A história da esquerda portuguesa é uma história peculiar. É marcada por três elementos chave: um regime fascista excepcionalmente duradouro, o “Estado Novo”; a Revolução Portuguesa de 1974, assim como a sua derrota; e, finalmente, a queda da União Soviética e das economias planificadas. Aqui apenas podemos tratar essa história superficialmente. O nosso objectivo é analisar o actual estágio de desenvolvimento da esquerda, a sua estrutura e programa, de forma a poder delinear as nossas perspectivas e tarefas neste novo período, marcado pela crise económica e política do capitalismo, mas igualmente por uma renovada luta de classes e pela reorganização do movimento socialista.
Um breve olhar sobre uma história particular
Como mencionado, o regime fascista excepcionalmente duradouro de António de Oliveira Salazar foi decisivo na configuração da esquerda portuguesa. O seu partido mais antigo, o Partido Comunista Português (PCP), foi fundado em 1921 por um pequeno grupo maioritariamente composto por anarco-sindicalistas inspirados pela Revolução de Outubro. Ao contrário da grande maioria dos partidos comunistas europeus, o PCP não resultou da cisão da ala esquerda de um partido social-democrata ou socialista de massas com tradições marxistas e, portanto, com elementos das suas muitas tendências. A ausência de um tal partido em Portugal também representou a ausência dum movimento marxista consolidado. Esta é a primeira peculiaridade que queremos enfatizar. Daqui resultam o desenvolvimento do PCP sob a influência ideológica e organizacional do estalinismo e de Moscovo e ainda a ausência da oposição de esquerda trotskista. É isto que explica a fraqueza que o movimento trotskista viria a ter no país.
Sob estas circunstâncias, o Partido Comunista tornou-se a referência central de todas as organizações de esquerda que surgiram muito mais tarde, nos anos finais da ditadura. O PCP é visto, e com razão, como a organização anti-fascista mais importante, beneficiando de grande prestígio entre a classe trabalhadora e trabalhadores rurais pobres no início da Revolução Portuguesa de 1974. Durante a Revolução, rapidamente se tornou numa organização de massas com mais de 100.000 membros, controlando a confederação sindical mais importante, a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN), que, apesar da sua crise profunda, actualmente ainda representa 700.000 trabalhadores.
Fundado por um pequeno grupo de intelectuais pequeno-burgueses em 1973, na Alemanha, debaixo das asas do SPD alemão, o Partido Socialista (PS) também tem um passado peculiar. Diferentemente da maioria dos seus homólogos europeus, nunca foi o histórico partido da classe trabalhadora portuguesa. Contudo, durante a Revolução, ao apresentar um perfil socialista — chegando mesmo a intitular-se marxista — em oposição ao estalinismo, rapidamente ganhou influência de massas e tornou-se, ao lado do PCP, o partido mais importante da classe trabalhadora. No entanto, os seus líderes, ao redor de Mário Soares, desempenharam o papel de representantes do imperialismo ocidental e, com o seu apoio, realizaram a liquidação do processo revolucionário em Novembro de 1975.
A organização mais importante da chamada extrema-esquerda era a maoísta União Democrática Popular (UDP), com uma importante presença na classe trabalhadora industrial durante os anos 70. Como notámos acima, o trotskismo era fraco em Portugal. A sua primeira organização foi a Liga Comunista Internacionalista (LCI), fundada em 1973 como a secção portuguesa do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI), com influência sobretudo entre o movimento estudantil. A LCI viria a formar o Partido Socialista Revolucionário (PSR), que juntamente com a UDP fundou o Bloco de Esquerda (BE) em 1999.
A Revolução dos Cravos moldou a esquerda portuguesa, transformando-a numa força de massas, mas com a derrota da Revolução veio a crise da esquerda. Os anos 80 foram um período de contra-revolução, capitulação da esquerda, enorme desmoralização e desmobilização. Esta crise intensificou-se nos anos 90, com a queda da União Soviética. O PS, à semelhança dos seus homólogos internacionais, concluiu um processo que no seu caso começou muito mais cedo. Quebrando a maioria dos seus laços com a classe trabalhadora organizada e abraçando decididamente o neoliberalismo, consolidou o sistema bipartidarista do capitalismo em Portugal. Por outro lado, o PCP, ao contrário da maioria dos partidos comunistas internacionalmente, manteve a sua posição e não se deslocou para a direita, em direcção ao eurocomunismo, nem apoiou a União Europeia. Não obstante ter sofrido enormes derrotas, conseguiu manter a organização e influência no movimento dos trabalhadores, ainda que entrando numa lenta mas duradoura crise. Para a extrema-esquerda, este período representou a perda de grande parte da sua presença nos sindicatos — as organizações de massas dos trabalhadores.
