O dia 20 de Agosto de 2020 marca o 80º aniversário do assassinato de Leon Trotsky às mãos de Ramon Mercader, o agente da GPU que executou o crime ordenado por Stalin após anos de tentativas infrutíferas. A morte do companheiro de armas de Lenin, líder da Revolução de Outubro e do Comité Revolucionário Militar, organizador do Exército Vermelho e fundador da Internacional Comunista, foi o culminar da campanha de extermínio da velha guarda bolchevique desencadeada pelo stalinismo. Apesar do tempo que se passou, o trabalho teórico e prático de Trotsky continua a inspirar revolucionários em todo o mundo.



Trotsky não se conformou em ser propagandista do marxismo. As suas ideias representaram uma contribuição original e significativa para o arsenal do socialismo revolucionário. Partindo do pensamento de Marx e Engels, agiu em muitos aspectos como um restaurador da sua teoria — tal como Lenin ou Rosa Luxemburgo — purgando-a das deturpações e distorções do reformismo. A partir da sua formulação da teoria da revolução permanente, no calor da primeira Revolução Russa de 1905, Trotsky abordou questões essenciais da actividade revolucionária contemporânea e da luta de classes. Contribuiu de forma destacada para a defesa da dialéctica materialista contra o idealismo positivista, assim como para a luta contra o revisionismo, sempre apoiado na teoria marxista do Estado. Os seus textos sobre a defesa armada da revolução, conhecidos como Escritos Militares, para além de revelarem a sua capacidade como estratega militar, são uma amostra de um pensamento original num campo pouco explorado pelo marxismo. As suas idéias sobre imperialismo, economia política, tácticas e estratégias revolucionárias, construção do partido... reflectiram-se de forma excepcional nos principais manifestos e documentos dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista que o próprio escreveu. Era um escritor de talento reconhecido, e o apelido que Lenin lhe deu, Pena, não foi por acaso. A qualidade da sua prosa poderia tê-lo tornado um escritor famoso, mas esteve sempre ao serviço da emancipação da classe trabalhadora.

Leon Trotsky, preso e exilado pelo regime czarista após a revolução de 1905, expulso pela burguesia francesa e espanhola dos respectivos territórios devido ao seu compromisso internacionalista nos anos da Primeira Guerra Mundial, enclausurado num campo de concentração no Canadá antes de regressar à Rússia revolucionária, Trotsky foi submetido a uma campanha de calúnias e difamações sem igual na história.

Primeiro, foi alvo do ódio da burguesia mundial quando, ao liderar o Exército Vermelho, defendeu as conquistas de Outubro dos ataques imperialistas e da tentativa de restauração capitalista dos generais czaristas. A vitória na guerra civil, chave para a consolidação do poder soviético, deve muito ao seu génio militar, audácia e temeridade. Mais tarde, durante os anos de reacção burocrática e da supressão da democracia dos trabalhadores no partido bolchevique e na URSS, tornou-se o alvo da nova casta governante, e tanto ele quanto os seus camaradas sofreram uma perseguição implacável que terminou, para a maior parte deles, em execução nos campos de concentração do Círculo Polar Árctico.

A contribuição de Trotsky para a Revolução de Outubro é indiscutível, apesar das falsificações com as quais o stalinismo tentou apagar a sua marca. O partido bolchevique ficou conhecido mundialmente como o partido de Lenin e Trotsky. Um e outro estiveram sempre ligados pelo vínculo sólido que é a concepção marxista da história, da filosofia e da luta de classes. As suas divergências políticas anteriores foram resolvidas quando chegou a hora da verdade para os revolucionários: na batalha crucial pela tomada do poder, compartilharam um ponto de vista comum que colocaram em prática. Lutando intransigentemente contra a política de colaboração de classes dos mencheviques e social-revolucionários (SRs), lutando contra a traição do Governo Provisório, organizando a vanguarda operária para ganhar o apoio das grandes massas de oprimidos, levantando a bandeira do internacionalismo proletário contra o patriotismo social, foram os actores decisivo do primeiro triunfo socialista da história.

