Há um ano previmos que a crise da habitação estava a chegar a um ponto crítico. Já na altura vivíamos uma situação na habitação completamente insustentável para a classe trabalhadora. Se há um caso que ilustra bem esta crise é o recente incêndio na Mouraria que consumiu um edifício e acabou por causar duas mortes, uma delas de um jovem de 14 anos. Num dos andares deste edifício viviam 22 imigrantes num apartamento sem quaisquer condições para albergar esta quantidade de moradores e cuja infraestrutura antiga e precária esteve na origem do incêndio. A gravidade do caso foi tal que nem os meios de comunicação burgueses puderam ignorá-lo, apesar deste não ser o único caso nos últimos anos de incêndios em edifícios sobrelotados, principalmente no inverno, nos grandes centros urbanos.

Desde 2017 que o preço de venda das casas cresce a um ritmo médio de 9,7% por ano. Esta situação deve-se essencialmente à especulação de fundos imobiliários, agências imobiliárias e grandes capitalistas cujo capital se amontoava parado e ocioso sem ser investido na economia produtiva. Esse capital fluiu massivamente para o setor do imobiliário e para o setor do turismo, transformando por completo a paisagem urbana. Milhares de residentes foram expulsos dos centros urbanos para que hotéis, alojamentos locais e edifícios de luxo, à boleia dos vistos gold, servissem de ativo financeiro e para lavagem de dinheiro de capitalistas nacionais e internacionais. Este dilúvio de capital no setor da habitação, num círculo vicioso de lucro especulativo e de aumento dos preços, e que não parece ter realmente um fim à vista, beneficiou largamente a classe dominante e deixou a classe trabalhadora na penúria.

Hoje em dia é necessário o equivalente a 11,4 anos de salário para um trabalhador conseguir comprar uma casa sem empréstimo. No mercado do arrendamento o aumento dos preços por metro quadrado foi de 35% desde 2018, particularmente nos grandes centros urbanos e respectivas periferias. Para se ter uma ideia, para se arrendar uma casa confortavelmente e ter ainda o suficiente para cobrir outras despesas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto seria necessário um rendimento de mais de 1500 € líquidos por mês. Isto num país onde 2,6 milhões de pessoas vivem com menos de 660 € por mês.

E o preço do espaço habitacional em si é apenas uma parte dos custos da habitação. A electricidade, o gás, a água e os custos de manutenção concorrem todos para o preço final. Isto quer dizer que se uma família trabalhadora não tiver como pagar certas despesas associada à casa seja ela renda, a amortização do empréstimo ou a conta da luz e do gás , rapidamente se podem ver em situação de sem-abrigo.

A situação da habitação em Portugal

Desde finais da década de 1970 que se vendeu à classe trabalhadora a ideia de ser proprietária da sua própria casa. Ainda hoje é apetecível para alguns os jovens trabalhadores possuírem a sua própria casa. Períodos de crescimento económico e de taxas de juros mais baixas permitiram a uma parte da classe trabalhadora comprar casa e ficar assim livre do peso das rendas e do senhorio. Mas o que acontece na maior parte dos casos é que se troca um senhorio por outro: o banco. Nos censos de 2021, sete em cada dez habitantes vivia numa habitação da qual é proprietário, mas a posse final da maior parte destas casas continuam a ser os bancos. Em 90% dos créditos à habitação as taxas de juro são variáveis e constituem o maior peso nas despesas mensais para as famílias, sendo a média de endividamento das famílias de 66 mil euros. Isto quer dizer que com o aumento dos juros muitas famílias estão a sentir reais dificuldades em conseguir cobrir todas as despesas.

Para além disto existe a agravante do envelhecimento das infraestruturas. A maior parte dos trabalhos estão concentrados nos grandes centros urbanos, e com os preços exorbitantes, a hotelaria e o imobiliário de luxo nos centros das cidades, os trabalhadores são cada vez mais empurrados para as periferias. Mas mesmo nas periferias os preços tornaram-se proibitivos. Aliás, não é por acaso que a questão da habitação tem sido tão debatida recentemente: isto é um problema que já não toca somente aos trabalhadores, mesmo a pequena-burguesia tem tido grandes dificuldades em conseguir manter a sua habitação. As novas construções que existem não visam a habitação acessível à maioria. São antes maioritariamente destinadas ou ao turismo ou à habitação de luxo, como condomínios privados. Chegámos ao ponto do ridículo de no Algarve se construírem novos hóteis para o turismo mas não haver casas suficientes para a quantidade de trabalhadores necessários ao seu funcionamento.

