As eleições presidenciais de 2021 realizam-se no contexto de uma crise mundial do capitalismo que só pode ser comparada à década de 30 do século passado, e que mostra como a doença deste sistema se tornou crónica. À extrema gravidade que alcançaram as contradições económicas, correspondem políticas dos governos capitalistas que procuram preservar não só os lucros da classe dominante como o próprio sistema: a destruição acelerada de todas as estruturas de proteção social, com cortes nos serviços públicos e privatizações selváticas, contra-reformas na lei laboral, endurecimento da repressão… Políticas aplicadas à escala internacional. Na Europa, é patente como os mais variados Estados e governos, não obstante todas as suas diferenças superficiais, seguem esta mesma linha. Entre o governo de coligação de esquerda PSOE-UP no Estado espanhol ao governo conservador em Inglaterra, passando pelo governo PS em Portugal, bloco central na Alemanha e pelo governo da direita em França, há uma continuidade. Em todas as questões de fundo, agravadas pela pandemia, os interesses dos capitalistas são zelosamente protegidos pelo Estado, enquanto a classe trabalhadora é abandonada às consequências da crise e das políticas capitalistas, e antes de mais atingida por despedimentos massivos e por milhares de mortes direta e indiretamente causadas pela covid-19.

A resposta da classe trabalhadora e dos oprimidos faz-se sentir igualmente à escala mundial, com sublevações por todo o mundo — Chile, Bolívia, Indonésia, Índia, Nigéria, Líbano, Bieolorrússia, Polónia... A crise da democracia burguesa teve uma das suas ilustrações mais nítidas e impactantes na maior potência mundial, com uma autêntica sublevação de massas estado-unidenses contra o racismo, a repressão e a exploração, a derrota de Trump nas mais polarizadas eleições da história do país e, em seguida, um putsch realizado com a invasão do Capitólio por inumeráveis bandos da extrema-direita trumpista.

Para nós, marxistas, é impossível compreender adequadamente as eleições em Portugal sem começar por deixar bem claro este pano de fundo: vivemos uma época de revolução e contra-revolução. Portugal é atravessado exactamente pelas mesmas contradições que o resto do globo, e a burguesia portuguesa prepara-se, e prepara o seu aparelho de Estado, para um embate frontal com a classe trabalhadora. Nesse aparelho de Estado, a figura do presidente joga, no contexto de crescente polarização social, um papel cada vez mais central de estabilização do sistema. Marcelo, que nas suas palavras é “o presidente de todos os portugueses”, está a elevar-se acima das classes em luta, ou seja, a adquirir crescentemente um caráter bonapartista.

O presidente da burguesia

A experiência histórica demonstra para lá de qualquer dúvida que a imparcialidade é impossível numa sociedade de classes. Toda esta experiência não impede, contudo, que Marcelo Rebelo de Sousa se apresente como uma autoridade neutra que zela pela constituição e pela democracia.

Ora, quem Marcelo foi antes de ascender ao cargo político mais importante da república é bem conhecido. Nascido em berço de ouro, filho de Baltasar Rebelo de Sousa — que depois de ser Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, ascendeu a secretário de Estado e, finalmente, a ministro fascista —, baptizado em homenagem ao ditador Marcello Caetano (amigo de família), confesso admirador de Salazar na sua juventude, opositor da Revolução e fundador do PSD ao lado de Pinto Balsemão, defensor acérrimo da Igreja católica, conservador e membro de sociedades monarquistas até à data da sua eleição como presidente. Marcelo é desde pequenino um partidário da propriedade e dos privilégios da classe dominante, além de ser um menino mimado dessa classe. Tão mais necessário, por isso mesmo, se torna o seu discurso constitucionalista e democrático. Ainda assim, os factos são teimosos. O mandato presidencial que agora termina foi pejado de momentos que expuseram as suas verdadeiras lealdades.

Os resgates à banca, nomeadamente ao Banif e ao Novo Banco, contaram com o seu apoio ativo — enquanto o investimento público caía e as famílias trabalhadoras ficavam com cada vez pior saúde e educação, Marcelo presidia ao desvio de milhares de milhões de euros dos cofres do Estado para os gordos bolsos dos seus amigos banqueiros.

Da mesma forma, durante os choques parlamentares que se deram sobre a lei de bases da saúde, Marcelo foi um ponto de apoio indispensável à direita e ao próprio PS para garantir os interesses do capital no setor da saúde. E o mesmo pode ser dito sobre a educação e todos os serviços públicos.