As vidas de Lenin e Trotsky fundem-se com a Revolução Russa, com os anos heróicos da guerra civil vitoriosa, com os quatro primeiros anos da Internacional Comunista, quando ainda era o instrumento da revolução socialista mundial. Mas após a morte de Lenin, em Janeiro de 1924, Trotsky enfrentou a tarefa mais importante da sua vida, mais importante ainda do que a realizada nos dias revolucionários de Outubro. A explicação científica do fenómeno do stalinismo, da degeneração burocrática da URSS a partir de um ponto de vista marxista, é a sua grande obra. Uma explicação que não se limitou ao campo da crítica teórica para restabelecer a doutrina do marxismo revolucionário, mas que se tornou um guia de acção no partido bolchevique e na Internacional Comunista com o fim de os restaurar como instrumentos da revolução proletária.

Esta tarefa ideológica e militante levou ao nascimento da Oposição de Esquerda, em 1923, e representou a sua maior contribuição política, aquela que adquiriu maior importância para as futuras gerações de lutadores pelo socialismo. A acção destrutiva dos epígonos stalinistas, notada por Trotsky em centenas de textos (entre os quais se destaca o seu magnífico livro, A Revolução Traída), foi consumada com o triunfo da contra-revolução capitalista na Rússia e a dissolução da URSS às mãos dos herdeiros da burocracia termidoriana.

Isaac Deutscher, um dos biógrafos mais proeminentes de Trotsky, escreveu o seguinte ao fazer um balanço da sua trajectória:

“Tão abundante e esplêndida foi a carreira de Trotsky que qualquer parte ou fracção dela teria bastado para preencher a vida de uma personalidade histórica notável. Se ele tivesse morrido aos trinta ou trinta e cinco anos, pouco antes de 1917, ele teria ocupado o seu lugar ao mesmo nível de pensadores russos e revolucionários como Belinsky, Herzen e Bakunin, como seu descendente marxista e igual. Se a sua vida tivesse acabado em 1921 ou depois, por volta do ano da morte de Lenin, ele teria sido lembrado como o chefe de Outubro, como o fundador do Exército Vermelho e o seu líder na guerra civil, e como o mentor da Terceira Internacional que falava aos trabalhadores do mundo com o vigor e o brilho de Marx e em tons que não se ouviam desde o Manifesto Comunista. Foram necessárias várias décadas de falsificações e calúnias stalinistas para manchar e apagar esta sua imagem da memória de duas gerações.

As ideias que expôs e o trabalho que fez como chefe da Oposição [de Esquerda] entre 1923 e 1929 constituem a soma e a substância do capítulo mais transcendente e dramático dos anais do bolchevismo e do comunismo. Trotsky actuou como protagonista na maior polémica ideológica do século [XX], como o iniciador intelectual da industrialização e da economia planeada e, finalmente, como porta-voz de todos aqueles que resistiram, dentro do partido bolchevique, ao advento do stalinismo. Mesmo que não sobrevivesse ao ano de 1927, teria deixado um legado de ideias que não poderia ser destruído ou condenado ao esquecimento permanente, legado pelo qual muitos dos seus seguidores enfrentaram o pelotão de fuzilamento com o seu nome na boca, um legado ao qual o tempo vai adicionando relevância e peso... ”.1

Um mundo sem visto. Assim foi a sua vida depois de ser expulso da URSS, em 1929. Com os seus camaradas da Oposição de Esquerda atirados para prisões e campos de concentração, os seus filhos e familiares assassinados por agentes da GPU, cercado e isolado pela opinião pública burguesa e pela contra-revolução, Trotsky não cedeu, não sucumbiu e nunca perdeu a sua convicção no futuro comunista da humanidade.

Por que somos trotskistas? Somos trotskistas porque somos marxistas e leninistas. Trotsky não somente manteve a continuidade do programa do socialismo revolucionário, como foi capaz de transmitir uma bandeira de luta que resistiu ao teste de duríssimos acontecimentos, e que é a única capaz de explicar o fenómeno da degeneração do primeiro Estado operário da história e fornecer uma alternativa socialista coerente e viável.

