Quando ainda estamos a digerir as causas e consequências da guerra na Ucrânia, analisar o XX Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) e em que fase o confronto entre os EUA e a China se encontra é fundamental para compreender a dinâmica da luta inter-imperialista global. Ambos os acontecimentos causaram uma onda de choque de dimensão planetária.

Além da suposta homogeneidade política transmitida pelos votos unânimes há décadas, a vida interna do PCC, com cerca de 90 milhões de membros — se fosse um país, seria o décimo sexto no mundo, ultrapassando a Alemanha — tem sido marcada pela luta constante entre fações.

Em relação ao último congresso realizado em outubro passado, o vitorioso Xi Jinping não se conformou com um triunfo semelhante ao de muitos dos seus antecessores, e decidiu ajoelhar, quando não esmagar, os seus adversários. A sua acumulação de poder é tal que quebrou as regras estritas impostas após a morte de Mao Tsé-Tung no final dos anos 70 do século passado. Nessa altura, com o último estertor da Revolução Cultural e uma luta encarniçada entre as diferentes alas do Partido que levou a República Popular à beira do abismo, foram estabelecidas normas para evitar situações perigosas: limite de dois mandatos para o presidente — uma década no total —, reforma política aos 68 anos, sucessões na presidência anunciadas com tempo suficiente para que fossem “consensuais”, proibição do “culto da personalidade"...

Este pacto, proposto por Deng Xiaoping, deveria garantir que os duros conflitos pelo poder não poriam em risco a liderança política e social do Partido, fonte dos privilégios para toda e cada uma das fações da burocracia. Depois deste último congresso, essa etapa na história do PCC faz agora parte do passado. Longe de se reformar aos 69 anos, Xi iniciou um terceiro mandato sem colocar em cima da mesa o nome de um sucessor, alimentando a hipótese de uma presidência vitalícia. Além disso, recusou-se a partilhar os órgãos de direção, assumindo com os seus colaboradores mais próximos, tanto o Comité Central como a restrita Comissão Permanente ou Politburo.

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Após o XX Congresso do PCC, o vitorioso Xi Jinping decidiu fazer ajoelhar, quando não esmagar, os seus adversários.

O processo de concentração de todo este poder num único indivíduo tem sido tudo menos pacífico. Na verdade, a expulsão chocante do plenário de Hu Jintao — presidente entre 2003 e 2013 — foi o corolário de uma profunda purga no seio do partido. Uma atuação muito característica do híbrido peculiar em que se tornou a cúpula do PCC, que junta os rasgos mais despóticas do stalinismo, neste caso um desprezo público cínico e, por outro, o ser garante da restauração da economia de mercado e da grande acumulação capitalista realizada às custas da exploração da classe trabalhadora e de um assombroso desenvolvimento imperialista.

Sentado à esquerda de Xi, o ex-presidente Hu era um dos poucos delegados que se podia atrever a quebrar a unanimidade e até tornar-se numa referência para os prejudicados pela ascensão de Xi. O presidente abortou esta possibilidade ordenando a um guarda-costas que rapidamente expulsasse o perigoso octogenário. Que este momento, tão carregado de significado político, coincidisse com o acesso ao plenário de toda a imprensa nacional e estrangeira, não foi um erro de protocolo como alguns insinuaram. Pelo contrário, transformou esta nova defenestração numa declaração ameaçadora que chegou a todos os cantos do país e de todo o mundo. Desta forma, o Bonaparte chinês do século XXI era coroado.

A trajetória de Xi é verdadeiramente espetacular. Embora possua o pedigree de príncipe — é filho de Xi Zhongxun, um líder guerrilheiro juntamente com Mao e herói da Revolução de 1949 — a sua família caiu em desgraça durante a Revolução Cultural e, ainda jovem, foi desterrado para um campo de trabalho. Consciente de que o Partido era a única forma de ascensão social, lutou por filiar-se, sendo finalmente admitida em meados dos anos 70. Depois de uma subida dura pela hierarquia partidária, sem questionar a estratégia de outros líderes no que diz respeito à restauração capitalista, e obedecendo às regras do jogo burocrático da forma mais eficaz, em 2012 conquistou a Secretaria-Geral.

A partir desta posição, Xi não se dedicou à contemplação. Tanto os desafios da situação internacional como as dificuldades internas levaram-no a adotar um perfil próprio, destacando-se pela sua "denúncia" da corrupção do Partido e do Estado, e cunhando o seu famoso slogan de "prosperidade partilhada", com o qual tem simulado o combate à desigualdade. Durante a tomada de posse, disse: "O nosso partido dedica-se a servir o povo. (...) Mas não somos condescendentes, e nunca descansaremos sobre os louros. (...) Há também muitos problemas urgentes a resolver, em particular a corrupção."

Desde então, mais de 1,2 milhões de camaradas foram investigados e milhares foram expulsos do Partido e presos. Entre os condenados a prisão perpétua ou mesmo à pena de morte, há figuras políticas promissoras que se colocaram no caminho da sua presidência, como Ling Jihua — antigo secretário pessoal do ex-presidente Hu Jintao —, Guo Boxiong — ex-vice-presidente da Comissão Militar Central e até então um dos homens mais influentes no Exército chinês — ou Bo Xilai, considerado por muitos como sucessor de Hu. Se todos estes ilustres réus eram profundamente corruptos e culpados de crimes horríveis, não há dúvida de que Xi e a sua fação são tanto ou mais.

Um secretário-geral de acordo com as necessidades de cada momento

A política oficial contra a corrupção, num sistema de capitalismo de Estado onde não há um grama de democracia operária, não passa de uma ferramenta propagandística e instrumental para Xi. Com esta manobra demagógica ganha apoio popular e descarrega grande parte da tensão social acumulada, permitindo-lhe ao mesmo tempo eliminar adversários. Xi é, sem dúvida, um notável aluno de Stalin, que nos momentos mais críticos dos anos 30 do século passado se apresentava como um "inimigo" ativo da burocracia e da corrupção.