As mais importantes greves dos últimos cinco anos, como as dos operários da Autoeuropa, as dos estivadores de vários portos, as dos enfermeiros do SNS ou as dos motoristas de matérias perigosas, foram aberta e inequivocamente atacadas pelo presidente. Os maiores afetos marcelistas foram sempre dedicados aos patrões, os seus irmãos de classe. O presidente considerou “intolerável” que não fossem acatadas as requisições civis contra as greves, acionada repetidas vezes, sempre com o seu apoio e com as suas justificações jurídicas. A partir do Palácio de Belém, em estreita articulação com o Palácio de São Bento e o grande capital da comunicação social, o chefe de Estado não só apoiou como orientou e dirigiu as campanhas de difamação contra os trabalhadores em greve.

Isto bastaria para se entender quem serve realmente este presidente, mas não é tudo: o machismo e os números crescentes e indignantes de femicídios, o racismo e repetidos assassinatos racistas, e, acima de tudo, a pandemia de covid-19 — cada nova complicação exigiu maiores e mais habilidosas manobras de Marcelo.

A forma como o presidente lidou com a violência racista e com a extrema-direita merece a maior atenção de toda a esquerda. O racismo brutal sob o qual vivem negros, ciganos e também várias comunidades imigrantes em Portugal não é recente. Contudo, a crescente polarização social, a entrada de uma enorme massa de jovens na política durante os últimos anos — e especialmente de jovens negros dos bairros periféricos de Lisboa —, e a viragem à esquerda desta juventude, de importantes sectores da classe trabalhadora e das mulheres, significou um salto qualitativo na luta de massas contra o racismo. Nos últimos dois anos, pudemos ver claramente as implicações desse salto, expressado em grandes manifestações anti-racistas, entre as quais se destaca a multitudinária manifestação de 6 de junho de 2020, já em plena pandemia.

Até a juventude e os trabalhadores saírem massivamente às ruas e mostrarem a sua disposição para a luta, Marcelo pôde ignorar este problema, como haviam feito presidentes e governos anteriores. Mas no último período do mandato, sob novas circunstâncias, não bastaram as fotografias com famílias negras e pobres, os discursos que retratam os “descobrimentos” como contactos culturais, afirmações vazias sobre “todos os portugueses”, etc. Quando foi aberta a investigação contra os três inspetores do SEF que assassinaram Ihor Homeniuk no aeroporto, Marcelo foi impelido a defender a abolição do SEF naquela que foi a sua mais habilidosa manobra política perante a luta anti-racista. Ao propor a abolição do SEF como o fez — com a distribuição das funções desta polícia e dos seus agentes por outros corpos policiais e órgãos do Estado —, o que este trapezista político propôs é que se mudassem os nomes das coisas para se manter tudo exatamente igual. E com tão poucas palavras beneficiou ainda de se colocar à esquerda do BE e do PCP que, lamentavelmente, nunca ousaram avançar com uma reivindicação de abolição do SEF, dedicando-se antes a discursos sobre “maçãs podres” e o “papel fundamental” da polícia numa “sociedade democrática”.

Apesar das piruetas à esquerda, o que importa, no fim das contas, são os atos. Quais foram os atos de Marcelo para combater a violência racista a que estão sujeitas famílias negras, ciganas e imigrantes em Portugal, ou as condições miseráveis de vida que partilham com tantas famílias de trabalhadores “nacionais”? Não houve nada senão palavras, e até as palavras faltaram em momentos críticos. Marcelo ficou em silêncio perante as maiores atrocidades da polícia durante cinco anos, ignorou todas as denúncias sobre o controlo das forças de segurança por elementos da extrema-direita. Ao mesmo tempo, exerceu a sua influência para abrir caminho aos fascistas. Ainda antes da fundação do Chega, indignou-se contra uma pequena associação de estudantes universitários que tentou impedir o fascista Jaime Nogueira Pinto de espalhar as suas ideias racistas numa universidade pública, forçando a direcção da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas a prestar “esclarecimentos”. Após a fundação do Chega, tem usado cada oportunidade que se lhe apresenta para promover esse partido como uma peça normal da “democracia”. Pouco importa que André Ventura use o seu assento parlamentar e todo o espaço mediático que tem para atacar a classe trabalhadora, todos os grupos oprimidos — negros, ciganos, muçulmanos, imigrantes, refugiados… — e até mesmo para insultar deputadas, como fez com Joacine Katar Moreira e, mais recentemente, com Marisa Matias. A hipocrisia é patente: a preocupação do “presidente de todos os portugueses” não são os direitos ou as vidas de quem é ameaçado e violentado pelos fascistas, mas antes a “liberdade de expressão” desses fascistas! Um segundo mandato de Marcelo significará que a extrema-direita vive por mais cinco anos com um padrinho em Belém.