Leopold Trepper, o lendário chefe da Orquestra Vermelha — o serviço de contra-espionagem da Internacional Comunista na Europa ocupada pelos nazis — e um comunista convicto na década de 1930, escreveu um tributo sincero a Trotsky no seu célebre livro, O Grande Jogo. Merece ser reproduzido na íntegra pela profundidade da denúncia:

“A chama de Outubro extinguiu-se nos crepúsculos carcerários. A revolução degenerada criou um sistema de terror e horror no qual os ideais socialistas eram escarnecidos em nome de um dogma fossilizado ao qual os carrascos ainda tinham o desplante de chamar marxismo. E, no entanto, nós continuávamos, exilados mas dóceis, triturados pela engrenagem que tínhamos posto em marcha com as nossas próprias mãos. Como rodas do mecanismo, aterrorizados até à loucura, tinhamo-nos transformado no instrumento da nossa própria submissão. Todos aqueles que não se opuseram à máquina stalinista são responsáveis, colectivamente responsáveis, ​​pelos seus crimes. Eu próprio não escapo a este veredicto.

Mas quem protestou naquela época? Quem se ergueu para bradar a sua condenação? Os trotskistas podem reivindicar essa honra. Como o seu líder, que pagou com a morte a sua obstinação, os trotskistas lutaram totalmente contra o stalinismo e foram os únicos a fazê-lo. Na época das grandes purgas, já não podiam gritar a sua revolta senão nas imensidões geladas para onde os levaram a fim de melhor exterminá-los. Nos campos de concentração, a sua conduta foi sempre digna e até mesmo exemplar. Mas as suas vozes perderam-se na tundra siberiana. Hoje, os trotskistas têm o direito de acusar aqueles que então entoaram os uivos de morte dos lobos. Que não se esqueçam, porém, que tinham sobre nós a imensa vantagem de possuir um sistema político coerente, capaz de substituir o stalinismo, e ao qual se puderam agarrar no meio da profunda angústia da revolução traída. Os trotskistas não “confessavam”, porque sabiam que suas confissões não serviriam nem ao partido nem ao socialismo.”2

A Esquerda Revolucionária Internacional tem realizado um importante trabalho de divulgação das obras de Trotsky, que podem ser adquiridas no site da Fundación Federico Engels. E agora tomámos a decisão de começar a edição de uma nova coleção de seus escritos fundamentais agrupados tematicamente — textos e artigos à margem dos seus livros mais conhecidos — e que representam uma contribuição extraordinária ao pensamento socialista. As obras completas de Trotsky, cuja impressão foi interrompida na URSS por ordem de Stalin em 1926, abrangem mais de 50 grossos volumes. Iniciaremos a compilação desses escritos em Setembro com o livro Los marxistas y los sindicatos.

Como parte da comemoração deste 80º aniversário colocaremos obras de Trotsky e de outros autores tanto no site da Esquerda Revolucionária da secção portuguesa como nas secções do Estado Espanhol, Alemanha, México e Venezuela. Iniciamos esta série com um de seus textos mais marcantes: As Lições de Outubro.


Notas:

1. Isaac Deutscher, The Prophet - The Life of Leon Trotsky, Verso Books, Londres 2015, pp. 3826-3828 (tradução nossa).

2. Leopold Trepper, O Grande Jogo da Espionagem, Editora Portugália, Brasil 1975, pp. 57-58.


AS LIÇÕES DE OUTUBRO1

1. Devemos Estudar a Revolução de Outubro

Fomos bem sucedidos na Revolução de Outubro, mas esta tem feito pouco sucesso na nossa imprensa. Até ao momento, não dispomos de uma única obra que ofereça um quadro geral da revolução de Outubro e que enfatize os seus principais aspectos políticos e organizativos. Pior ainda, mesmo o material de primeira mão disponível — incluindo os documentos mais importantes — directamente relacionados com os vários detalhes de preparação da revolução, ou com a própria revolução, continua por publicar. Foram publicados numerosos documentos e material considerável sobre a história da revolução e do partido pré-Outubro, assim como sobre o período pós-Outubro. Mas Outubro em si tem recebido muito menos atenção. Levada a cabo a revolução, parece que concluímos que nunca teríamos de a repetir. É como se pensássemos que nenhum benefício directo e imediato para as tarefas inadiáveis de trabalho organizativo futuro pudesse ser retirado do estudo de Outubro, das condições reais em que foi preparado, da sua realização e do trabalho de consolidação durante as primeiras semanas.