O Bloco de Esquerda é um partido criado em 1999 a partir da coligação entre três pequenas organizações socialistas: a maoísta tornada eurocomunista UDP, o mandelista[1] PSR e a eurocomunista Política XXI. Estas organizações formaram o Bloco de Esquerda como resposta às suas próprias crises e isolamento, mas pela altura em que o fizeram já tinham perdido a referência e as raízes na classe trabalhadora. A liderança do Bloco de Esquerda era dominada por liberais pequeno-burgueses que, apesar de permanecerem socialistas numa base moral, na realidade haviam perdido toda a confiança na classe trabalhadora e no próprio socialismo, incapazes de ter qualquer perspectiva para além dos limites do capitalismo. O partido cresceu à volta de questões que foram negligenciadas pelas organizações tradicionais (PCP e PS), como o feminismo, anti-racismo e direitos LGBT. Houve aqui um elemento positivo, mas o partido foi incapaz de articular estas questões com a luta de classes, escorregando repetidamente para posições liberais. Devido a isto, desenvolveu uma natureza parlamentar, incapaz de imaginar mudanças reais vindas de fora das instituições capitalistas. Todos estes elementos permanecem até hoje dominantes — mudaram apenas na medida em que se intensificaram.
O início da crise: um novo período para a esquerda
Como por todo o lado, o início da crise capitalista mundial em 2008 marcou um novo período para a esquerda. A história das suas organizações é importante para agora compreender como reagiram à crise, e quais foram as consequências, não apenas para si, mas para a classe trabalhadora como um todo.
Os dois primeiros anos tiveram um efeito atordoante. A crise encontrou a esquerda, e a classe trabalhadora no geral, sem uma resposta imediata. Mas a austeridade chegou e a raiva começou a acumular-se, primeiro nas bases da classe trabalhadora organizada, os sindicatos, e depois alcançando novas camadas: a nova geração de trabalhadores precários e jovens que perdiam a esperança de ter melhores condições de vida que os seus pais.
Em Junho de 2010, depois do anúncio de dois pacotes de austeridade por parte do governo do PS, a CGTP-IN organizou uma manifestação massiva que levou 100.000 trabalhadores às ruas de Lisboa. Em Setembro o ânimo tornou-se mais combativo uma vez que outro pacote de austeridade foi proposto, forçando a burocracia sindical a convocar a primeira greve geral de 24 horas em Novembro, após outra manifestação massiva contra a Cimeira da NATO em Lisboa. O início de 2011 foi marcado pelas revoluções do Norte de África — na Tunísia e no Egipto. As ondas provindas destas revoluções foram muito além do Médio Oriente, e a 12 de Março uma manifestação contra a precariedade, convocada através das redes sociais, mobilizou 200.000 trabalhadores e jovens para protestarem nas ruas de Lisboa e Porto, com acções em todas as principais cidades do país. Foi, em muitos anos, a primeira vez que uma manifestação de massas aconteceu fora do controlo do Partido Comunista, marcando a entrada de uma nova camada da classe trabalhadora no movimento.
Entrámos num período de mobilizações de massas e crise política no sul da Europa, liderado pela classe trabalhadora grega. A classe dominante, que já duvidava da capacidade do governo para implementar novas medidas de austeridade, decidiu derrubá-lo após as manifestações de Março. A Troika (Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu) foi trazida para o país e todos os partidos capitalistas no parlamento assinaram o memorando que ditaria a política do próximo governo. Mas 2011 não terminaria sem novas acções de massas. Respondendo ao apelo vindo do Estado Espanhol, a juventude por todo mundo mobilizou-se contra o sistema corrupto dos 1%. No dia 15 de Outubro assistimos ao início do movimento Occupy (Ocupa). Em Lisboa, uma manifestação de 100.000 pessoas culminou numa assembleia popular na escadaria do parlamento, exigindo o não pagamento da dívida pública, a nacionalização do sistema bancário e apelando aos sindicatos para convocarem uma nova greve geral. Alguns dias depois a greve geral foi convocada e, pela primeira vez em Portugal, acompanhada de protestos nas ruas.