Este apadrinhamento da extrema-direita é apenas parte da estratégia da classe que Marcelo serve com uma precisão e uma eficácia demonstrativas das décadas de experiência que carrega. Foi o próprio a declarar que “a democracia precisa de uma direita forte”. Como explicámos noutra ocasião: “A burguesia pressente, como resultado da crise, um tremendo choque entre as classes num futuro ainda indeterminado, (...) a sua aposta para gerir a raiva social durante a crise sanitária: proteger o governo de Costa e usá-lo para manter a paz social enquanto a direita, incluindo a extrema-direita, se recompõe.” Dissemos ainda: “Preparam-se mais pesados ataques aos direitos democráticos, aos direitos laborais e aos salários, com a supressão do direito à greve e à organização, sujeitando a massa crescente de desempregados e pobres — especialmente os jovens — à disciplina do cacetete e da bota policial. Para os capitalistas e para o seu fiel governo PS, a emergência não é a pandemia, é a raiva social que se acumula e que, tarde ou cedo, terá de rebentar.”

A declaração de sucessivos estados de emergência foi, efetivamente, a supressão do direito à greve e de outros direitos democráticos durante uma onda massiva de despedimentos. Todo o peso da crise foi lançado sobre os ombros de quem trabalha enquanto se recorria a um discurso de “unidade nacional” para tentar dissipar a raiva das massas. Nesta estratégia, Marcelo foi nada menos do que o protagonista, a figura que representa essa “unidade nacional” e se eleva como árbitro da democracia, admoestando ora o governo, ora a oposição, ora a esquerda, ora a direita, ora os patrões, ora os trabalhadores, mas sempre garantindo firmemente a inviolabilidade dos lucros e da propriedade privada, mesmo quando isto significa o sacrifício de milhares de vidas.

As suas últimas declarações sobre a irresponsabilidade de quem passeia o cão demasiadas vezes durante o confinamento levam a inconfundível marca da hipocrisia e da arrogância de classe. Marcelo comporta-se como o patriarca do povo, repreendendo os seus filhos pela subida vertiginosa do número de infecções de covid-19. A verdade, como bem sabemos, é que esta subida vertiginosa de casos se dá porque o governo, tendo toda a informação necessária para entender o perigo da pandemia, se recusou a tomar as medidas necessárias: travar toda a atividade produtiva e serviços não-essenciais; converter setores industriais para o combate à pandemia; investir massivamente no SNS e expropriar a saúde privada; investir massivamente na educação para possibilitar ensino à distância até estar assegurada a segurança nas escolas; proibir despejos e despedimentos; e claro, nacionalizar a banca para levar a cabo tudo isto. À data da escrita deste artigo, contabilizam-se cerca de 150 mortes por covid-19 a cada dia, totalizando 9.000 mortes desde a chegada da doença a Portugal — um número que não conta com todas as mortes causadas indiretamente pela covid-19, resultantes do estado de caos em que se encontra o SNS neste momento. Em primeiro lugar estão os lucros dos capitalistas, e só depois as vidas dos trabalhadores e dos pobres.

Se restassem dúvidas em 2016, agora, após cinco anos de presidência, está por demais esclarecido que Marcelo Rebelo de Sousa é o presidente da burguesia, o presidente dos patrões, dos senhorios, dos banqueiros, das multinacionais, da saúde privada, da educação privada, das mais ricas e privilegiadas famílias de Portugal… E não é só Marcelo que é da burguesia. O aparelho de Estado, a própria constituição e o sistema democrático que existem em Portugal são também da burguesia, não obstante as marcas — cada vez mais apagadas — da Revolução de 1974-75. Entender isto é fundamental para a esquerda.

A defesa da democracia burguesa e a bancarrota do reformismo

As candidaturas da esquerda — Ana Gomes (PS, com apoio de PAN e Livre), Marisa Matias (BE) e João Ferreira (PCP) — têm os mesmos elementos fundamentais, não obstante os detalhes que as distinguem. Em primeiro lugar, são candidaturas de defesa da constituição, de defesa do regime em vigor. O que cada candidato da esquerda procura fazer é apresentar-se como o melhor administrador possível para o capitalismo português, aquele que, com a sua “vontade política”, faria cumprir a constituição mais rigorosamente do que Marcelo. É precisamente com a constituição que defendem, por exemplo, o reforço do SNS, a “valorização do trabalho”, a “inclusividade” contra o racismo e o machismo ou o combate à corrupção.

