Donald Trump apressou-se a implementar o seu programa nestes dois meses em que esteve à frente do governo. Assinou 156 ordens executivas, quase duas por dia, incluindo as 45 que assinou no primeiro dia. Não há precedente como este na história dos Estados Unidos.

Este conjunto de ordens executivas é uma onda de ataques aos direitos das mulheres, das pessoas queer, dos migrantes e da classe trabalhadora em geral. É uma estratégia para atingir duramente os trabalhadores, a começar pelos migrantes, os mais desprotegidos, para criar um clima de paralisia e medo, e para tentar impor com pouca resistência o seu projeto de extrema-direita em benefício da oligarquia dominante.

Evidentemente, é uma aposta arriscada: colocar lenha na fogueira de uma realidade social e económica de empobrecimento massivo, desigualdade galopante e polarização máxima, alimenta a possibilidade de uma explosão social.

Se Trump age de forma tão determinada e arrogante, é também porque sabe que tem o oxigénio que lhe foi concedido pela suposta "oposição" democrata e pelas direções sindicais que, em vez de elaborarem um plano de luta nos locais de trabalho, nos bairros e localidades mais oprimidas, nas universidades e centros de estudo, dedicam-se, na melhor das hipóteses, a denunciar a "ilegalidade" das ordens de Trump e a depositar todas as suas esperanças nos juízes para que parem o avanço deste plutocrata de extrema-direita.

Os mesmos juízes que concederam impunidade a Trump nos vários processos judiciais de que era alvo há apenas um ano, que trataram com luvas de seda os trumpistas que invadiram o Capitólio em janeiro de 2021, que protegem a brutalidade da polícia racista e que não deixaram de criminalizar a esquerda combativa.

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Este conjunto de ordens executivas é uma onda de ataques aos direitos das mulheres, das pessoas queer, dos migrantes e da classe trabalhadora em geral. É uma estratégia para atingir duramente os trabalhadores, a começar pelos migrantes.

Leis excecionais. Um governo que recorre aos métodos do bonapartismo

O Partido Republicano, uma partido tradicional da classe dominante e trumpista até o núcleo, controla o Senado, a Câmara dos Representantes e o Supremo Tribunal, além de ter laços muito poderosos com as administrações federal e estadual. Pode fazer e desfazer a seu bel-prazer. Mas mesmo quando não tem maioria qualificada suficiente, o Partido Democrata vem em seu auxílio. Foi o que aconteceu a 14 de março com os orçamentos, aprovados com dez votos de representantes democratas sob o pretexto de evitar o encerramento parcial do governo e agir da "melhor maneira para minimizar os danos que o governo Trump fará ao povo estado-unidense".

Apesar de ter esta esmagadora maioria, não é por acaso que Trump opta por usar diariamente o seu poder presidencial e emite ordens executivas sem qualquer trâmite prévio. É uma forma autoritária e bonapartista de governar que se conecta com a sua base social, as camadas médias radicalizadas à extrema-direita e um sector de trabalhadores raivosos, desmoralizados e desmobilizados, que pensam em Trump como um grande homem que os devolverá a um passado esplêndido.

O website da Casa Branca é um bom exemplo dessas tendências: imagens triunfantes de Trump e o slogan "America is back", dezenas de ordens assinadas pelo próprio presidente e toneladas de propaganda nacionalista onde ele não hesita em mostrar a sua ideologia reacionária. Nada a ver com um antissistema, mas antes um demagogo populista que se tornou líder da extrema-direita global.

Outro ponto que ilustra o caráter autoritário do trumpismo é a invocação de leis de emergência para executar o seu programa. Em matéria de imigração, recorreu à Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798 com a desculpa de combater o Tren de Aragua, um gangue venezuelano que não é muito provável que tenha uma atividade coordenada e organizada nos Estados Unidos. Se esta lei for aplicada, com apenas uma acusação, mesmo que sem provas, qualquer cidadão venezuelano com mais de 14 anos que viva nos Estados Unidos pode ser vinculado ao Tren de Aragua sem a possibilidade de contestar a decisão ou se defender. Um abuso de poder que pode ser usado contra imigrantes que não cometeram nenhum crime e que residem legalmente nos Estados Unidos.

Mas há muito mais. 5.000 soldados e membros da Guarda Nacional foram destacados para a fronteira sul, e a intenção é aumentar esse número nas próximas semanas. O centro de operações de Guantánamo foi ampliado e centenas de prisioneiros começam a ser deportados para El Salvador, para serem internados nas famosas e aterrorizantes prisões de Bukele.

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Trump usa o seu poder presidencial e emite ordens executivas, uma forma autoritária e bonapartista de governar que se conecta com a sua base social, as camadas médias radicalizadas à extrema-direita.

Também foram revogados os contratos com ONGs que forneciam advogados a crianças migrantes não acompanhadas, deixando 26.000 crianças em processos de deportação num limbo jurídico. Trump assinou uma ordem executiva pondo fim ao "direito à cidadania por nascimento" e ordenou que estudantes-trabalhadores que trabalhem em organizações não aprovadas pelo governo sejam impedidos de ter acesso ao perdão de empréstimos estudantis.