Tal abordagem — embora possa ser subconsciente — é, no entanto, profundamente errónea e, além disso, estreita e nacionalista. Nós próprios talvez nunca tenhamos de repetir a experiência da Revolução de Outubro, mas isso não implica de todo que não tenhamos nada a aprender com essa experiência. Constituimos uma parte da Internacional, e os trabalhadores de todos os países ainda enfrentam a necessidade de solucionar o problema do seu próprio "Outubro". No ano passado tivemos bastantes provas de que os partidos comunistas mais avançados do Ocidente não só falharam em assimilar a nossa experiência de Outubro como nem sequer conhecem os seus factos.

Certamente que se pode levantar a objecção de que é impossível estudar Outubro ou sequer publicar os documentos relacionados com Outubro sem o risco de levantar antigas divergências. Mas tal abordagem à questão seria totalmente mesquinha. As discordâncias de 1917 foram de facto muito profundas e não foram de forma alguma acidentais. Mas nada poderia ser mais desprezível do que uma tentativa de transformá-las agora, depois de um intervalo de vários anos, em armas contra aqueles que na época estavam enganados. Seria, no entanto, ainda mais inadmissível permanecer em silêncio sobre os problemas mais importantes da Revolução de Outubro, que são de importância internacional, por causa de considerações insignificantes de ordem pessoal.

O ano passado sofremos duas derrotas esmagadoras na Bulgária [2]. Primeiro, o partido deixou escapar um momento excepcionalmente favorável à acção revolucionária devido a considerações fatalistas e doutrinárias (o levantamento dos camponeses após o golpe de junho de Tsankov). Então, o partido, esforçando-se por corrigir o seu erro, lançou-se na insurreição de Setembro sem os preparativos políticos ou organizacionais necessários. A revolução búlgara deveria ter sido um prelúdio para a revolução alemã. Infelizmente, o mau prelúdio búlgaro levou a uma sequela ainda pior na própria Alemanha [3]. Na última parte do ano passado, testemunhamos na Alemanha uma demonstração clássica de como é possível falhar uma situação revolucionária perfeitamente excepcional e de importância histórica mundial. Mais uma vez, no entanto, nem a experiência búlgara nem mesmo a alemã do ano passado foram avaliadas adequada ou suficientemente. O autor dessas linhas traçou um esboço geral do desenvolvimento de eventos na Alemanha no ano passado. Tudo o que aconteceu desde então corroborou esse esboço. Ninguém mais sequer tentou avançar com outra explicação. Mas precisamos mais do que um esboço. É indispensável que tenhamos um quadro concreto, com abundantes dados factuais, dos desenvolvimentos do ano passado na Alemanha, e que forneça uma explicação concreta das causas dessa cruel derrota histórica.

É difícil, no entanto, falar de uma análise dos eventos na Bulgária e na Alemanha, quando não elaborámos, até ao momento, um quadro político e táctico da Revolução de Outubro. Nunca tornámos claro para nós mesmos o que realizámos e como o realizámos. Após Outubro, no rescaldo da vitória, parecia que os eventos da Europa desenvolver-se-iam por sua vontade própria e, além disso, num período tão breve que não deixaria tempo para qualquer assimilação teórica das lições de Outubro.

Mas os eventos provaram que, sem um partido capaz de dirigir a revolução proletária, a própria revolução torna-se impossível. O proletariado não pode conquistar o poder através de uma insurreição espontânea. Mesmo na altamente industrializada e culta Alemanha, a insurreição espontânea dos trabalhadores — em Novembro de 1918 — apenas resultou na transferência do poder para as mãos da burguesia. Uma classe possidente é capaz de tomar o poder que foi arrancado de outra classe possidente porque é capaz de se apoiar nas suas riquezas, no seu nível cultural e nas suas inúmeras conexões com o antigo aparelho estatal. Mas não há nada mais que possa servir ao proletariado além do seu próprio partido.