São também candidaturas estritamente eleitoralistas, ou seja, que respeitam religiosamente não só as regras do jogo eleitoral como a própria lógica das eleições burguesas. Para qualquer um destes candidatos, trata-se de disputar eleitores, e antes de mais os eleitores de Marcelo Rebelo de Sousa, que tem uma base eleitoral que se estende desde apoiantes do Chega e do PSD até apoiantes do PCP e do BE. Em cada assunto avulso, os candidatos da esquerda tentam ser mais democratas, mais progressistas, mais sensatos que Marcelo e, admitindo um balanço positivo do seu mandato, tudo o que dizem é que fariam um pouco melhor. Em suma, numa situação onde se torna penosamente evidente a vitória de Marcelo, as candidaturas de toda a esquerda são, mais ou menos assumidamente, cordiais listas de sugestões para o seu segundo mandato presidencial. Esta é a receita para a derrota mais humilhante, não só no sentido estritamente eleitoral, senão igualmente no sentido de uma derrota política que terá consequências muito para lá da data das eleições presidenciais.

Desde os tempos dos pioneiros do marxismo que explicamos que as eleições burguesas são um campo extremamente desfavorável aos representantes dos trabalhadores. Uma eleição, em capitalismo, é sempre um jogo viciado a favor da burguesia. A classe dominante é proprietária da comunicação social, com a qual produz e dissemina toneladas de propaganda liberal, reacionária e anti-comunista, além de promover os seus candidatos. É também ela quem pode financiar, com os seus gigantescos lucros, as campanhas que defendem os seus interesses — o capitalista vota sempre duas vezes: primeiro com o seu capital, e só então com o boletim de voto. Por fim, é ela quem, através dos seus burocratas e dos seus representantes nas instituições e órgãos do Estado, estabelece as regras do próprio ato eleitoral e preserva variados obstáculos ao voto dos trabalhadores e da juventude — aliás, o próprio direito de voto, assim como cada alargamento e medida para a efetivação desse direito, foram conquistados invariavelmente contra a mais enérgica oposição da burguesia. Assim se explica, por exemplo, que uma ampla camada da classe trabalhadora seja impedida de votar por não ter documentos ou a nacionalidade portuguesa, mesmo no caso de trabalhadores que nasceram e sempre viveram em Portugal.

O velho adágio segundo o qual cada povo tem os governantes que merece é uma distorção grosseira da realidade. Marcelo não foi escolhido pelo povo, foi o resultado de um processo que de “democrático” só teve o nome. Entendendo isto, a esquerda entende que só pode usar as eleições burguesas na medida em que as subverte, servindo-se delas para uma campanha genuinamente socialista, para mobilizar os trabalhadores e a juventude para a luta, inclusive aqueles que estão impedidos de votar.

Que relação com esta realidade tem o discurso reformista dos candidatos da esquerda? Ao apresentar o jogo eleitoral como justo e genuinamente democrático, Ana Gomes, Marisa Matias e João Ferreira espalham ilusões num sistema que só é democrático para os grandes capitalistas. Para a classe trabalhadora, este sistema em crise é cada vez mais explicitamente uma ditadura, antes de mais no próprio trabalho, onde não há um pingo de direitos democráticos perante a tirania dos patrões. Que demonstra a experiência dos últimos anos, e ainda mais explicitamente a dos últimos meses? Os incessantes ataques contra a classe trabalhadora e a juventude estão a dar-se legal e constitucionalmente.

O que é preciso não é a “vontade política” de um presidente para “cumprir a constituição”, o que é preciso é luta. A vitória eleitoral de qualquer um dos candidatos da esquerda só poderia contribuir para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores caso fosse apoiada por um movimento de massas.

A burguesia organiza-se e faz dos seus interesses uma força material de primeira ordem. Como classe dominante, a burguesia nunca respeitou nem respeitará qualquer regra, lei ou constituição a menos que esta lhe seja favorável. Um presidente que pretenda governar contra o capital só pode ter sucesso na medida em que a luta organizada da classe trabalhadora e da juventude avançar nos locais de trabalho, nas escolas, nos bairros e nas ruas. É esta força revolucionária a única que pode não só travar os despedimentos, os baixos salários, a violência machista e racista, a destruição do ambiente… como fazer valer as conquistas que a Revolução inscreveu na constituição e ainda ultrapassar estas conquistas e transformar a sociedade desde os seus alicerces, pôr fim à pobreza, à exploração e à opressão.

A esquerda tem de romper decididamente com o reformismo e usar os seus partidos, os seus assentos parlamentares, as suas campanhas eleitorais e cada oportunidade que surja para mobilizar os trabalhadores e a juventude para o combate revolucionário, tem de apresentar um programa realmente socialista, ou seja, que nos coloque — nós, classe trabalhadora e todos os oprimidos — não como indivíduos fracos que merecem a proteção e atenção benevolente do Estado, mas antes como protagonistas da transformação que queremos realizar.