Apenas alguns meses após a eleição de um novo governo conservador o movimento de massas já exigia a sua queda, acompanha por exigências que chocavam directamente com o sistema capitalista. Tais movimentos continuariam até ao Verão de 2013. Depois de 5 greves gerais de 24 horas, a primeira greve geral Ibérica da história e duas manifestações de massas com um milhão de pessoas (num país de 10 milhões), o governo de direita estava em farrapos, à beira do colapso. Mas a oportunidade foi desperdiçada. No momento decisivo, os líderes do Bloco de Esquerda, do Partido Comunista e da CGTP-IN escolheram a inacção.
Qual foi o papel da esquerda em todos estes processos? O Partido Comunista teve à sua disposição a maioria do movimento sindical, tinha (e tem) a capacidade de organizar acções de massas autonomamente, se assim o desejasse. Contudo, a sua liderança, tanto no próprio partido (parlamentar e extra-parlamentar) como na CGTP-IN, absteve-se de o fazer. Os líderes comunistas salvaram o governo mais do que uma vez! Sempre que a classe trabalhadora pressionava para acção de massas — colocando o governo de joelhos —, em vez de obter como resposta das burocracias um plano claro de acção para as suas exigências vencerem, obtinha discursos vazios pedindo ao Presidente da República — membro do partido conservador no poder — para destituir o governo. Tais discursos nunca foram acompanhados por apelos a um escalar da mobilização, mas sim pela habitual atitude do “esperar para ver”. O Presidente ignorou-os alegremente.
Tendo-se tornado um travão em vez de um motor para a acção e ignorando completamente os novos movimentos de jovens trabalhadores precários, o PCP não cresceu neste novo período, nem eleitoralmente nem em membros. Ao repetidamente desmobilizar a classe trabalhadora, intensificou a sua crise. Quando as eleições legislativas de 2015 deram ao PCP um único novo assento no parlamento, os comunistas não tinham como esconder a sua frustração.
O Bloco de Esquerda tinha pouco mais do que os seus deputados quando o movimento começou. Anos de parlamentarismo esvaziaram o partido de quaisquer militantes activos na sua base. Sem nenhuma força nos sindicatos, teve de se virar para os novos movimentos inorgânicos, mas desempenhou nesses movimentos o papel que o PCP desempenhava nos sindicatos. Desta forma, ao mesmo tempo que uma nova geração partia para a luta procurando alternativas e organização, o BE entrava na sua pior crise até então. Os dirigentes estavam sempre mais inclinados para procurar acordos com o PS (igualmente em crise) do que para apoiar-se audaciosamente nos novos movimentos de massas. No entanto, a pressão do movimento impediu-os de ir longe demais. Esta política oscilante custou ao BE cisões tanto à direita — com os que queriam uma aliança com o PS a qualquer custo — como à esquerda — com os que desejavam orientar o partido claramente em direcção ao movimento. Nas eleições legislativas de 2011 perdeu metade dos seus deputados e, em 2014, perdeu dois dos três lugares no Parlamento Europeu. Somente quando o movimento declinou e o epicentro da luta de classes retornou à política parlamentar é que o partido começou a recuperar e a beneficiar parcialmente da raiva de classe que ainda crescia sob a superfície de paz social. Tendo como pano de fundo a ascenção geral da esquerda — primeiro o Syriza na Grécia, depois o Podemos no Estado Espanhol, Bernie Sanders nos EUA e Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista —, em 2015, o Bloco de Esquerda viu os seus votos aumentar de 5,2% para 10,2%, elegendo mais 11 deputados. Este resultado trouxe consigo um novo impulso ao partido e, na ausência de movimentos de massas, transformou-o uma vez mais na principal porta de entrada para os trabalhadores e jovens que procuram tornar-se activos politicamente. Este fenómeno está agora a ser enfraquecido pelo apoio do partido ao novo governo do PS e ao seu programa de austeridade light.
“Marx está de volta!”, mas onde está o socialismo? — A questão programática
Assim que a crise mundial começou e todas as ilusões no neoliberalismo rebentaram tal qual as suas bolhas especulativas, os pensadores mais avançados do capitalismo lançaram gritos de “Marx estava correcto!” e “Marx está de volta!”. Paradoxalmente, os dirigentes reformistas da esquerda gritam até hoje “ortodoxo!” a qualquer pessoa que proponha uma posição marxista consequente.