Foi só em meados de 1921 que realmente começou o trabalho completo de construção dos Partidos Comunistas (sob as palavras de ordem "Ganhar as massas", "Frente unida", etc.) [4]. Os problemas de Outubro recuaram e, simultaneamente, o estudo de Outubro foi também relegado a segundo plano. No ano passado voltámos a deparar-nos com os problemas da revolução proletária. Já é tempo de reunir todos os documentos, de editar todo o material disponível e aplicarmo-nos ao seu estudo!

Estamos bem cientes, é claro, que cada nação, cada classe e até cada partido aprende principalmente com os duros golpes da sua própria experiência. Mas isso não implica, de forma alguma, que a experiência de outros países, classes e partidos seja de menor importância. Se tivéssemos falhado em estudar a grande Revolução Francesa, a revolução de 1848 e a Comuna de Paris, nunca teríamos realizado a Revolução de Outubro, ainda que tivéssemos passado pela experiência de 1905 [5]. De resto, atravessámos esta nossa experiência “nacional” com base em deduções de revoluções anteriores e continuando a sua linha histórica. Todo o período posterior da contra-revolução foi tomado pelo estudo das lições de 1905.

No entanto esse trabalho não foi realizado em relação à revolução vitoriosa de 1917 — nem mesmo uma décima parte. É claro que agora não estamos a atravessar anos de reação, nem estamos no exílio. Por outro lado, as forças e os recursos sob nosso comando agora não são de forma alguma comparáveis aos que tínhamos durante aqueles anos de dificuldades. É necessário avançar claramente com a tarefa de estudar a Revolução de Outubro, tanto à escala do partido quanto à da Internacional como um todo. É indispensável que todo o partido, e especialmente as gerações mais jovens, estudem e assimilem passo a passo a experiência de Outubro. A lição alemã do ano passado não é apenas um sério aviso, como também uma ameaçadora advertência.

Sem dúvida, será levantada a objeção de que nem mesmo o conhecimento mais profundo do curso da Revolução de Outubro teria garantido a vitória ao nosso partido alemão. Mas esse tipo de raciocínio filisteu não nos levará a lugar algum. Certamente que o simples estudo da Revolução de Outubro não é suficiente para garantir a vitória noutros países; mas podem surgir circunstâncias em que existam todos os pré-requisitos para a revolução, à exceção de uma direcção determinada e clarividente, experimentada no entendimento das leis e métodos da revolução. Tal foi exatamente a situação do ano passado na Alemanha. Situações semelhantes podem ocorrer noutros países. Mas para o estudo das leis e métodos da revolução proletária, até o presente momento, não há uma fonte mais importante e abundante do que a nossa experiência de Outubro. Os líderes dos partidos comunistas europeus que falham em assimilar a história de Outubro por meio de um estudo crítico e minucioso assemelhar-se-iam a um Comandante-Chefe que prepara novas guerras sob condições modernas sem ter estudado a experiência estratégica, tática e técnica da última guerra imperialista. Tal Comandante-Chefe inevitavelmente condenaria os seus exércitos à derrota no futuro.

O instrumento fundamental da revolução proletária é o partido. Com base na nossa experiência — mesmo tendo apenas um ano, de Fevereiro de 1917 a Fevereiro de 1918 — e com base na experiência complementar na Finlândia, Hungria, Itália, Bulgária e Alemanha, podemos postular como uma lei quase inalterável que uma crise partidária é inevitável na transição da actividade revolucionária preparatória para a luta imediata pelo poder. Regra geral, as crises surgem no partido a cada viragem importante, como o seu prelúdio ou consequência. A explicação para isso está no facto de que qualquer período no desenvolvimento do partido tem características próprias e exige hábitos e métodos de trabalho específicos. Uma viragem tática implica uma quebra em maior ou menor grau desses hábitos e métodos. Nisto reside a raiz mais imediata e direta dos conflitos e crises internas do partido.