Com todas estas regulamentações racistas, está a ser imposto um regime de terror às comunidades imigrantes. O Serviço de Imigração e Alfândega (ICE) persegue e invade todos os espaços: autocarros, escolas, campus universitários, locais de trabalho, igrejas, bairros... Entre 21 de janeiro e 13 de fevereiro, foram feitas mais de 15.000 detenções, cerca de 700 por dia, o dobro da já preocupante taxa habitual. Até mesmo um senador do Missouri propôs promover a figura do caçador de recompensas para encontrar imigrantes. Um apelo à base social do trumpismo para mobilizá-la e usá-la mais uma vez como uma força de choque contra a classe trabalhadora.

As famílias imigrantes trancam-se nas suas casas e evitam sair mesmo para as tarefas mais quotidianas, com medo de serem detidas e deportadas. Por exemplo, em Denver, as escolas públicas reduziram a sua frequência em 10%; no distrito escolar de Los Angeles, durante a primeira semana de fevereiro, a frequência caiu para 66%, 28% menos do que a média registada na semana anterior.

Tal como na Europa e no resto do mundo, a intenção da extrema-direita não é livrar-se por completo de uma mão-de-obra imigrante que proporcione lucros imensos através da exploração brutal, mas amedrontá-la e discipliná-la para impor piores condições de trabalho, sufocar qualquer tipo de oposição e semear ainda mais a divisão no seio da classe trabalhadora. Os imigrantes tornaram-se bodes expiatórios da crise e da decadência social nos Estados Unidos, a fim de desviar a atenção daqueles que são verdadeiramente responsáveis por ela, os capitalistas e o seu sistema.

Trump também atacou as universidades públicas. O governo enviou uma carta a 60 universidades acusando-as de não tomarem medidas para "proteger os estudantes judeus" e ameaçando cortar o seu financiamento se permitirem protestos contra o genocídio sionista na Palestina. Já fez isso com a Universidade de Columbia, em relação à qual cancelou 400 milhões de dólares em bolsas. O ICE também semeou o terror aqui, prendendo dois estudantes, um deles o ativista pró-palestino Mahmoud Kalil, que residia legalmente nos EUA, mas que ainda assim será deportado.

Trump garantiu que os estudantes que protestarem "serão permanentemente expulsos ou, dependendo do crime, presos". O Departamento de Estado anunciou que usará ferramentas de inteligência artificial para revogar vistos de estudantes estrangeiros que considere apoiar o Hamas ou outros grupos terroristas.

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Tal como na Europa e no resto do mundo, a extrema-direita não quer livrar-se dos imigrantes que proporcionam lucros imensos através da sua exploração brutal, mas discipliná-los para impor piores condições de trabalho.

Elon Musk e a "eficiência do governo"

Toda a propaganda de Donald Trump e de Elon Musk, até agora à frente do Departamento de Eficiência Governamental, não é mais do que uma repetição grosseira das abordagens demagógicas da extrema-direita internacional sobre a necessidade de acabar com o “desperdício do Estado”.

Evidentemente, as suas intenções não são reduzir o tamanho do Estado capitalista, se fosse esse o caso, não estaríamos a testemunhar a expansão das estruturas militares e policiais. Por um lado, trata-se de demitir milhares de funcionários públicos para privatizar serviços essenciais e conceder mais recursos estatais aos empresários. E, por outro, garantir o seu domínio total do aparelho de Estado, do poder judicial, da polícia e dos seus sectores-chave para derrotar qualquer resistência aos seus planos. Ou seja, usar as instituições para consolidar a sua agenda reacionária e totalitária

Trump não é um líder antissistema. O disparate difundido pela propaganda “anti-woke”, que alguns tolos compraram, serve para branquear a substância da sua política: a de um reacionário anticomunista, inimigo declarado da classe trabalhadora e das suas organizações de luta.

Como o seu estimado amigo Milei na Argentina, o presidente Trump direcionou a sua fúria para desmantelar o Departamento de Educação, atingindo os sectores mais combativos do corpo docente e com o objetivo de minar um serviço público essencial. Também atacou fortemente o Ministério da Saúde, com um enorme corte no seu orçamento, e em relação à Administração Federal tem em mente demitir 200.000 trabalhadores que estão em período probatório. Embora Musk não possa demitir ou contratar legalmente, já estão a ocorrer demissões. Enquanto isso, os sindicatos liderados por uma direção controlada pelos democratas dedicam-se a pregar que se deve confiar na justiça e, com a sua passividade, estendem a mão a Trump.

Os sindicatos também estão sob ataque. A 27 de março, Trump assinou uma ordem executiva onde o direito à negociação coletiva de mais de 30 agências era suprimido: "Proteger a segurança nacional dos Estados Unidos é um dever constitucional fundamental, e o presidente Trump recusa-se a permitir que a obstrução sindical interfira nos seus esforços para proteger os estado-unidenses e os nossos interesses nacionais". Um bom exemplo da essência do trumpismo e de que não tem problemas em libertar-se dos formalismos da democracia capitalista para executar o seu programa.