No entanto, pecaríamos pela superficialidade, ao estilo das crónicas da imprensa capitalista ocidental, se explicássemos estes acontecimentos importantes apenas pela ânsia de poder e pela astúcia de um indivíduo, sem considerar que estas viragens políticas refletem a luta de classes interna na China e a mudança da correlação de forças num processo de transição de características inéditas e singulares. Uma breve revisão da sucessão no poder das diferentes frações do PCC ajuda a visualizar como as lutas internas que causam detenções, execuções, prisões, demissões ou novas nomeações, não passam de um reflexo na cúpula das crises sociais e das grandes reviravoltas históricas que a liderança do Partido teve de empreender para ultrapassar grandes dificuldades.

A já referida Revolução Cultural foi a resposta de Mao para evitar a crescente desestabilização e o descontentamento popular causado pelo seu plano económico falhado de rápida industrialização conhecido como o Grande Salto em Frente.1 A crise gerada por este fiasco representou uma ameaça à sua continuidade no poder. Consciente do cansaço e da incerteza que existiam entre as massas camponesas que tinham protagonizado a vitória de 1949, Mao escondeu a sua responsabilidade apontando para supostos elementos burgueses e pequeno-burgueses infiltrados no Partido como bodes expiatórios. Ao mais puro estilo bonapartista, neste caso proletário, apoiou-se numa camada da casta burocrática para atacar com força outra, especialmente aquela com maior responsabilidade política nas grandes cidades e que, supostamente, estaria a abrir o caminho à restauração do capitalismo.

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A política oficial contra a corrupção não passa de uma manobra demagógica para ganhar apoio popular e descarregar a tensão social acumulada, ao mesmo tempo que permite a Xi Jinping eliminar os adversários.

No discurso de Lin Biao, de agosto de 1966, perante uma grande concentração de massas em Pequim para celebrar a Grande Revolução Cultural Proletária, a essência desta viragem é assinalada desta forma:

“Em primeiro lugar, saúdo-vos em nome do nosso grande líder Presidente Mao e do Comité Central do Partido! (...) Temos de derrubar os líderes que seguem o caminho capitalista, derrubar as reacionárias autoridades burguesas. Numa palavra, estabelecer o domínio completo do Pensamento de Mao Tsé-Tung. Temos de fazer com que milhões de pessoas façam seu o Pensamento de Mao Tsé-Tung, devemos assegurar que este pensamento domine todas as posições ideológicas, temos de aplicá-lo para transformar o aspeto espiritual de toda a sociedade, e fazer desta grande força espiritual, o Pensamento de Mao Tsé-Tung, uma força material gigantesca!”.

Como os factos demonstrariam pouco tempo depois, nem o perigo da restauração capitalista foi evitado nem os trabalhadores impuseram a sua autoridade sobre a direção do Partido. No entanto, o verdadeiro objetivo foi temporariamente alcançado: os sectores críticos foram expurgados.

Após a morte do Grande Timoneiro, o seu sucessor, Deng Xiaoping, também adotou as reformas políticas que Mao denunciou na Revolução Cultural e que antes da sua morte este também teve de renunciar. Deng contava com a maioria do aparelho burocrático do Partido para romper o impasse económico, recorrendo a medidas que acabariam por desmantelar a economia planificada e o monopólio estatal do comércio externo.

Descartando a anterior política calamitosa de autarcia, a partir de 1979 Deng introduziu medidas de estilo capitalista que abriram as portas ao investimento ocidental maciço nas chamadas Zonas Económicas Especiais. O novo líder, longe de considerar a desigualdade contrária ao socialismo, afirmou-a como o melhor estímulo: "Na política económica parece-me necessário permitir que uma parte das zonas do país, uma parte das empresas e uma parte dos trabalhadores e camponeses assumam a liderança na obtenção de mais rendimentos e uma vida melhor através dos melhores resultados obtidos com o seu trabalho árduo. O facto de uma parte das pessoas assumir a liderança na vida será um exemplo de uma força incalculável de atração, que influenciará os seus vizinhos e encorajará as pessoas de outras áreas e entidades a seguirem o seu exemplo."2

Beneficiando de um investimento estrangeiro sem precedentes, numa altura em que as economias dos EUA e da Europa eram afetadas pelos efeitos da sobreprodução, a deslocalização de empresas ocidentais para a China fez com que a sua economia crescesse a uma média de 10% ao ano, mas igualmente aceleradas foram o crescimento da desigualdade e da inflação nas cidades. A luta de classes que desencadeou este fenómeno expressou-se com uma revolta da juventude estudantil que rapidamente levou a uma explosão social em que os trabalhadores colocaram o seu selo com força. O seu epicentro foi a Praça Tiananmen em 1989. Os rebeldes criticavam as medidas capitalistas e exigiam igualdade enquanto agitavam bandeiras vermelhas e cantavam A Internacional.

O esmagamento da revolta dos trabalhadores e da juventude às mãos do exército,3 permitiu ao sucessor do desgastado Deng, Jiang Zemin, acelerar as medidas pró-capitalistas. A sua fação, conhecida como o Gangue de Xangai, governou entre 1993 e 2003, representando os interesses dos sectores sociais mais beneficiados pelas reformas: pequenos e médios empresários, uma nova e florescente classe média, e monopólios que começaram a formar-se nas províncias costeiras onde se concentrava a parte de leão dos investimentos. A contrarrevolução capitalista avançou rapidamente: quase 30 milhões de trabalhadores foram despedidos de empresas estatais, a China aderiu à Organização Mundial do Comércio (OMC), o monopólio do comércio externo foi abolido, e a Constituição incluiu a proteção da propriedade privada que já excedia um quarto do total das fábricas do país. O processo de acumulação deu um passo gigante.