Tal como vimos pela abordagem da esquerda ao anterior período de mobilizações de massas, a subordinação dos seus dirigentes às instituições capitalistas resulta num programa que se recusa a ir além do capitalismo. Tanto os dirigentes do Bloco de Esquerda como os do Partido Comunista sonham com um capitalismo melhor, mais progressista, não-monopolista, não-imperialista, um capitalismo que, sob a liderança iluminada destes dirigentes, avance gradualmente em direcção ao socialismo e, num futuro sempre distante, chegue pacificamente ao seu destino.
É importante assinalar que há muitas exigências correctas — nos programas de ambos os partidos — que apoiamos, como a abolição das propinas, um sistema financeiro público, melhores salários e condições de trabalho, a reconstrução dos serviços públicos ou uma oposição de esquerda à União Europeia dos patrões. Hoje, este último ponto tem especial relevância. A posição histórica do PCP é de oposição à UE como uma aliança capitalista, enquanto que o BE, após a capitulação do Syriza, tendo percorrido um longo caminho desde o mais entusiasta eurocomunismo, acabou por desenvolver uma posição similar. Ainda assim, nenhum dos partidos apresenta uma alternativa socialista e internacionalista, baseando-se antes num regresso ao capitalismo nacional. A questão é que, dado o actual estágio de desenvolvimento do capitalismo, estas exigências não são possíveis dentro dos limites capitalistas, portanto, na hora H, todas as lideranças da esquerda capitulam.
A abordagem institucional e reformista resultou numa táctica falhada
Depois de 4 anos de brutal austeridade implementada pelo governo mais odiado da Terceira República, o Partido Socialista ainda assim foi incapaz de se apresentar como uma alternativa credível, perdendo as eleições legislativas de Outubro de 2015. Este foi o momento mais débil do sistema bipartidário português até hoje, tanto a coligação conservadora como o PS não conseguiram formar governo por si mesmos.
Nestas circunstâncias, apoiámos a táctica de possibilitar um governo PS, no contexto de uma esquerda parlamentarmente fortalecida. Em primeiro lugar, seria inaceitável, do ponto de vista da classe trabalhadora, permitir que os conservadores voltassem ao poder. Em segundo lugar, possibilitar este governo iria proporcionar uma enorme oportunidade à esquerda para, através de mobilização significativa, forçar um governo frágil do PS a fazer importantes concessões. Era a oportunidade de obter importantes vitórias como forma de agitar e ganhar ímpeto para um governo de esquerda com um programa socialista e baseado numa frente unida das forças de esquerda.
Em vez disso, as lideranças do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista iniciaram as negociações com o PS sem uma estratégia comum e à porta fechada, enquanto bloqueavam quaisquer mobilizações sérias, produzindo acordos fracos onde não se almejavam quaisquer mudanças reais. Não vendo nenhuma alternativa às instituições burguesas, estas direcções partidárias procuram tão-somente geri-las, mas acabam a ser elas próprias geridas por essas instituições.
Enquanto os conservadores estavam afogados numa crise profunda, dado que o governo manteve no essencial [económico] a política conservadora, não foi a esquerda quem capitalizou com a situação, mas antes o PS. Os actuais dirigentes da classe trabalhadora optaram por capitular perante um governo vinculado às políticas neoliberais e à austeridade da UE. Em vez de mobilizar para construir uma alternativa de esquerda ao “extremo-centro”, em vez de expôr o PS, estão a resgatá-lo, projectando sobre ele uma aura de esquerda. Eis a questão fundamental do novo governo sustentado pela esquerda — a chamada “geringonça” —, que funciona perfeitamente para a classe dominante e, como tal, merece o seu maior apoio. O próprio Sr. Schaüble concedeu-lhe a sua benção.
O desperdício de outra enorme oportunidade já está a ter efeitos negativos na esquerda e no movimento dos trabalhadores. Quando uma estratégia arrojada da CGTP-IN para alcançar e organizar novos sectores precários, associada a um plano combativo para defender os serviços públicos e postos de trabalho, é mais necessária do que nunca e tem grandes hipóteses de sucesso, os dirigentes da central sindical bloqueiam qualquer acção séria e aumentam a distância entre os sindicatos e a nova geração de trabalhadores, ao mesmo tempo que desmoralizam a velha guarda de trabalhadores sindicalizados. A submissão ao governo está, portanto, a intensificar a crise da CGTP quando a filiação sindical já se encontra num nível historicamente baixo. O desgaste da confederação liderada pelo PCP é o desgaste do próprio partido.