Dito isto, a apresentação de um programa que mobilize os trabalhadores e a juventude para a luta é também a única via para vitórias eleitorais da esquerda, para impedir um reinado de Marcelo e para travar o crescimento da extrema-direita.

Só a luta da classe trabalhadora pode derrotar o fascismo!

A candidatura fascista de André Ventura, que se reclama “contra o sistema” quando é, em boa verdade, a candidatura dos mais fanáticos defensores do sistema e dos privilégios da classe dominante, é corretamente apontada por toda a esquerda como uma ameaça aos direitos democráticos conquistados na Revolução de 1974-75. Não seremos nós a menosprezar o perigo real desta ameaça, a desvalorizar o crescimento e os ataques dos bandos fascistas ou a subestimar a importância de quaisquer eleições para desferir um golpe à direita e à extrema-direita nas urnas.

Contudo, é necessário entender a estratégia reformista seguida até agora pela esquerda, com a defesa da constituição em abstrato e a disputa dos eleitores de Marcelo e até de Ventura, é uma estratégia que enfraquece o combate contra a extrema-direita. Ao se circunscreverem ao jogo eleitoral, ao se recusarem a fazer a luta política de forma consequente e além das instituições e das eleições da burguesia, as direções da esquerda dissolvem o seu programa no discurso de Marcelo e perdem a capacidade de mobilizar trabalhadores e jovens que procuram uma alternativa clara e contundente a este sistema. Pior ainda, desta forma as direções da esquerda dão a oportunidade aos fascistas de tentar penetrar com as suas ideias nas franjas mais atrasadas e confusas da classe trabalhadora, que podem ver no Chega uma alternativa anti-sistema.

De resto, a base social e eleitoral de Ventura não será seduzida pela defesa abstrata da “liberdade” e dos “valores de Abril” que é feita pelos reformistas. A “liberdade” que importa aos setores mais reacionários das camadas médias — pequenos patrões e empresários, senhorios, terratenentes, etc. — é a “liberdade” de pagar salários de miséria e explorar até ao tutano os trabalhadores mais desesperados, a “liberdade” de especular com habitação e cobrar rendas esmagadoras, a “liberdade” de espezinhar negros, ciganos e imigrantes, a “liberdade” de tratar mulheres como mercadorias. Estes setores viram cada vez mais à extrema-direita porque são lançados ao desespero pela crise capitalista e ardem em ódio contra a luta dos explorados e oprimidos ao entender, com toda a razão, que o avanço dessa luta é uma ameaça direta ao modo de vida e aos privilégios que querem manter a todo o custo. Não é possível conciliar os interesses dos trabalhadores com os interesses desta escória.

Combater o capitalismo implica combater a oposição daqueles que o capitalismo privilegia, implica lutar contra gente de carne e osso. E os candidatos da esquerda, se pretendem de facto combater o fascismo e defender os interesses dos trabalhadores e dos oprimidos, não podem falar para “eleitores”, para “cidadãos” ou para “portugueses” imateriais, não podem dirigir-se a abstrações, não podem pretender ser um “presidente de todos”. Um candidato de esquerda tem de dirigir-se diretamente à classe trabalhadora e aos oprimidos — aos que são, devemos sublinhar, a esmagadora maioria da população e a maior força social que pode existir!

Não é difícil derrotar os fascistas em combate político aberto, desde que se largue de uma vez por todas a defesa de um sistema completamente podre e se declare guerra à burguesia com a mesma firmeza com que Ventura declarou guerra aos trabalhadores e aos pobres. Manifestações massivas como a anti-racista de 6 de junho de 2020, as multitudinárias manifestações de jovens pelo ambiente ou as crescentes marchas de mulheres do dia 8 de março demonstram a disposição das massas para a luta. Quando comparadas com as minúsculas marchas e demonstrações da extrema-direita, estes protestos revelam a verdadeira correlação de forças que existe e a raiva massiva contra a exploração capitalista, o racismo, o machismo, a LGBTfobia…

Cabe às direções da esquerda e das organizações de trabalhadores construir uma via para que esta raiva social se possa não só expressar eleitoralmente como organizar-se e fazer frente aos fascistas e à classe dominante nas ruas, nos bairros, nas empresas e escolas. O caminho para derrotar de uma vez por todas o fascismo e evitar a catástrofe que nos impõe o capitalismo é a luta revolucionária!

 

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