Tudo isto foi expresso no famoso relatório de Jiang intitulado “Construir em todos os sentidos uma sociedade modestamente acomodada e abrir novas perspectivas para a causa do socialismo com características chinesas”, apresentado no XVI Congresso:

"Os estratos sociais que surgiram no meio da mudança social, tais como os fundadores e técnicos de empresas científico-tecnológicas de propriedade extra-oficial, os administrativos e técnicos contratados por empresas estrangeiras, proprietários autónomos, empresários privados, pessoas empregadas em organizações intermediárias e profissionais independentes, são todos construtores da causa do socialismo com características chinesas. (...) Temos de nos unir a eles, estimular o seu espírito empreendedor, proteger os seus direitos e interesses legítimos... Todos os rendimentos legítimos, quer provenham do trabalho ou não, devem ser protegidos. (...) criar uma atmosfera social que incentive as pessoas a lançar empresas e a apoiá-las na sua criação, e deixar o trabalho, o conhecimento, a tecnologia, a administração e o capital em todas as suas formas se esforçarem por desenvolver o seu vigor e que todas as fontes de criação de riqueza social fluam ao máximo, tudo isto para o bem-estar do povo."

O avanço da restauração capitalista multiplicou as diferenças entre as zonas costeiras e industrializadas e as regiões interiores, despertando o descontentamento dos camponeses e dos sectores do partido que ficaram à margem dos lucros obtidos em grandes cidades como Xangai. Tinha chegado a hora da fação vinda da Liga da Juventude Comunista liderada por Hu Jintao, que será presidente na primeira década dos anos 2000.

Hu Jintao não se coibiu de utilizar grandes doses de demagogia populista, prometendo acabar com a política dos seus dois antecessores que "colocava o PIB em primeiro lugar e o bem-estar em segundo lugar" para forjar uma "relação mais estreita entre o povo e o governo". Era habitual Hu e os seus homens mais próximos fazerem viagens às regiões mais pobres e esquecidas, prometendo melhorias. Em todo o caso, o Presidente Hu Jintao não teve qualquer dificuldade em conciliar esta agenda com o convite aos capitalistas a filiarem-se ao Partido e manter as relações mais cordiais com os investidores estrangeiros.

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O esmagamento da revolta dos trabalhadores e da juventude às mãos do exército em 1989 permitiu a Jiang Zemin acelerar as medidas pró-capitalistas.

A vez de Xi Jinping

A presidência de Xi foi inaugurada em 2013. Recorde-se que, nesse período, o capitalismo de Estado na China estava já consolidado e tinha demonstrado a sua enorme capacidade de resistir à Grande Recessão de 2008, implementando um enérgico programa de estímulos públicos. Entre 2008 e 2013, a economia chinesa registou um enorme progresso.

Formação Bruta de Capital Fixo (biliões de dólares)4
Ano        China            EUA          Rácio China/EUA
2000       0,4                2,4            16,7
2010        2,9                2,8            103,6
2018        5.7                4.3            142,6

Graças a este investimento gigantesco de capital, a China tornou-se a fábrica do mundo e as suas manufacturas inundaram todos os continentes. Desde 2008, o valor total das suas exportações nunca caiu abaixo dos 1,2 biliões de dólares, e a partir de 2012, o limite inferior foi fixado em mais de 2,2 biliões de dólares.

Xi Jinping e a sua camarilha não deixaram de encorajar a penetração do capital imperialista chinês em todo o planeta, e reforçaram o controlo social e político do Partido, mas também consideraram prioritário tentar compensar os desequilíbrios internos. Agitando a bandeira da luta contra a corrupção e a desigualdade, tomou medidas contra uma parte da elite, tanto do Estado como da nova classe capitalista, muito mais do que Hu: “Alcançar a prosperidade partilhada não é apenas uma questão económica; é uma questão política importante que se prende com a fundação do Partido para governar. (...) Não podemos permitir que pareça um abismo intransponível entre os ricos e os pobres.”

Com este discurso de "prosperidade partilhada", um dos seus slogans mais recorrentes, tentou ligar-se não só aos sectores presos às zonas rurais, mas também aos trabalhadores urbanos, aquele novo e gigantesco proletariado formado por centenas de milhões de camponeses que migraram para as cidades em busca de uma vida melhor5. Por isso, prometeu "expandir os rendimentos médios, aumentar os rendimentos baixos e ajustar os rendimentos excessivos."

Não é por acaso que ganhar a simpatia da classe trabalhadora se tornou um objetivo estratégico para Xi. Tanto os jovens do interior como os velhos proletários das empresas estatais haviam protagonizado duras greves alimentadas tanto pela duríssima exploração como pelo abismo social que os separava cada vez mais das camadas médias acomodadas6 e dos milionários ostensivos. De mãos dadas com o recém-estreado presidente, o regime quis criar um novo equilíbrio entre as classes.

Em primeiro lugar, aprovou um aumento geral dos salários: passou de 1,5 dólares/hora em 2005 para 3,3 dólares em 2016. As instituições estatais também fingiram preocupação com as condições de trabalho insuportáveis. Por exemplo, o Supremo Tribunal apresentou um relatório denunciando o trabalho excessivo, especialmente nas empresas tecnológicas, referindo-se à famosa jornada 996 (das 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias por semana).

Mas o mais significativo foi, sem dúvida, a ânsia de Xi e da burocracia ex-stalinista que controla o aparelho de Estado em impor sérias restrições às ambições políticas dos grandes capitalistas chineses, e com isso enviar uma mensagem às potências ocidentais que querem atuar através deles.