Com a falta de novas infraestruturas, o custo de vida alto e os baixos rendimentos, os trabalhadores têm que se contentar com edifícios precários, que não têm meios de reparar. Num estudo recente do INE constatou-se que cerca de 35,8% dos edifícios precisam de reparações 4,6% destes precisam de reparações profundas. Mas se a manutenção dos edifícios está a cargo dos trabalhadores e dos condomínios, então o mais provável é continuarem a degradar-se e isto pode ter consequências desastrosas. Sabe-se que a maioria das casas não tem condições nem para as altas temperaturas nem para as baixas e a maior parte da população usa equipamentos eléctricos para aquecer as suas casas no inverno. Juntando-se a isto instalações eléctricas obsoletas e dá-se o aumento de incêndios em edifícios. Só nos últimos dois anos, na faixa da Avenida Almirante Reis já se registaram pelo menos dez grandes incêndios em edifícios e que obrigaram ao realojamento das famílias que aí viviam. Mas estas notícias propagam-se um pouco por todo o país, principalmente nos centros urbanos.

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A pressão objetiva e social é de tal forma palpável que o Governo PS foi obrigado a apresentar, com grande alarido, um programa para a habitação que não responde a nenhuma das necessidades da classe trabalhadora.

Como seria de esperar, são as comunidades imigrantes que todos estes factores mais afectam. Não são poucas as notícias de pequenos apartamentos alojarem muito mais pessoas do que aquelas que deveriam. De acordo com o SEF mais de 200 mil imigrantes aguardam a sua autorização de residência, o que quer dizer que no entretanto não conseguem arranjar casa por vias legais, o que os obriga a arranjar outras formas de alojamento ou a ficar na rua. E mesmo para os imigrantes que conseguem a sua autorização, muitos senhorios recusam-se a alugar-lhes as casas e mesmo com a obrigação de dar a hipótese de arrendar, os proprietários não são obrigados a dar rendas acessíveis para a comunidade imigrante. Por isso vemos o aumento em 17,11% dos edifícios sobrelotados.

A pressão objetiva e social é de tal forma palpável que o Governo PS foi obrigado a apresentar, com grande alarido, um programa para a habitação.

O programa do Governo para a habitação

E qual é a solução que o Governo PS apresenta para a crise da habitação? Tira uma ponta da unha dos grandes proprietários para lhes devolver o total com juros. A medida mais “ambiciosa” do novo programa para a habitação é o arrendamento obrigatório das casas devolutas. Existem neste momento mais de 700 mil casas devolutas no país, cerca de 48 mil só em Lisboa. A medida do Governo, em teoria, obrigaria os proprietários destas casas devolutas a pô-las disponíveis para arrendamento. Com maior oferta de casas para arrendar daria-se assim resposta à procura e novamente em teoria controlar assim os preços das rendas. Mas analisemos esta medida mais de perto.

Em primeiro lugar, chamar a esta medida de arrendamento forçado é um exagero com certeza assim chamado para dar a parecer ser uma medida mais radical do que na verdade é. O que a medida diz que faz é algo que na verdade já existe na legislação: quando há procura para uma habitação com determinadas características, o proprietário da habitação que responder a essa procura deve disponibilizar a sua casa para arrendar as casas de férias encontram-se fora deste regime, independentemente das necessidades da população. O proprietário não é obrigado a oferecer uma renda acessível e os modos de arrendamento continuam completamente a cargo do mesmo. O papel do Governo é simplesmente de mediar esta transação e, nos casos em que o próprio Estado subarrendar, a diferença entre a renda de mercado e a renda “acessível” será inteiramente suportada pelo próprio Estado isto é, será suportada pela classe trabalhadora, tal como já acontece com a subsidiação dos passes ou dos livros escolares. Quando a renda não for paga, será ainda o Estado a pagá-la por inteiro e mesmo a promover o despejo do inquilino, atuando como capataz dos interesses especulativos na habitação.