Tanto a AFGE, o sindicato maioritário do sector público, como a AFL-CIO fizeram declarações apontando que se trata evidentemente de uma retaliação por denunciarem os despedimentos da Administração Trump. No entanto, voltam à abordagem errada de que serão os juízes a travar Trump.

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Trump não é um líder antissistema. O disparate difundido pela propaganda “anti-woke” serve para branquear a substância da sua política: a de um reacionário anticomunista, inimigo declarado da classe trabalhadora e das suas organizações de luta.

O futuro não está escrito

O choque inicial que o trumpismo desencadeou é muito grande, mas isso não significa que a classe trabalhadora estado-unidense esteja derrotada. Na verdade, é perfeitamente possível montar uma resistência massiva contra Trump.

Nas últimas semanas, Bernie Sanders e Alexandra Ocasio-Cortez estão a protagonizar uma série de eventos públicos com o slogan "Lutando contra a oligarquia", e lotaram espaços com dezenas de milhares de pessoas, 24.000 no Arizona, 34.000 em Denver... Aqui está a prova do potencial para levantar um movimento de massas contra Trump e a extrema-direita global.

E tudo isto apesar das oportunidades perdidas por estes dirigentes da esquerda reformista Democrata, que desistiram de levantar uma alternativa de esquerda independente e, como parte do Partido Democrata, apoiaram Joe Biden e Kamala Harris, facilitando o avanço do trumpismo entre sectores da classe trabalhadora.

Agora Sanders e Ocasio-Cortez criticam a passividade do Partido Democrata e aproximam-se de um sector muito amplo que vê nos democratas os campeões da paz social, os responsáveis por permitir o genocídio sionista contra o povo palestiniano, e os representantes de uma aristocracia liberal ligada ao grande capital que virou as costas às massas da classe trabalhadora e da juventude, e que são os militaristas e imperialistas mais ferrenhos. Mas Sanders e Ocasio ainda não romperam com essa máquina podre e, obviamente, não têm uma alternativa socialista e de classe consequente.

Também no website do Democratic Socialists of America (DSA) pode ler-se: "O Partido Democrata está dividido na sua resposta, e os seus dirigentes, como Chuck Schumer e Hakeem Jeffries, não conseguiram estar à altura da ocasião nem montar uma defesa credível contra Trump. Isso não é surpreendente vindo do partido que entregou a Casa Branca aos republicanos, fazendo campanha com base num status quo fracassado em vez de lutar para aumentar os salários e reduzir a pressão de preços. Para derrotar o fascismo, precisamos do socialismo."

Estamos de acordo, mas qual é a conclusão deste raciocínio? Que não devemos romper com a burocracia Democrata, que devemos permanecer dentro do seu guarda-chuva, agindo como a sua esquerda leal? Não. Essa não é a solução, e é por isso que o declínio do DSA é tão pronunciado e a sua perda de credibilidade foi meteórica.

A conclusão de tudo o que aconteceu nestes anos é que devemos construir uma alternativa de combate que levante a resistência contra Trump, apoiando-nos nos sectores mais avançados do movimento dos trabalhadores e da juventude, desenvolvendo um sindicalismo combativo e de classe, intervindo nos movimentos sociais, na luta antirracista e feminista com um claro programa socialista.

A enorme raiva e indignação latente na classe trabalhadora estado-unidense vai explodir.1 As mobilizações de migrantes a 3 de fevereiro, desafiando o ICE e o terror, são um bom exemplo de que a resistência contra Trump pode ser levantada e que, sem dúvida, se tornará mais massiva a partir da deceção e da amarga experiência dos próximos meses.

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Trump representa uma séria ameaça para as pessoas oprimidas de todo o mundo. E só conseguiremos derrotá-la construindo uma alternativa revolucionária, socialista e internacionalista consequente.

Nos últimos anos assistimos a marcos muito importantes de auto-organização que vieram desafiar o aparelho Democrata e a burocracia sindical. Começando com as mobilizações históricas do Black Lives Matter, continuando com o desenvolvimento de um movimento sindical jovem e radicalizado que se espalhou energicamente, e alcançando as manifestações e ações de massa contra o genocídio do povo palestiniano.

Trump representa uma séria ameaça para as pessoas oprimidas de todo o mundo. E só conseguiremos derrotá-la construindo uma alternativa revolucionária, socialista e internacionalista consequente.


Notas

1. NdT: um dia depois do artigo original ser publicado milhões de pessoas participaram em mais de 1200 manifestações nos 50 estados do país, organizadas pelo movimento "Hands Off" composto por mais de 150 organizações, incluindo de direitos civis, queer e sindicatos, contra os ataques à comunidade imigrante e queer, a vaga de despedimentos de funcionários públicos, etc.

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