Xi encenou um golpe de autoridade com a defenestração pública do fundador de Alibaba e homem mais rico da China, Jack Ma. Foi contundente ao cortar-lhe as asas quando este tentou escapar ao controlo do Estado e se atreveu a criticar publicamente a política financeira do Partido. A mensagem que enviou a todos os milionários que se consideram mais fortes do que o Politburo causou um verdadeiro choque. Ao mesmo tempo, associava-se a mais um sector estratégico como a indústria tecnológica, indispensável para o funcionamento de toda a economia nacional e que se estava a revelar muito permeável às pressões e influências do imperialismo ocidental. Por último, mas não menos importante, apresentou-se às famílias trabalhadoras como uma espécie de vigilante que ataca os exploradores ricos. A multa exemplar de 2,8 mil milhões de dólares à Alibaba foi seguida de multas mais simbólicas a 22 empresas, incluindo a Didi e a Tencent.

A natureza de classe do regime chinês

Embora haja setores da esquerda que quiseram ver nesta viragem um regresso ao "marxismo", e mesmo a confirmação de que a China ainda é um Estado socialista, é importante que a retórica e as manobras das diferentes fações do PCC que chegaram ao poder após a morte de Mao não nos impeçam de compreender os processos de fundo que têm ocorrido nestas décadas.

É necessário recordar que a burocracia stalinista chinesa estudou muito cuidadosamente a forma caótica como a URSS se dissolveu. Ao contrário do PCUS, a liderança do PCC decidiu pilotar o desmantelamento da economia planificada, protegendo os seus interesses a todo o custo, e recorrendo a uma forte centralização e a um poderoso sector estatal. O Partido e o Estado continuaram a fundir-se, embora já como ferramentas ao serviço da acumulação capitalista.

A China beneficiou de enormes investimentos de capital ocidental e da transferência de tecnologia ao longo dos anos noventa do século XX e durante o século XXI. Mas este processo, que fez avançar claramente as forças produtivas chinesas, teve outras consequências.

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A direção do PCC decidiu pilotar o desmantelamento da economia planificada, protegendo os seus interesses a todo o custo. O Partido e o Estado continuaram a fundir-se, embora como ferramentas ao serviço da acumulação capitalista.

Tanto a burocracia como a burguesia chinesa se aproveitaram de umas condições favoráveis que amadureciam rapidamente para competir com as grandes potências. A enorme quantidade de capital de que dispunham, graças ao excedente comercial, permitiu-lhes cobrir as suas necessidades de fornecimento de matérias-primas e fazer investimentos milionários em todo o mundo. A América Latina, a América Central, a África e muitos países asiáticos estão cada vez mais dependentes de compras e créditos chineses.

Mas é a nomenclatura ex-stalinista e pró-capitalista, que controla o aparelho de Estado, que continua a marcar a política económica e tenta disciplinar os oligarcas, obrigatoriamente afiliados ao PCC, que colocam em risco a sua autoridade e a estabilidade do sistema. A burocracia e a nova burguesia formam a mesma classe dominante, mas no seu interior existem contradições óbvias e interesses divergentes que estão a ser resolvidos abruptamente. A burocracia não quer largar o leme, e o poder acumulado por Xi Jinping sublinha isso.

No regime burguês, o poder económico decide sobre todas as questões de substância e molda o aparelho de Estado de acordo com as suas necessidades. Mas isto não exclui que, em determinadas circunstâncias históricas, a classe dominante ceda a uma casta bonapartista, militar ou fascista, a gestão direta dos seus interesses, incluindo os económicos, a um custo considerável. Isto aconteceu na Alemanha Nazi, na Itália fascista ou na Espanha de Franco.

Mesmo nos Estados Unidos, durante os anos do New Deal, o governo de Roosevelt teve de pôr em causa alguns grandes monopólios que procuravam desencadear uma verdadeira guerra civil contra o movimento operário, e fê-lo para salvar a estabilidade de todo o sistema.

A intervenção estatal na economia não é uma invenção chinesa. Basta recordar o que aconteceu na Europa do pós-guerra, com a nacionalização de minas, siderurgias, caminhos-de-ferro... na França, Grã-Bretanha ou Alemanha. Ou mais recentemente, a poeira levantada na UE quando o Governo alemão aprovou um plano que mobilizará 200.000 milhões de euros em ajudas públicas às empresas alemãs, ou a injeção de 400.000 milhões de dólares de Biden para ajudar a produção nacional.

A diferença com a China é que o atual regime nasceu das mãos de uma poderosa burocracia que dirigia um Estado operário deformado e, embora partilhasse os lucros resultantes com a burguesia e uma elite crescente de multimilionários, é zelosa dos seus poderes e tem um instinto feroz de auto-preservação. Esta contradição objetiva ainda não foi resolvida e deve ser considerada na sua dinâmica, mas irá alimentar duros conflitos no futuro.
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Mas de volta à questão central. Nem Hu Jintao nem Xi Jinping pretendem inverter a contra-revolução capitalista. O eixo dos seus confrontos não tem nada a ver com o sistema em si; nesta matéria coincidem plenamente: capitalismo sim. As suas diferenças têm que ver com quais são as melhores fórmulas económicas para a China ser uma poderosa potência imperialista, sem esquecer por um segundo a salvaguarda dos seus privilégios. Algo semelhante está a acontecer hoje com a burguesia estado-unidense, dividida entre o remédio de Trump e o de Biden para tratar os sintomas de senilidade do seu império. A diferença é que o imperialismo chinês não está na sua fase de declínio, mas sim de ascensão.