«Com demasiada frequência aconteceu», escreveu Lenin em Julho de 1917, «que, quando a história sofreu uma alteração brusca, até partidos progressistas foram incapazes de se adaptar à nova situação por algum tempo e repetiram palavras de ordem que antes estavam corretos mas agora tinham perdido todo o significado — de forma tão “repentina” quanto a alteração acentuada na história». [6]

Daí surge o perigo de que se a mudança for muito abrupta ou repentina, e se no período anterior muitos elementos de inércia e conservadorismo se tiverem acumulado nos principais órgãos do partido, então o partido mostrar-se-á incapaz de cumprir o seu papel naquele momento crítico para o qual se preparou ao longo de anos ou décadas. O partido é arruinado por uma crise, e o movimento passa ao lado do partido — e segue em direção à derrota.

Um partido revolucionário está sujeito à pressão de outras forças políticas. Em cada dado período do seu desenvolvimento, o partido elabora os seus próprios métodos para combater e resistir a essa pressão. Durante uma mudança táctica e os reagrupamentos e fricções internos desta resultantes, o poder de resistência do partido enfraquece. Daí sempre surge a possibilidade de que os agrupamentos internos, gerados pela necessidade de uma mudança tática, se desenvolvam consideravelmente para além dos pontos de divergência e se tornem a base para diferentes tendências de classe. Por outras palavras: um partido que não acompanhe as tarefas históricas de sua própria classe torna-se, ou corre o risco de se tornar, uma ferramenta indireta das outras classes.

Se o que dissemos acima se aplica a qualquer mudança táctica importante, ainda mais se aplica às grandes mudanças estratégicas. Por tácticas políticas entendemos, usando a analogia da ciência militar, a arte de conduzir operações isoladas. Por estratégia, entendemos a arte da conquista, ou seja, a tomada do poder. Antes da guerra não fazíamos sistematicamente essa distinção. No tempo da Segunda Internacional limitámo-nos apenas à concepção de tácticas social-democratas. Isso também não foi acidental. A social-democracia aplicava tácticas parlamentares, tácticas sindicais, tácticas municipais, tácticas cooperativas e assim por diante. Mas a questão de combinar todas as forças e recursos — todo o tipo de armas — para obter a vitória sobre o inimigo nunca foi realmente levantada na época da Segunda Internacional, na medida em que a tarefa prática da luta pelo poder não foi levantada. Foi a revolução de 1905 que colocou pela primeira vez, após um longo intervalo, as questões fundamentais ou estratégicas da luta proletária. Deste modo garantiu imensas vantagens aos social-democratas russos revolucionários, isto é, aos bolcheviques. A grande época da estratégia revolucionária começou em 1917, primeiro para a Rússia e depois para o resto da Europa. A estratégia, é claro, não elimina tácticas. As questões do movimento sindical, da atividade parlamentar e assim por diante não desaparecem, mas agora passam a empregar um novo significado como métodos subordinados de uma luta combinada pelo poder. As táticas estão subordinadas à estratégia.

Se as mudanças tácticas geralmente levam a atritos internos no partido, quão mais profundos e ferozes serão os atritos resultantes das mudanças estratégicas! E a mais abrupta de todas as mudanças é a mudança do partido proletário do trabalho de preparação e propaganda, ou de organização e agitação, para a luta imediata pelo poder, para uma insurreição armada contra a burguesia. Tudo o que restar de irresoluto, céptico, conciliador e capitulacionista no interior do partido — em suma, menchevique — sobe à superfície em oposição à insurreição, busca fórmulas teóricas para justificar a sua oposição e encontra-as prontas no arsenal dos oponentes oportunistas de ontem. Teremos ocasião de observar este fenómeno várias vezes adiante.

