Greves e manifestações bloqueiam o país enquanto os militares aumentam a repressão

Em novembro de 2020, a Liga Nacional para a Democracia (LND), o partido liderado pela Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, arrasou nas eleições com 80% dos votos e 396 de um total de 476 deputados. A segunda formação na corrida, o Partido da Solidariedade e de Desenvolvimento da União (USDP), criado pelos herdeiros políticos do regime militar, obteve uns ridículos 5,9% dos votos e 26 deputados. A rejeição popular aos militares foi decisiva, mas depois de décadas a governar o país com punho de ferro, a sua reação não se fez esperar.

No passado dia 1 de fevereiro, puseram em marcha um novo golpe de Estado alegando uma fraude eleitoral inexistente. A junta militar encabeçada pelo chefe do exército, o general Min Aung Hlaing, prendeu Aung San e numerosos ministros do governo, declarou a lei marcial em várias cidades, impôs o recolher obrigatório entre as oito da noite e as quatro da manhã, e proibiu as reuniões de mais de 5 pessoas. 

Estas medidas têm sido desafiadas desde o primeiro momento pelas massas birmanesas. Os actos de desobediência civil dos primeiros dias converteram-se em manifestações massivas no fim-de-semana e na segunda-feira, dia 8 de fevereiro, uma grande greve geral paralisou o país. Apesar das medidas repressivas adotadas pelos militares, as mobilizações continuaram a expandir-se e a incorporar novos setores.

Os golpistas responderam, por agora, com uma repressão seletiva: mobilizaram veículos armados para as ruas, atacaram duramente as manifestações com equipamento anti-motim, suspenderam a internet e as redes sociais e intimidaram ativistas. Desde o golpe, mais de 384 pessoas foram detidas, sobretudo durante a noite, segundo a Associação de Assistência aos Presos Políticos.

Mas desta forma não cumpriram o seu objetivo e as mobilizações continuam a estender-se por todo o país. Não está descartada a hipótese da junta militar tentar um banho de sangue, uma opção que poderia travar o movimento no imediato, mas que teria consequências revolucionárias a médio prazo. A oposição popular é muito forte e o descontentamento com os militares e com a crise social e económica é muito profundo. 

Uma história de golpes e de domínio militar

A história do Myanmar é uma história de constantes golpes e ditaduras militares. O exército, que liderou o país numa ditadura de cinquenta anos até 2011, reprimiu a sangue e fogo qualquer movimento que ameaçasse o seu firme domínio.

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O exército, que liderou o país numa ditadura de cinquenta anos até 2011, reprimiu a sangue e fogo qualquer movimento que ameaçasse o seu firme domínio.

Assim o fez em 2007 contra as mobilizações massivas impulsionadas pela decisão da Junta Militar de subir o preço da gasolina em 500%. Após este levantamento, o primeiro em 20 anos, o regime tentou limpar a sua imagem estabelecendo uma “rota até à democracia” sob a custódia e direção pelos militares.

Em 2008 aprovaram a atual Constituição totalmente anti-democrática. Reserva ao exército 25% dos assentos do Parlamento, assim como dos Ministérios do Interior, da Defesa e das Fronteiras, e mantém o domínio da economia nacional fora do controlo parlamentar.

Em 2011, coincidindo com uma profunda crise económica e o impacto da Primavera Árabe, o Tatmadaw (o exército birmanês) realizou eleições falsas, que resultaram num governo “civil” fraudulento de ex-militares transformados em políticos organizados no partido "União, Solidariedade e Desenvolvimento”.

Já em 2015, num contexto de crise e sob tutela militar, realizaram-se as primeiras eleições em que se permitiu a participação da oposição política e a LND obteve uma clara vitória.

Não era a primeira vez: em 1990 Aung San já tinha ganhado as eleições, mas o exército anulou-as com outro golpe e manteve San em prisão domiciliar por quinze anos.