Xi não representa uma rutura com o passado, mas sim a agudização dos traços bonapartistas do regime, porque "é precisamente esta a função mais importante do bonapartismo: erguer-se acima dos dois campos em luta para preservar a propriedade e a ordem."7 Podemos dizer que este é um bonapartismo clássico, no qual se mostra "uma aparente independência em relação às classes; quando na realidade não lhe deixa nada a não ser a liberdade necessária para defender os privilegiados."8 O mecanismo político continua o mesmo, "contando com a luta entre dois campos, 'salva' a 'nação' com a ajuda de uma ditadura burocrática-militar."9

As semelhanças entre a atitude de Xi Jinping e Stalin são marcantes. Este último também se equilibrou entre as diferentes classes de acordo com as necessidades de cada momento, especialmente em situações críticas. Foi o próprio Stalin que, em 1925, apoiou a proposta de Bukharin, apelando aos camponeses para se enriquecerem e em 1929 ordenou uma viragem de 180 graus que desencadeou a coletivização forçada face ao perigo da restauração capitalista. Stalin apoiou a política do chamado terceiro período de 1928 a 1934, no qual um ultra-esquerdismo burocrático defendia a ideia de que a social-democracia e o fascismo eram gémeos políticos, com as consequências desastrosas que esta política teve na Alemanha, e depois passou para o programa da frente popular e a colaboração de classes mais extrema. Tudo para proteger os privilégios e a sobrevivência política da casta burocrática que governou a URSS, mas nunca para defender os interesses dos trabalhadores soviéticos e a revolução socialista internacional.

Os métodos, as ferramentas, o recurso à demagogia, ao autoritarismo, à desumanização... são os mesmos, embora, durante muito tempo, tenha havido uma diferença, tão fundamental, que muda tudo. Apesar de todos os seus crimes, o stalinismo foi um sistema bonapartista cuja natureza de classe era proletária porque a burocracia do PCUS obtinha os seus privilégios através da propriedade nacionalizada e da economia planificada herdada da Revolução de Outubro.

Pelo contrário, o regime chinês já se transformou em bonapartismo burguês através da destruição dos elementos-chave que compunham o Estado operário, mesmo com todas as suas deformações burocráticas: a centralização e o planeamento da indústria nacionalizada concebida como um todo, o monopólio do comércio externo, o controlo de preços, a ausência de propriedade privada dos meios de produção e a nacionalização da terra. Todos estes fatores foram faz tempo eliminados tanto na China de Xi como na Rússia de Putin.

Milionários a falar de marxismo e socialismo

Quanto à questão do grande sector estatal que existe na China e que gera tanta controvérsia ao determinar a natureza de classe do seu Estado, concordamos com a metodologia utilizada por Trotsky quando teve de enfrentar a complexa tarefa de caracterizar a União Soviética dos anos 1930: “As tentativas de apresentar a burocracia soviética como uma classe ‘capitalista do Estado’, não resiste às críticas. (...) A burocracia não tem títulos nem ações. É recrutada, complementada e renovada graças à hierarquia administrativa, sem ter direitos particulares em matéria de propriedade. Um funcionário não pode transferir para os seus herdeiros o seu direito de exploração do Estado. Os privilégios da burocracia são abusos. (...) O principal objetivo do novo poder seria restaurar a propriedade privada dos meios de produção."10

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O regime chinês já se transformou em bonapartismo burguês. Há muito que a centralização e o planeamento da economia, o monopólio do comércio externo, o controlo dos preços, etc., foram eliminados.

Na China, o salto de qualidade ocorreu já faz tempo. Em março de 2007, sob o comando de Hu Jintao, 2.799 deputados dos 3.000 membros do Congresso Nacional Popular legitimaram a propriedade privada. Apesar do peso significativo do sector público na economia chinesa, o objetivo final é a exploração do trabalho assalariado para obter mais-valia apropriada de forma privada.

Apesar de que, em determinados momentos, alguns burgueses como Jack Ma sejam atacados, a China continua a ser um paraíso capitalista. Alguns dados são suficientes para ilustrar esta afirmação: a concentração de capital está a avançar a toda a velocidade: os 1% mais ricos possuem 31% da riqueza do país em comparação com 21% há duas décadas; A revista Forbes noticiava que em 2022 há 539 multimilionários com uma fortuna de quase 2 biliões de dólares, fazendo da China o segundo país com mais super ricos apenas atrás dos EUA. A estes, temos de acrescentar mais de seis milhões de milionários chineses.

A plutocracia cresceu muito. Multimilionários como Zhong Shanshan, proprietário da empresa de água engarrafada Nongfu Spring, e com um património de mais de 70.000 milhões de dólares, ou os nove proprietários das empresas de automóveis do país que aumentaram a sua fortuna global em mais de 22.000 milhões desde julho de 2020, ou aqueles que controlam o setor das energias renováveis, são um lembrete de que a desigualdade chinesa é esmagadora: em 2019 o coeficiente chinês de Gini era de 38,2, enquanto nos EUA era de 41,5.11

Os defensores desse artifício ideológico que é o socialismo de mercado ou a via chinesa para o socialismo, com os seus martelos e foices e bandeiras vermelhas que presidem aos congressos do Partido, enriqueceram muito com a contra-revolução capitalista. Por exemplo, a família do antigo primeiro-ministro Wen Jiabao acumulou uma fortuna de cerca de 2,7 mil milhões de dólares; o ex-Primeiro-Ministro Li Peng e a sua camarilha controlam o sector da eletricidade; Zhou Yongkang ex-membro do Politburo e seus parceiros dominam o petroleiro; a família de Chen Yun, o antigo líder da revolução, ocupa uma posição de liderança no sector bancário; Jia Qinglin, ex-presidente da Conferência Consultiva Política do Parlamento, domina o sector imobiliário em Pequim....

