caso, uma residente do Barreiro foi enviada pelo SNS 24 para o Hospital de Santa Maria e quando explicou que não tinha dinheiro para se deslocar não lhe foi dada outra solução. Só mais tarde, quando a situação já se tinha exacerbado, é que vieram os bombeiros levá-la para o Hospital de Cascais. O bebé já não resistiu.

Duas mortes perfeitamente evitáveis. A morte de mães e bebés por falta de prestação de cuidados de saúde adequados é o grau máximo de violência obstétrica. 

A taxa de mortalidade infantil subiu 20% em 2024 face a 2023 devido principalmente ao grande aumento de urgências de obstetrícia encerradas. O exacerbar da crise do SNS em Portugal põe em causa a vida de toda a classe trabalhadora. Enquanto os ricos vão aos privados nós trabalhadoras e trabalhadores perdemos a vida porque não temos condições para os pagar e somos obrigados a viajar horas até um hospital público com urgências abertas. Como ficou claro, os mais pobres e periféricos de nós, sem dinheiro sequer para deslocações, são os mais afetados.

É muito claro que o governo não está minimamente preocupado com estas mortes. De facto facilitou-as - e as que infelizmente virão - ao recusar-se sequer a preparar quaisquer medidas de reforço aos serviços de saúde nos meses de Verão. Outros órgãos como a Direção Executiva do SNS e a Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, vieram em auxilio do governo ao tentar normalizar a morte destes bebés, assegurando que se trataram de “complicações imprevisíveis” e de que foi dado “tratamento adequado” às grávidas.

Sejamos muito claros: isto não é normal e não são mortes, são assassinatos! Não aumentar o financiamento do SNS e não enfrentar os grupos privados, pelo contrário fazendo avançar a privatização do SNS, são escolhas políticas do governo que levaram a estes resultados mortais. É luta de classes. Os assassinos têm nomes: Luís Montenegro, Nuno Melo, a Ministra da Saúde Ana Paula Martins, todos os que fazem parte deste governo dos patrões e aqueles que o apoiam como André Ventura, interessados em aumentar a crise do SNS para fazerem os seus amigos da saúde privada lucrarem. 

Os burgueses da saúde esfregam as mãos de felicidade em saber que vão ser muito bem pagos ao receber cada vez mais grávidas nos seus hospitais vindas do SNS. Metade do orçamento do SNS já vai para estes parasitas, e será cada vez mais. Dinheiro que deveria ser usado para contratar mais médicos e enfermeiros, dar condições de trabalho dignas a trodos os trabalhadores da saúde e comprar equipamentos e materiais de forma a garantir que todos sejamos tratados dignamente num SNS público, gratuito e de qualidade. 

Perante a tragédia a prioridade do governo não é evitar mortes futuras, mas atacar uma conquista recente da classe trabalhadora, a publicação da lei que define a violência obstétrica.

Portugal lidera a violência obstétrica na Europa

Já tinhamos escrito sobre a violência obstétrica em Portugal, uma forma de violência machista física e psicológica extremamente comum para com as mulheres na gradivez e pós-parto e que afeta principalmente a classe trabalhadora, em particular pessoas racializadas e pessoas queer que gestam, ligando a destruição do SNS e da educação pública ao seu aumento[2].

Uma das formas mais prevalentes de violência obstétrica é a episiotomia, um corte na zona do períneo. Sem vantagem clínica comprovada, esta prática – que é efetivamente mutilação genital feminina – é desaconselhada pela OMS e perpetuada por interesse económico: faz com que o parto seja mais rápido, permitindo fazer mais partos com os mesmos parcos recursos médicos. No privado, acrescenta-se o incentivo de cobrar esta “operação” à parte, aumentando ainda mais os lucros extraídos aos utentes. Em Portugal a episiotomia continua a ser prática rotineira, imposta a 40% das mulheres, o dobro da média europeia, e quatro vezes mais do que a frequência máxima que a OMS aconselha.

Depois da episiotomia segue-se muitas vezes o “ponto do marido” — quando os médicos cosem o corte com mais pontos do que os necessários, tentando forçar a vagina a ficar mais apertada com o único propósito de dar prazer ao homem nas relações sexuais. Uma segunda mutilação genital e violação do nosso corpo! Somo tratadas como objeto sexual a satisfazer o homem em detrimento do nosso bem-estar: muitas de nós que a sofrem passamos a ter dores nas relações sexuais.

Estes são apenas dois exemplos de violência obstétrica, que inclui também agressões ou restrições físicas, utilização de métodos ou fármacos sem autorização, indução desnecessária do parto, negação do alívio à dor, insultos, ameaças e discriminação, desconsideração dos pedidos e preferências da mulher, omissão de informação sobre o parto e sobre os procedimentos adotados, etc.

Em março deste ano foi apresentada na Assembleia da República um projeto de lei que visava combater este flagelo – definindo a violência obstetrícia, procurando inseri-la na educação sexual e na formação de profissionais de saúde, e penalizando hospitais que desrespeitassem as recomendações da OMS. Da autoria do Bloco de Esquerda, foi aprovado com votos da esquerda, contra os votos e abstenções da direita. Claro, a violência obstétrica não acaba com uma assinatura num papel. Para tal é preciso alterar as condições materiais e relações sociais. Mas foi um primeiro passo para dar uma certa proteção às mulheres e pessoas que gestam na gravidez e pós-parto.