Durante esse período a fama internacional de Suu Kyi, que em 1991 recebeu o Prémio Nobel da Paz, foi crescendo, promovida pelos governos imperialistas do Ocidente, que viam nessa oposição "democrática" uma forma de expandir a sua influência neste país chave do Sudeste Asiático.

As raízes do golpe

O Myanmar, com um exército de mais de meio milhão de homens, é um país militarizado. A liderança militar controla a política, a economia e todos os aspectos da vida social. Possui centenas de licenças de exploração, incluindo as de minas de rubi e jade (cujo valor representa quase metade do PIB nacional), além de bancos, cervejarias e cadeias de hotéis.

Através de dois conglomerados militares, Myanmar Economic Holding Limited (MEHL) e Myanmar Economic Corporation (MEC), dominam mais de uma centena de empresas que têm ligações com 44 outras empresas estrangeiras e cujo valor é estimado em vários milhares de milhões de dólares.

Min Aung Hlaing, cabeça do golpe e chefe das forças armadas, supervisiona pessoalmente estes negócios que fizeram enriquecer obscenamente a sua família.

O LND, longe de enfrentar esta situação, tem sido cúmplice deste saque da riqueza nacional e da corrupção, tal como dos maus tratos ao povo birmanês, com especial crueldade para com as 135 minorias étnicas que povoam o país, e tem procurado constantemente chegar a acordos e pactos com os militares.

Desde 2015 convivem harmoniosamente no Parlamento, mantendo intacto o poder dos generais. A própria Suu Kyi apoiou resolutamente o exército face às denúncias de numerosas organizações humanitárias internacionais do genocídio perpetrado por este contra o povo Rohingya, a minoria muçulmana. Por causa disso, a Amnistia Internacional, o Museu do Holocausto dos Estados Unidos e mesmo a UE, retiraram as distinções que lhe haviam sido atribuídas pelo seu "trabalho humanitário".

Apesar do conluio total de Suu Kyi e do LND, o medo de contágio dos levantamentos das vizinhas Tailândia e Indonésia, a profunda crise económica que o país atravessa e o crescimento do movimento grevista nos últimos anos da jovem e poderosa classe trabalhadora birmanesa fizeram disparar todos os alarmes na cúpula do exército que optou pelo golpe de Estado.

A situação das massas birmanesas e a ascensão do movimento operário

Myanmar tem uma das rendas per capita mais baixas do mundo, apesar dos seus extraordinários recursos naturais: jade, gemas, rubis, madeira de teca, óleo e gás natural, entre outros.

Os baixos custos da força de trabalho tornaram-se o grande atrativo dos investimentos estrangeiros que fazem aumentar a crescente classe trabalhadora num país que até recentemente era eminentemente agrícola.

A indústria e os serviços representam hoje mais de 70% do PIB e a população urbana não pára de crescer. Em Yangon, principal palco dos protestos, concentram-se mais de cinco milhões e meio de habitantes e uma parte importante das centenas de grandes fábricas têxteis (cerca de 400 no total) que com salários de 3 euros por dia produzem para a estado-unidense GAP ou as europeias Primark, H&M, Adidas, Mango e Inditex.

Estima-se que haja atualmente 500 mil trabalhadores no setor, 90% mulheres, que nos últimos anos realizaram duras greves, e têm vindo a formar-se sindicatos independentes.

Com a intenção de impedir este processo o patronato utilizou a desculpa da pandemia para reprimir de forma selvagem. Isto ficava claro na carta que trabalhadoras de duas fábricas em Myanmar que trabalham para a Inditex, Huabo e Rui-Ning, dirigiram a Amancio Ortega1 em junho passado: “Saber que o seu avião privado de 45 milhões podia pagar 41.000 vezes o nosso salário anual é reconfortante. Certamente um homem com tais riquezas não precisa de se aproveitar da pandemia global para esmagar os nossos sindicatos... A administração justificou as suas ações usando o coronavírus e as suas repercussões económicas como desculpa, mas como pode isso traduzir-se em despedir membros do sindicato apenas ao mesmo tempo que os trabalhadores não sindicalizados mantêm os seus postos de trabalho?”. 