E Xi Jinping? Apesar dos seus esforços para esconder que ele também faz parte deste clube exclusivo de milionários que registam as propriedades em nome dos familiares, finalmente veio a saber-se que a sua irmã mais velha, Qi Qiaoqiao, o seu cunhado Deng Jiagui e a sua sobrinha Zhang Yannan, possuem ações com um valor próximo de 400 milhões de dólares, além de múltiplos imóveis de luxo.

Isto não impede Xi de se declarar um fervoroso admirador do socialismo. Um dos primeiros compromissos assumidos quando alcançou a secretaria-geral foi assegurar o futuro do PCC, comprometendo-se a evitar que sofresse o mesmo destino que o Partido Comunista da URSS: "Proporcionalmente, o Partido Comunista Soviético tinha mais membros do que nós. (...) No entanto, quando o então líder da URSS Mikhail Gorbachov decidiu introduzir reformas que levariam ao colapso do sistema soviético, ninguém se opôs. (...) Finalmente, bastou uma palavra silenciosa de Gorbachov para declarar a dissolução do Partido Comunista Soviético e um grande partido deixou de existir."

A análise materialista para explicar o colapso do regime estalinista na URSS... resume-se a uma única palavra de Gorbachov. Que marxismo o de Xi Jinping! Recentemente, durante a celebração do centenário do Partido, em julho de 2021, voltou a ser taxativo: "O Partido é a espinha dorsal da China. O sucesso da China depende do partido." Trata-se, obviamente, de uma questão de importância estratégica. Graças à fusão do Partido com o Estado, a liderança do PCC tem ferramentas poderosas para manter o controlo sobre o conjunto da sociedade e a economia.

Se for necessário fazer desaparecer ativistas sociais, prender e torturar dirigentes sindicais ou admoestar ricaços que se esquecem quem é o verdadeiro chefe…a polícia e a justiça actuarão imediatamente. Se tiver de ser estabelecida alguma melhoria salarial para preservar a estabilidade e manter o ritmo de produção nas fábricas, ou investir milhões para desenvolver a indústria privada de microchips e competir no mercado mundial, o Ministério do Trabalho e o banco estatal rapidamente se colocariam em marcha.

Mas Xi não só ama o Partido, também reivindica o marxismo: “O PCC defende os princípios básicos do marxismo e a procura da verdade a partir dos factos. Com base nas realidades da China, desenvolvemos uma visão clara sobre as tendências gerais da época, tomámos a iniciativa e fizemos explorações meticulosas. Conseguimos, assim, continuar a adaptar o marxismo ao contexto chinês e às necessidades dos nossos tempos, e a guiar o povo chinês no avanço da nossa grande revolução social.”

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O socialismo de mercado ou a via chinesa para o socialismo", com as suas foices e martelos e bandeiras vermelhas a presidir aos congressos do Partido, é uma artifício ideológico, e os seus defensores enriqueceram, e muito, com a contra-revolução capitalista.

Se não fosse a grande confusão ideológica que provoca, qualquer marxista rir-se-ia da mera ideia de reivindicar a China imperialista do século XXI como socialista. Em todo o caso, a suposta “adaptação do marxismo ao contexto chinês” é mais do que uma máscara com a qual os burocratas do PCC fingem esconder a sua conversão ao capitalismo. Trata-se também de preservar elementos do defunto Estado operário, a fim de resistir às investidas das potências imperialistas e obter apoio entre as massas da China e do mundo. O capitalismo de Estado chinês, e a sua administração política nas mãos do PCC, possui uma forte identidade nacional e explora-a até às suas últimas consequências. Manter o controlo de sectores industriais estratégicos, impedindo os concorrentes estrangeiros de ganharem poder sobre a economia chinesa, não é secundário.

A centralização do sector financeiro permite implementar rapidamente medidas de resgate em tempos de dificuldade, como durante a recessão de 2008, para além de manter um gigantesco aparelho de Estado, ou o que é o mesmo, uma gigantesca máquina de vigilância, controlo e repressão.

De nação oprimida a potência opressora

O capitalismo de Estado é uma das formas preferenciais de organização económica da burguesia quando embarca em guerras e a sua quota de participação no mercado mundial está em jogo. Nessa situação a maior parte do tecido produtivo e das finanças são centralizados e adquirem um certo grau de planificação para se colocarem ao serviço da vitória. Esta é a ligação entre o que está a acontecer em torno da Ucrânia e Taiwan e o programa de Xi.

A luta pela supremacia mundial acontece em paralelo com a exaltação nacional tanto nos EUA como na China, embora de formas diferentes. Se nos livrarmos da propaganda racista ocidental, compreenderemos por que razão esta questão continua a mobilizar o povo chinês, vítima das iniquidades mais desprezíveis por parte da Europa, dos Estados Unidos e do Japão. No já referido discurso centenário do PCC, Xi Jinping recordou como "após a Guerra do Ópio de 1840, com a China transformada, passo a passo, numa sociedade semi-colonial e semi-feudal, com o país humilhado, o povo devastado e a civilização coberta de pó, a nação chinesa sofreu um infortúnio sem precedentes". Xi continua: "Há um século, a nação chinesa apresentava-se ao mundo como lânguida e decadente. Hoje, mostra-lhe um panorama de prosperidade crescente, avançando a um passo imparável rumo à grande revitalização."