As outras medidas do pacote passam por simplesmente disponibilizar 250 milhões para créditos a projetos privados e dar ainda mais benefícios fiscais aos proprietários que arrendam casas a juntar-se aos já substanciais benefícios atribuídos aos fundos de investimento imobiliário , principalmente se forem para alojamento de longa duração. O fim dos vistos gold e das novas licenças para alojamento local não alteram em nada o problema da habitação. Na verdade, estas medidas fecham simplesmente uma tendência que já se verificava, principalmente no alojamento local. O limite das rendas nos novos contratos de habitação não se aplicam a novas habitações postas no mercado (ou seja, não se aplicam às casas devolutas que poderão vir a ser arrendadas) e mesmo este limite é estabelecido pela inflação. Mais uma vez, não nos serve de muito.

Em suma, estas medidas visam uma reorganização do mercado, mas o problema subjacente mantém-se: a falta de casas com condições e acessíveis para as famílias trabalhadoras e a população mais pobre.

À esquerda, o PCP e BE dizem, com razão, que estas medidas são insuficientes e que não se traduzem num verdadeiro impacto na vida das pessoas. Mas também não avançam com medidas que ofereçam soluções consequentes. O PCP limita-se a dizer que deve ser assegurado o direito à habitação (mas como?). O BE, por outro lado, aparenta ir um pouco mais longe, ao sugerir a proibição da venda de casas a não residentes. É verdade que o peso da procura estrangeira é significativo a nível nacional: constituem 12% das vendas e sente-se principalmente nas grandes cidades no Porto chega mesmo aos 30%. Mas, no final, é indiferente ser o capital nacional ou internacional a adquirir e a especular com a habitação, a classe trabalhadora fica sempre a perder. Uma medida desta natureza não é nada menos do que protecionismo chauvinista.

Apesar da leviandade das medidas, não tardaram a ouvir-se as vozes dos grandes proprietários contra o pacote. Mas também não tardou o Governo a garantir que este programa não vai tocar nos seus lucros. Até já veio tranquilizar as grandes empresas de construção, prometendo o alívio das restrições na construção em zonas até agora protegidas, como é o caso das arribas do Algarve. A construção em Portugal continuará a ser um negócio bastante lucrativo e a especulação na habitação está bem protegida pelo Estado burguês. Este garante que o direito à habitação é um direito universal…mas que o direito à propriedade também é. Ora, isto é paradoxal. Enquanto os grandes proprietários, imobiliárias, construtoras e bancos detiverem o bolo dos lucros associados à habitação não pode haver solução possível. Se o Estado não toca nestes lucros e na propriedade privada então haverá sempre um problema de habitação.

A solução para a habitação

Se há algo que os últimos anos nos mostraram é que não podemos contar com um Estado burguês para cuidar do problema da habitação. Tão simplesmente pelo facto que a crise da habitação é um aspecto constante no sistema económico capitalista e está intrinsecamente ligada à questão da propriedade. Não se pode esperar que um Estado que protege a propriedade privada garanta a habitação para todos. Isto requer uma planificação pública que choca com os interesses dos capitalistas.

A única forma de resolver a crise da habitação é através da expropriação. Como vimos, há habitação em Portugal e em condições é necessário torná-la acessível. Em primeiro lugar é necessário proibir todos despejos imediatamente, nenhuma família trabalhadora deve ser obrigada a viver na rua para garantir os lucros de uns poucos. É preciso expropriar os fundos imobiliários, os grandes proprietários e as casas devolutas, sem excepção e sem indemnização. Nacionalizar os bancos e as empresas energéticas, garantir habitação e condições de habitabilidade para todos. Defendemos um plano nacional de construção, manutenção e recuperação de casas com vista à sua disponibilização a rendas que não podem ultrapassar 10% do rendimento total de uma família trabalhadora.

É ainda necessário o controlo democrático dos bairros através das comissões de moradores e de trabalhadores. Só os habitantes dos bairros poderão saber as necessidades específicas de cada um e implementar medidas para responder às necessidades da nossa classe e só assim podemos acabar com o capricho de senhorios racistas e lgbtifóbicos.

Mas mais do que isto é preciso ter sempre presente que só uma economia socialista poderá organizar a habitação disponível de acordo com as necessidades da população, poderá construir, não para investimento ou lucro, mas sim para dar resposta às reais necessidades sociais. Em capitalismo vivemos no caos habitacional, onde as casas são mercadoria e não um bem social básico. Só em socialismo podemos falar de habitação para todos.

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