As greves continuaram e no meio da campanha eleitoral Suu Kyi reuniu-se com representantes das trabalhadoras, comprometendo-se a melhorar as condições de trabalho e salários. Esta é a mesma classe trabalhadora que entrou em cena liderando as greves e manifestações contra o golpe militar.

Os interesses e manobras do imperialismo na zona

As diferentes potências imperialistas com interesses na zona estão a manobrar para tornar esta situação vantajosa em benefício próprio. O Sudeste Asiático é outro cenário da luta entre EUA e China pela hegemonia mundial.

A busca de maior influência na área está por trás das condenações hipócritas ao golpe e às ameaças de sanções económicas por parte de Biden e da UE.

Pelo seu lado, a China, primeiro parceiro comercial do país com o qual compartilha uma fronteira de 2.000 km, mantém uma atitude vigilante de “não ingerência”.

O gigante asiático fez ótimos negócios com civis e militares. Assinou com a Junta Militar importantes acordos comerciais no âmbito do plano da "nova rota da seda". Com Suu Kyi no governo, os negócios continuaram através de megaprojetos, como a criação de um corredor económico China-Myanmar para obter acesso direto ao Oceano Índico, linhas ferroviárias, centrais elétricas, um porto de águas profundas e um projeto de desenvolvimento urbano para a grande cidade Yangon.

Embora desde 2011 se tenha registado uma queda de adjudicações de projetos a empresas chinesas a favor de empresas europeias e estado-unidenses em áreas como a energia ou as telecomunicações, o imperialismo ocidental permanece distante dos setores de matérias-primas e recursos naturais controlados pelo exército, pelo que a sua capacidade de fazer pressão por meio de sanções económicas é bastante limitada, em contraste com a posição privilegiada da China.

Somente a independência de classe pode acabar com séculos de opressão

Enquanto a liderança do LND faz apelos abstratos às manifestações e ao respeito pela lei sem organizar nada, é a ação independente das massas que mantém a consolidação do golpe em cheque.

A entrada em cena da classe trabalhadora unificou o movimento acima das divisões sectárias conscientemente incitadas durante décadas pelos militares.

Os e as trabalhadoras da manufactura convocaram e dirigiram os protestos no sábado, 6 de fevereiro, mobilizando milhares de trabalhadores das zonas industriais de Yangon. Esta mesma classe trabalhadora protagonizou uma grande greve geral na segunda-feira dia 8 de fevereiro que paralisou o país.

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Os e as trabalhadoras da manufactura convocaram e dirigiram os protestos no sábado, 6 de fevereiro, mobilizando milhares de trabalhadores das zonas industriais de Yangon. Esta mesma classe trabalhadora protagonizou uma grande greve geral que paralisou o país.

Nas ruas grita-se: "Abaixo a ditadura! Abaixo a constituição! Fora os militares!"

A classe trabalhadora lidera o caminho. A experiência mostrou claramente que o LND não é alternativa. Ao longo de todos estes anos, revelou-se um fiel colaborador e cúmplice da criminosa dominação política e económica da cúpula militar.

Os acontecimentos estão a desenvolver-se com grande rapidez e o seu desfecho está longe de ser decidido. O golpe pode ser derrotado. A resposta massiva da classe trabalhadora e da juventude birmanesa ao golpe militar não entrou nos cálculos dos militares e, dada a força e determinação das mobilizações, ainda não se decidiram a tentar cortá-las pela raiz, reprimindo-as a sangue e fogo.

A oposição ao golpe está a adquirir força e extensão significativas. A tarefa dos oprimidos e oprimidas em Myanmar é clara: para acabar com o regime militar e a tirania, é necessário acabar com o sistema que os sustenta e alimenta, o capitalismo. Apenas a classe trabalhadora birmanesa armada com o programa da revolução socialista será capaz de acabar com décadas de repressão e exploração e alcançar a democracia plena.

[1] O bilionário espanhol Amancio Ortega é o CEO do grupo têxtil Inditex que engloba, entre outras marcas, a Zara e a Bershka.

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