Como um bom Bonaparte, o presidente chinês usa verdades históricas para fins desonestos. É absolutamente inquestionável que a China tenha sido saqueada, despojada e colonizada pelas potências ocidentais, e que o povo protagonizou uma guerra revolucionária que lhe custou milhões de vidas para se livrar desse aviltamento. Mas não é possível ignorar que na divisão mundial do trabalho a China deixou de ser uma nação atrasada e oprimida para se tornar numa grande potência que explora outros povos. Lembremo-nos do que dizia Lenin sobre o que é o imperialismo:

"Um enorme 'excedente de capital' emergiu em países avançados... Enquanto o capitalismo continue a ser o capitalismo, o capital excedentário não será utilizado para elevar o nível de vida das massas do país, pois isso significaria a diminuição dos lucros dos capitalistas, mas para aumentar os lucros exportando capital para países atrasados no estrangeiro. Nestes países atrasados os lucros são muitas vezes elevados, uma vez que o capital é escasso, o preço das terras é relativamente reduzido, os salários são baixos e as matérias-primas são baratas. (....) a necessidade de exportar capital responde ao facto de que, em alguns países, o capitalismo já é "demasiado maduro, e o capital (...) não consegue encontrar espaço para investimentos "rentáveis"...".12

De Estado operário deformado a um Estado burguês, de uma colónia explorada ao imperialismo explorador 13. A China faz as suas aquisições em sectores de alta tecnologia na América do Norte e na Europa, enquanto na América Latina e em África faz outros tipos de investimentos. Por exemplo, entre 2005 e 2020, 81% das fusões e aquisições chinesas na América Latina corresponderam apenas a três sectores: empresas de eletricidade, gás e água (empresas de produção, distribuição ou ambas), petróleo e gás e mineração. Em África, entre 2000 e 2019, entidades chinesas assinaram mais de 1.100 compromissos de empréstimos avaliados em cerca de 153.000 milhões de dólares, principalmente em transportes e energia. Que efeitos tem este tipo de imperialismo? Só em Angola, onde a maior parte da produção de petróleo bruto do país está hipotecada à China, há uma refinaria que produz apenas 20% do consumo do país, pelo que os outros 80% dos produtos refinados devem ser importados com um custo de 4.000 milhões de dólares. Exemplos semelhantes encheriam dezenas de páginas.

Xi mente quando apresenta o imperialismo chinês como um gigante solidário que procura a colaboração com outros povos,14 uma ideia que certamente não é original. Quando os Estados Unidos estavam a estabelecer o seu poder numa escala planetária no início do século XX, Trotsky escreveu:

"Outra razão para o seu pacifismo virtuoso reside, como eu disse, na história. Os Estados Unidos entraram tarde na arena mundial, depois do mundo inteiro já ter sido tomado e dividido. O progresso imperialista dos Estados Unidos avança, portanto, sob a bandeira da "liberdade dos mares", "portas abertas", etc. (...) Quanto aos oceanos, o que dizem os EUA? "Livre navegação dos mares!" Soa extraordinário. Mas o que realmente significa? Significa: sai da frente marinha inglesa, dá-me espaço! "Portas abertas na China" significa: Japão, fora!...".15

Uma luta até à morte

A China substituiu estado-unidenses e europeus das suas áreas tradicionais de influência, quer na América Central e Latina, em África ou em grande parte da Ásia, para não falar das suas atuais manobras no Médio Oriente. Quando tentamos avaliar o verdadeiro apoio que a NATO tem na guerra na Ucrânia, constatamos que os países que não apoiam a Aliança representam dois terços do PIB e 85% da população mundial.

Ainda parece precoce e um pouco arriscado assegurar que a China se erguerá com a vitória e a hegemonia mundial, embora, por enquanto, o movimento da história pareça apontar nesse sentido. Esta perspetiva não coincide com a de muitos analistas que fazem das dificuldades económicas que a China está a atravessar o seu argumento principal. Não serão os marxistas a negar as fraquezas do capitalismo chinês. De facto, não há muito tempo, quando este sustentava a maior parte do crescimento mundial e se alimentava a teoria da desacoplagem, fomos nós quem negou essa possibilidade, recordando que nenhum país, por mais forte que seja, pode escapar à influência do mercado mundial e às crises de sobreprodução.

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Ainda parece precoce e um pouco arriscado assegurar que a China se erguerá com a vitória e a hegemonia mundial, embora, por enquanto, o movimento da história pareça apontar nesse sentido.

Se estudarmos como os EUA suplantaram o Império Britânico, veremos que foi um processo que durou algumas décadas e passou por duas guerras mundiais antes de podermos dizer que tinha terminado de forma irreversível. Embora pareça um paradoxo, um período que acabou por ser fundamental para consolidar a sua hegemonia foi o crash de 1929. Se no início da década de 30 do século XX tivéssemos limitado o nosso olhar à economia norte-americana isoladamente, certamente teríamos errado o prognóstico: em 1933 a sua produção industrial e o seu rendimento nacional diminuíram 50% e 38%, respectivamente, enquanto as grandes cidades sofreram desemprego que variava entre 40 e 50%.

Trotsky, baseando-se no método dialético, notou a direção em que estas contradições apontavam:

“Mas será que o poder capitalista exclui crises? Será que a Inglaterra, no auge da sua hegemonia mundial, não conheceu nenhuma crise? O desenvolvimento capitalista pode ser concebido sem crises? Eis o que dissemos sobre o assunto no Projeto de Programa da Internacional Comunista: '... também não excluímos que, dada a atual escala global do capitalismo estado-unidense, a próxima crise seja extremamente profunda e aguda. Mas não há absolutamente nada que justifique a conclusão de que isto irá restringir ou enfraquecer a hegemonia da América do Norte. Tal conclusão conduziria aos erros estratégicos mais graves. É precisamente ao contrário. Num período de crise, os EUA exercerão a sua hegemonia de forma mais completa, descarada e brutal do que num período de expansão. Os EUA tentarão ultrapassar os seus problemas e males, principalmente às custas da Europa. ...".16

E que dizer da força da aliança entre os EUA e a União Europeia para contrariar a continuação da ascensão da China? O aliado europeu mais fiável e obediente dos Estados Unidos, a Grã-Bretanha, não só atravessa uma turbulência política constante, como já se declarou em recessão técnica. A classe dominante do país mais poderoso da Europa, a Alemanha, observa com medo as consequências da guerra na Ucrânia e a política suicida de sanções contra a Rússia.