O Bloco de Esquerda tornou-se um conselheiro de esquerda para o governo, e esta táctica está a ter o seu preço. A mobilização, assim como as estruturas de base necessárias para a materializar, são o que o BE precisava para consolidar o seu crescimento após o sucesso eleitoral no final de 2015. Ao manter a organização vazia, os seus dirigentes reformistas esperam apenas manter uma base passiva para utilizar em períodos eleitorais — e é exatamente isto que fazem.
Eleitoralmente, as sondagens mostram uma esquerda estagnada — ou até mesmo em ligeira contracção — enquanto o PS se aproxima de uma maioria absoluta a cada dia, num momento em que deveria estar a lutar pela sua sobrevivência! Mas uma vez que uma nova crise se aproxima, e com ela mais austeridade, as coisas só podem azedar para o PS, tal como para os seus apoiantes de esquerda. A primeira derrota eleitoral da esquerda já teve lugar nas eleições autárquicas no final de 2017, com o PCP a perder 10 câmaras para o PS e o BE a permanecer uma força insignificante ao nível local.
Um beco sem saída… ou uma saída à esquerda?
À medida que nos aproximamos do último ano de governo do PS, a natureza da chamada “geringonça” torna-se cada vez mais clara para todos. Apesar da aparente recuperação económica, as condições de vida continuam a deteriorar-se. As migalhas conseguidas com os acordos entre o PS e a esquerda, ao contrário do prometido, foram incapazes de “travar o empobrecimento”. A classe trabalhadora continua a enfrentar o aumento da precariedade, uma queda dos salários reais, serviços públicos em colapso e uma crise da habitação de proporções dramáticas, enquanto os ganhos reais do crescimento económico se mantêm restritos à burguesia.
Como consequência, o refluxo na luta de classes dá lugar, lenta mas firmemente, a um novo período de mobilizações de massas. Já podemos notar um aumento de pressão sobre o governo e os seus apoiantes, e como isso afecta as atitudes de uns para outros. Por um lado, o PS é mais assertivo nas exigências de “responsabilidade” que lança à esquerda e, simultaneamente, mostra uma abertura crescente a acordos com os novos dirigentes da direita conservadora. Por outro lado, a esquerda é forçada a tornar-se mais crítica do governo à medida que se torna óbvio que este recuará nas concessões previamente acordadas de maior importância — continuando a reivindicar o crédito por todos os ganhos conseguidos. Contudo, os dirigentes reformistas recusam-se a romper com o governo, o que, nesta altura, significa a aprovação do próximo orçamento de austeridade, dando ao PS o aval para ignorar as principais exigências da crescente luta de sectores chave, como é o caso dos enfermeiros e dos professores.
Como dissemos repetidamente em outras ocasiões, o surgimento de uma nova onda de luta de massas provocada pela continuidade da austeridade durante uma aparente recuperação económica, e o desenvolvimento desse movimento no contexto de uma nova crise financeira, colocará a classe trabalhadora em choque frontal com o próximo governo do Partido Socialista. Dissemos igualmente que o destino do PS está ligado ao destino do próprio capitalismo, e que o seu colapso pode ser adiado, mas nunca evitado. O PS dirige-se a um beco sem saída já na próxima crise. A esquerda portuguesa só evitará partilhar este destino rompendo com as suas políticas de conciliação de classes — recusando-se a apoiar o próximo orçamento se ele significar a continuação da austeridade — e construíndo um plano de acção audaz, munido de políticas socialistas para lutar por um governo 100% anti-austeridade em 2019.
O papel central da juventude na reconstrução de uma esquerda socialista de massas
Com a crise política e económica do capitalismo, a busca por alternativas começou principalmente entre a juventude. A consciência de classe eleva-se novamente, estando a passar pelas suas primeiras fases embrionárias. Os movimentos de massas em torno dos programas anti-austeridade de Bernie Sanders, Jeremy Corbyn, Mélenchon e AMLO representam esta tendência generalizada para as ideias socialistas. À medida que estes processos se desenvolvem, o mesmo acontece com a crise do sistema bipartidário burguês. Em Portugal, os movimentos de massas entre 2010 e 2013 mostram-nos um panorama similar.
Estamos uma vez mais perante um quadro peculiar: a classe trabalhadora afasta-se do centro e sente-se cada vez mais atraída pelas ideias socialistas; entretanto, os líderes da esquerda movem-se no sentido oposto. Este segundo movimento não passa despercebido, e a resposta, na forma de novas tendências e grupos de esquerda, já pode ser vista, tanto no interior como na periferia do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista. Os reformista, portanto, são forçados a reajustar os seus discursos. O que agora testemunhamos em Portugal é o prelúdio de uma intensa reorganização da esquerda, um fenómeno que está a ocorrer por todo o mundo.
