Dia 12 de setembro marca-se o centenário do nascimento de Amílcar Cabral, líder da luta de libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde e um dos mais importantes teóricos marxistas de língua portuguesa.

Nascido na Guiné, Amílcar Cabral passaria a sua juventude em Cabo Verde, de onde a sua família provinha, num período marcado pela seca e a fome no arquipélago, com 45 mil pessoas morrendo e muitas outras tendo de fugir das ilhas, para ir trabalhar para as plantações de cacau em São Tomé e Príncipe, em condições de quase escravatura.

Essas experiências levaram-no a decidir ser engenheiro agrónomo, na esperança de poder ajudar o seu povo com a sua educação. Estudaria em Lisboa, no Instituto Superior de Agronomia, e no decurso dos seus estudos, ficaria alojado na Casa dos Estudantes do Império.

A Casa dos Estudantes do Império foi uma instituição fundada pelo Estado Novo, que visava criar uma “mentalidade imperial” entre os estudantes das colónias, ou seja, criar uma elite negra leal ao regime que possibilitasse a perpetuação do sistema colonial. Na realidade, a Casa tornou-se o berço do movimento anticolonial, com estes estudantes negros tomando consciência da sua posição, e a dos seus povos, dentro do sistema imperialista.

Para Amílcar Cabral, que estudava para combater secas e fomes como as que vivera em Cabo Verde, confrontava-se com o facto de o regime colonial português ter exacerbado essa tragédia, não tomando medidas para melhorar o acesso à água potável ou fornecendo ajuda alimentar aos que sofriam de fome.

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Com colegas do Instituto Superior de Agronomia. Lisboa, 1946-50. Fotografia: Casa Comum.

Seria um dos dinamizadores do Centro de Estudos Africanos, organizado entre estudantes da Casa dos Estudantes do Império, que nasceu como um movimento literário, no qual questões como a negritude, que tinham vindo a ser desenvolvidas por filósofos africanos e da diáspora africana, eram exploradas. Mas rapidamente, Amílcar, e muitos dos seus camaradas, aperceberam-se que estas discussões literárias não bastariam: era necessário organizar os seus povos, e levar a cabo uma luta de libertação do jugo colonial. E, para isso, era necessário a construção do partido revolucionário.

De regresso à sua terra natal, o seu trabalho como engenheiro agrónomo deu-lhe um contacto muito próximo com o povo guineense, e um conhecimento profundo da sua sociedade, que seriam essenciais para a liderança que teria na sua luta de libertação. Em 1956, participaria na criação, em Bissau, do Partido Africano de Independência, que se tornaria o PAIGC. Participaria também, durante uma estadia em Angola, na fundação do MPLA.

Em agosto de 1959, a greve dos trabalhadores do porto de Bissau, no cais de Pidjiguiti, e o seu massacre às mãos das autoridades portuguesas, serviria de centelha para dar início ao movimento de libertação da Guiné-Bissau, movimento esse que, em 1963, esgotadas as vias diplomáticas, tomou a via militar.

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Cabral discursa no I Congresso do PAIGC. Fotografia: Casa Comum.

O movimento de libertação da Guiné, liderado por Amílcar Cabral, conseguiu grandes vitórias contra as forças coloniais. Em 1968, já praticamente todo o país se encontrava libertado, com apenas as cidades costeiras, nomeadamente Bissau, permanecendo em mãos portuguesas.

Nas regiões libertadas, mesmo sob a constante ameaça de bombardeamentos aéreos, por vezes com armas químicas, o trabalho de desenvolvimento nacional ia sendo levado a cabo, construindo-se escolas, centros de saúde e os chamados “armazéns do povo”, que garantiam a alimentação da população através da distribuição socializada.

O PAIGC, enquanto partido revolucionário, teve uma enorme importância nesta construção, desenvolvendo os primórdios de um Estado socialista, que priorizava o fornecimento dos serviços básicos às populações, mas também levando a cabo o trabalho de reforçar o poder popular e de treino de quadros, capazes de levar a cabo a gestão socialista e democrática da sociedade.

Nesse sentido, a educação era de enorme importância. Para Amílcar Cabral, a educação da população serviria não apenas para desenvolver o país, mas como mecanismo de resistência contra a ocupação colonial, capaz de formar quadros que desenvolvessem a luta de libertação e o desenvolvimento entre os seus próprios povos, e que levasse à autoconsciência da população quanto à sua posição no mundo, de maneira a permitir a construção de uma sociedade socialista, construção essa que necessariamente teria que provir de toda a população, e não de um pequeno círculo de quadros intelectuais formados em Lisboa.

Notável em todo este processo foi o trabalho de formação de mulheres, que numa sociedade tradicionalmente muito patriarcal, passaram a usufruir pela primeira vez de educação e de um papel nas decisões políticas e na gestão das suas próprias comunidades, um trabalho que demonstra a luta do PAIGC não só contra o jugo colonial, mas contra as forças reacionárias na sociedade colonizada.

Em 1973, a Guiné dispunha de 164 escolas primárias nas regiões libertadas, com dezenas de milhares de alunos. Em menos de 10 anos, tinham formado centenas de quadros políticos e sindicais, que se pretendiam tornar professores das próximas gerações e líderes na governação dos seus povos. Era um trabalho incansável com resultados demonstráveis: a cada ano cresciam o número de quadros e estudantes formados nas regiões libertadas, e sofisticavam-se os alicerces da sua sociedade socialista, permitindo mesmo, em 1972, a convocação de todo um processo de debates e eleições para uma assembleia nacional, como órgão de soberania popular, que lançasse a fundação de uma Guiné-Bissau livre.

A 24 de setembro de 1973, a Guiné-Bissau proclamaria a sua independência, que viria a ser reconhecida pela ONU em novembro desse mesmo ano. Mas Amílcar Cabral nunca chegaria a ver a sua nação livre. A 20 de janeiro desse ano, foi assassinado, vítima de intrigas internas do partido manipuladas pela PIDE.

A morte de Amílcar Cabral às mãos de inimigos internos seria apenas o prelúdio de uma tragédia ainda maior, a degeneração do seu partido e da construção revolucionária que ele liderara. Logo a seguir à independência, começou o processo de burocratização do regime, que levaria à formação de uma elite que açambarcaria cada vez mais privilégios para si próprio, culminando na privatização, em 1992, dos Armazéns do Povo e de outras empresas públicas, frutos do trabalho levado a cabo, durante a luta pela independência, nas zonas libertadas.

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Amílcar Cabral: uma referência incontornável da luta anti-racista e anti-colonialista.

Como o colocaria um biógrafo de Amílcar Cabral: “O PAIGC ainda sobrevive como sigla. Tudo aquilo por que lutou e chegou a alcan­çar — libertação nacional, paz, progresso, independência, melhoria das condições de vida, unidade Guiné-Cabo Verde, um Estado, uma Constituição — falhou, está em ruí­nas, desapareceu.”

O legado de Amílcar Cabral é vital de se retomar, especialmente numa época como a nossa, na qual a luta que este empreendeu, contra o colonialismo e contra o racismo, continua tão viva. Temos de aprender a seguir os seus passos, e avançar das discussões literárias para a organização e a construção do partido revolucionário que permita a nossa libertação.

Cabral matadu, ma i ka muri! Cabral foi morto, mas não morreu!

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