Ofensiva do governo aos direitos das mulheres e pessoas queer começa com a revogação desta lei

Com os resultados das últimas eleições, que vieram dar uma supermaioria à direita, o governo PSD-CDS tem como prioridade revogar essa lei, que pode não vir a durar sequer seis meses, uma demonstração clara da fragilidade das conquistas reformistas.

Os partidos da direita acusam a violência obstétrica de ser um conceito “excessivamente lato e indesejavelmente vago”, “que não existe” e que “não está definido cientificamente”, e cuja aplicação possa levar a “um excesso de intervenção junto dos médicos” e ser um obstáculo à natalidade. Na realidade, é um conceito muito concreto, que faz parte da prática quotidiana de uma saúde pública com equipas desfalcadas e pressionadas a gastarem o mínimo de tempo com cada utente, e da saúde privada que prioriza os lucros sobre a vida e dignidade humanas.

O governo é apoiados pela Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros, que emitiram comunicados de repúdio à lei como um ataque aos seus profissionais, embora de forma curiosamente contraditória, um atacando-a como desfasada da legislação europeia, e outro criticando-o como “inspirado em legislação estrangeira” sem enquadramento nacional devido. Enquanto isso, a Ordem dos Médicos, nas suas páginas, continua a perpetuar uma defesa da episiotomia em completo desacordo com o consenso científico[3], tentando justificar esta mutilação genital feminina com uma utilidade médica inexistente.

Esta tomada de posição reacionária não surpreende vinda das ordens profissionais, órgãos corporativos que apenas servem para defender os privilégios das suas profissões, e não a construir um movimento consequente em defesa da luta dos trabalhadores da saúde. Está nos seus interesses manter a medicina como uma profissão elitista, reservadas aos filhos da burguesia e pequena-burguesia, e velar pelos interesses dessas classes. O histórico de posicionamentos reacionários da Ordem dos Médicos é longo, e conta, por exemplo, com uma oposição à formação do SNS em 1979.

Perante as chocantes mortes de bebés por falha do SNS houve com certeza o receio da reação da classe trabalhadora se a proposta fosse aprovada em plenário, pelo que seguiu para a especialidade para poder ser discretamente passada mais tarde. O governo quer eliminar por completo o conceito de violência obstétrica da legislação da mesma forma que eliminou as referências à sexualidade e saúde sexual e reprodutiva da disciplina de Cidadania. Quer mulheres ignorantes, dóceis, que possam ser abusadas e sofrer violência machista sem consequências para os agressores. Não o deixaremos acontecer!

Direitos de trabalhadores e utentes são a mesma luta!

A luta contra a violência obstétrica é a luta pela melhoria das condições de trabalho dos trabalhadores de saúde. É a luta contra uma saúde pública que exige aos profissionais da saúde que mutilem e agridam mulheres para que possam trabalhar mais rapidamente, e a uma saúde privada que se foca em maximizar lucros. É a luta por uma saúde pública, gratuita e de qualidade, com condições para trabalhadores e utentes.

E para que tal saúde seja possível, é necessário que seja democratizada. Os hospitais têm de ser geridos democraticamente. A gestão privada e burocratizada da saúde prova-se cada vez mais como um autêntico desastre, que trata os utentes como gado, a explorar o máximo possível, e os trabalhadores como máquinas, que têm de se pôr a trabalhar o mais eficiente e brutalmente possível. A privatização da saúde pública, como a direita se prepara para levar a cabo, apenas vai exacerbar todos estes problemas. Basta ver como nos hospitais privados, práticas como a episiotomia e operações cesarianas desnecessárias já são ainda mais comuns do que na saúde pública, por permitirem “serviços” mais rápidos e caros, aumentando os lucros.

Os médicos, enfermeiros e restantes trabalhadores da saúde têm de rejeitar os sucessivos posicionamentos reacionários e corporativistas das Ordens da saúde e as tentativas das direções dos seus sindicatos de usarem a sua luta apenas para negociatas à porta fechada com o governo. Todos os trabalhadores da saúde têm de construir uma luta conjunta a partir da base, sem sectarismos, criando de comités de trabalhadores que também incorporem os utentes e que se coordenem a nível nacional para organizar uma greve geral da Saúde, discutida e votada diariamente em assembleias de trabalhadores. Só assim é possivel travar o avanço das privatizações, reverter a crise do SNS e conseguir condições de segurança para trabalhadores e utentes.

Um Programa para a Saúde, combativo e consequente, tem de exigir:

- Um SNS totalmente público, gratuito e de qualidade.

- A nacionalização total do sector da saúde. Basta de hospitais e agora centros de saúde privados a fazer da nossa saúde e dos partos um negócio!

- A gestão democrática dos hospitais pelos seus trabalhadores e utentes;

- Um aumento do investimento na saúde e educação, a formação e contratação de muitos mais profissionais, garantindo jornadas de trabalho dignas e seguras para trabalhadores e utentes;

- Uma educação sexual inclusiva, num sistema de educação igualmente público, gratuito e de qualidade sob controlo democrático dos professores e restantes trabalhadores das escolas e universidades e estudantes.

Estas são bandeiras que serão apoiadas plenamente pela classe trabalhadora, e servirão de base a um movimento capaz de fazer frente aos ataques deste governo da burguesia à nossa classe. Só a organização da nossa classe e a mobilização massiva nas ruas e locais de trabalho pode travar a ofensiva da burguesia!

Junta-te à Esquerda Revolucionária e às Livres e Combativas para construir a alternativa revolucionária!


Notas

JORNAL DA ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA

JORNAL DA LIVRES E COMBATIVAS

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