Nos sindicatos da CGTP-IN está a tornar-se cada vez mais difícil bloquear acções dos trabalhadores, especialmente dos trabalhadores da educação e da saúde, onde a continuação da austeridade é sentida de forma mais aguda. A combatividade cresce e exerce pressão sob as direcções políticas. Nos últimos dois anos, temos visto fortes mobilizações e ondas grevistas entre enfermeiros, médicos e professores que exigem não só que o governo cumpra as suas promessas mas também que vá além delas para salvar os serviços públicos. A direcção da confederação sindical tenta desviar estas lutas ao mantê-las tão isoladas quanto possível, e recusando-se a organizar acções articuladas de greve e protesto. Esperam cansar estes trabalhadores antes que a sua luta se torne um combate político generalizado contra o governo.
Em 2016, após meses de greve terem culminado numa manifestação contra o trabalho precário, os estivadores de Lisboa não só travaram os planos dos patrões para a liberalização do porto da capital como iniciaram ainda um processo de construção de um sindicato nacional. Estão a organizar em torno das suas tradições de militância todo o sector logístico para acabar com a austeridade em todos os portos do país. Da mesma forma, um novo sindicato nacional de trabalhadores de call center está a ser construído, representando os primeiros passos para organizar um dos sectores que mais cresce na economia portuguesa. Um novo sindicato de professores também foi criado, em 2018, e embora seja uma organização pequena e isolada, está a ter um impacto modesto mas importante nas últimas mobilizações, podendo crescer se for capaz de oferecer uma alternativa combativa aos sindicatos burocratizados. Estes desenvolvimentos, especialmente com a acção de revolucionários, podem ter um efeito galvanizador em sectores ainda desorganizados.
Como dissemos anteriormente, um processo similar está a ocorrer ao nível político. Vemos novos grupos e tendências de esquerda a sair da esfera de influência do PCP. Embora permaneçam dominados por uma tradição estalinista, precipitando-se por vezes em posições ultra-esquerdista e sectárias, estes grupos representam sobretudo uma positiva busca por uma saída socialista da crise.
No Bloco de Esquerda está a acontecer uma procura semelhante, e a nossa secção, Socialismo Revolucionário, desempenha uma função chave aí. Apesar da purga da maioria dos nossos membros do BE, ainda somos capazes de influenciar a discussão interna, como ficou demonstrado quando a ala esquerda dentro do partido foi a primeira tendência a adoptar a nossa proposta de salário mínimo de 900€. Lutamos por um programa socialista claro, um plano de acção audaz e um BE democrático e combativo que seja capaz de realizá-lo. Em 2016, o nosso trabalho entre a juventude fez com que a liderança tivesse a reacção atabalhoada de expulsar a nossa pequena organização, o que resultou numa grande onda de solidariedade de outros elementos críticos dentro do partido.
Uma vez que o Bloco de Esquerda continua a ser uma das principais portas de entrada na política para a nova geração de trabalhadores que procuram ideias socialistas e se mostram receptivos ao marxismo, a contradição entre estes elementos proletários e os líderes liberais pequeno-burgueses continuará a desenvolver-se e a fortalecer tendências revolucionárias dentro do partido. A nossa tarefa é construir um partido amplo em simultâneo com a tendência revolucionária. Desta forma, é necessário enfatizarmos a necessidade de uma frente unida da esquerda e das organizações de trabalhadores, construída desde a base, como o alicerce para uma alternativa socialista ao actual governo capitalista.
Em todos estes processos de reorganização e radicalização podemos ver o embrião das futuras organizações socialistas de massas em Portugal. Com uma nova crise a pairar no horizonte, e com ela novos desafios e dificuldades, um novo movimento socialista de massas emergirá para enfrentar batalhas titânicas com a nova geração procurando salvar-se, assim como salvar o próprio planeta, do capitalismo. O armamento deste movimento com o programa do socialismo e com um partido revolucionário de massas será o factor decisivo para alcançar a vitória.
As palavras de Marx não estão esquecidas: “Os proletários nada têm a perder a não ser as suas correntes. Têm um mundo a ganhar!”
[1] De Ernest Mandel (1923-1995), dirigente histórico do Secretariado Unificado da Quarta Internacional.
Este artigo é uma versão actualizada e adaptada do artigo escrito no Verão de 2017 para o livro Die Linke International (A Esquerda Internacional), editado pela Manifest Verlag, em Março do ano corrente.