Apesar da verborreia sobre a Ucrânia e a democracia, os capitalistas alemães agem de forma muito pragmática: "As empresas alemãs nunca investiram tanto na China como no primeiro semestre de 2022: cerca de 10.000 milhões de euros (investimentos diretos). Além disso, exportou mais 2,9% do que no primeiro semestre do ano anterior, mas também importou mais 45,7%. Ou seja, a economia alemã nunca comprou tantos produtos chineses (8% das suas importações)." O Presidente alemão, Schols, foi "o primeiro líder da União Europeia e do G7 de nações industrializadas a viajar para a China e a encontrar-se pessoalmente com Xi desde o início da pandemia."

O Investimento Direto Estrangeiro aumentou 15,6% na China nos primeiros nove meses de 2022, em grande parte graças a destacados aliados dos EUA: "Durante o período em questão, os investimentos da Alemanha, da República da Coreia, do Japão e do Reino Unido aumentaram, respectivamente, 114,3%, 90,7%, 39,5% e 22,3%".

É um mau método confundir propaganda com a realidade. Quando a União Soviética entrou em colapso, a China era responsável por menos de um quinto das exportações dos estado-unidenses. Hoje, o gigante asiático duplica os números dos EUA. Como explicou Engels, "...o poder não é um mero ato de vontade, mas exige condições reais de desempenho, nomeadamente ferramentas ou instrumentos, das quais a mais perfeita ultrapassa a menos perfeita; (...) que a vitória do poder ou da violência se baseia na produção de armas, e esta por sua vez na produção em geral, isto é: sobre o "poder económico", sobre a "situação económica", sobre os meios materiais à disposição da violência."17

Como dissemos, ainda é muito cedo para afirmar, sem sombra de dúvida, que a vitória será da China. O que afirmamos é que o retrocesso paulatino da Europa e o declínio do império made in USA provocarão uma guerra até à morte contra o imperialismo chinês. E esta luta terá consequências formidáveis na luta de classes mundial.


NOTAS:

1. Foi uma campanha que teve lugar entre 1958 e 1961 e que causou a morte de milhões de pessoas.

2. Deng Xiaoping, Olhando para o Futuro Juntos, Discurso ao Comité Central a 13 de dezembro de 1978. Textos selecionados por Deng Xiaoping (1975-1982), People's Publishing House, Pequim, 1983, página 182.

3. Muitos soldados foram transferidos para Pequim do interior para garantir a sua origem camponesa. Ao contrário das cidades, nas zonas rurais houve simpatia pela nova política económica que incluía a possibilidade de os sectores agrícolas venderem a sua produção a um preço livre.

4. Fonte: Indexmundi.

5. A população urbana passou de 26% em 1990 para 60% em 2020.

6. Em 1990, os EUA e a Europa Ocidental agrupavam três quartos da classe média mundial, hoje a China concentra quase 50%. Dados obtidos a partir de La emergencia de la clase media: cosa de emergentes y China ya concentra la mitad de la clase media mundial.

7. Trotsky, O bonapartismo alemão, 1932.

8. Trotsky, A Revolução Traída. Traduzido de La Revolución Traicionada, Fundación Federico Engels, página 238.

9. Trotsky, Onde Vai a França? Traduzido de ¿Adónde va Francia?, Fundación Federico Engels, página 30.

10. Trotsky, A Revolução Traída. Traduzido de La Revolución Traicionada, Fundación Federico Engels, páginas 211 a 213.

11. Segundo este coeficiente, 0 corresponde ao máximo de igualdade de rendimentos (todos os cidadãos têm o mesmo rendimento) e 100 corresponde ao mínimo.

12. Lenin, O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Traduzido de El imperialismo fase superior del capitalismo, Fundación Federico Engels, 2016, páginas 98 e 99.

13. Entrada e saída de Investimento Direto Estrangeiro (IED) da China em milhares de milhões de dólares. Fonte: Banco Mundial.

Ano          Entrada IED            Saída IED          % saída face à entrada
2000        42,10                         4,61                    10,95%
2010        243,71                       57,95                  23,77%
2020        253,10                       153,72                60,73%

14. A URSS, apesar da sua monstruosa degeneração, não era imperialista. Os países associados à União Soviética através da COMECON pagavam o petróleo russo mais barato do que o petróleo ocidental: menos 52% em 1981, menos 32% em 1982 e menos 17% em 1983 (dados do Wiener Institut für Internationale Wirtschaftsvergleiche). De acordo com cálculos do próprio imperialismo britânico, que não são de todo suspeitos, a URSS vendia um milhão de barris por dia no mercado livre e o dobro, dois milhões por dia, em contratos regulares com os seus parceiros. (Los países del Comecon pagan más rublos por el petróleo soviético).

Estima-se também que a ajuda soviética a Cuba ultrapassava os 5 mil milhões de dólares por ano. (La URSS mantendrá su ayuda económica a Cuba)

Outro facto interessante é que o primeiro acordo comercial entre Cuba e a URSS estabeleceu um preço de pouco mais de 4 cêntimos por libra de açúcar, muito superior ao do mercado mundial. (¿Cómo medir el subsidio soviético a la economía cubana? Una nueva propuesta)

15. Trotsky, Perspectivas del desarrollo mundial, discurso de 28 de julho de 1921. Retirado de Sobre Europa y Estados Unidos. Editorial Pluma. Buenos Aires-1975. páginas 27, 28 e 47.

16. Trotsky, El bagaje de conocimientos de Molotov, setembro 1930.

17. Engels, Anti-Dühring, Traduzido de Anti-Dühring, Fundación Federico Engels, Madrid, página 171.

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