No período de Fevereiro a Outubro, ao levar a cabo um grande trabalho de agitação e organização das massas, o Partido fez um último exame, uma selecção final das suas armas na véspera da batalha decisiva. Durante e depois de Outubro, estas armas foram testadas no embate de ações históricas colossais. Realizar agora, vários anos depois de Outubro, uma avaliação dos diferentes pontos de vista sobre revolução em geral, e a Revolução Russa em particular, e nisso evitar a experiência de 1917, é ocuparmo-nos com um escolasticismo estéril. Certamente esta não seria uma análise política marxista. Seria análogo a discutir sobre as vantagens dos vários sistemas de natação enquanto nos recusávamos teimosamente a encarar o rio onde os nadadores põem esses sistemas em prática. Tal como só se pode testar o melhor método de natação quando o nadador se atira à água, também não existe um teste melhor dos pontos de vista relativos à revolução do que analisar como funcionaram durante a própria revolução.

 

2. A Ditadura Democrática do Proletariado e do Campesinato: Fevereiro e Outubro

O curso e o resultado da Revolução de Outubro golpearam implacavelmente a paródia escolástica do marxismo que foi muito difundida entre os social-democratas russos, que tinha começado em parte com o grupo Emancipação do Trabalho [7] e encontrado sua expressão mais acabada entre os mencheviques [8]. A essência deste pseudo-marxismo consistiu em transformar a concepção condicional e limitada de Marx de que «o país que é mais desenvolvido industrialmente apenas mostra, aos menos desenvolvidos, a imagem do seu próprio futuro» numa lei absoluta e (para usar a própria expressão de Marx) supra-histórica; e então, em esforçar-se para basear a táctica do partido do proletariado sobre esta lei. Tal formulação naturalmente excluía até a menção de qualquer luta por parte do proletariado russo pela tomada do poder até que os países mais desenvolvidos tivessem estabelecido um "precedente" para tal.

É claro que não há dúvida de que qualquer país atrasado encontra algumas características do seu próprio futuro na história dos países avançados, mas não é possível falar de uma repetição do seu desenvolvimento como um todo. Pelo contrário, quanto mais mundial se tornou o carácter da economia capitalista, mais claramente original se tornou o desenvolvimento dos países atrasados, que precisavam necessariamente de combinar elementos do seu atraso com as mais recentes conquistas do desenvolvimento capitalista [9]. No seu prefácio de As Guerras Camponesas na Alemanha, Engels escreveu: «Num determinado ponto, que não deve necessariamente aparecer simultaneamente e no mesmo estágio de desenvolvimento em todos os lugares, [a burguesia] começa a notar que o seu companheiro [o proletariado] a supera.»

O curso do desenvolvimento histórico levou a burguesia russa a fazer essa observação muito mais cedo e de forma mais completa do que a burguesia de todos os outros países. Lenin, mesmo antes de 1905, expressou o caráter peculiar da revolução russa através da fórmula «a ditadura democrática do proletariado e do campesinato». Esta fórmula, por si só, como o demonstraram os desenvolvimentos posteriores, só poderia adquirir significado como um estágio para a ditadura socialista do proletariado apoiada pelo campesinato. A formulação do problema por Lenin, revolucionária e dinâmica, contrastava completa e irreconciliavelmente com o pensamento menchevique, segundo o qual a Rússia podia esperar apenas uma repetição da história das nações avançadas, com a burguesia no poder e os social-democratas como oposição. Alguns círculos do nosso partido, no entanto, enfatizaram não a ditadura do proletariado e do campesinato na fórmula de Lenin, mas o seu caráter democrático em oposição ao seu carácter socialista. E, novamente, isso só poderia significar que na Rússia, um país atrasado, apenas uma revolução democrática era concebível. A revolução socialista deveria começar no Ocidente, e só podíamos seguir o caminho do socialismo atrás da Inglaterra, França e Alemanha. Mas esta formulação da questão resvalava inevitavelmente para o menchevismo, o que se revelou claramente em 1917, quando as tarefas da revolução foram colocadas diante de nós, não para fazer prognósticos, mas para agir decisivamente.

Sob as condições reais da revolução, manter uma posição de apoio à democracia, levada à sua conclusão lógica — opondo-se ao socialismo como "sendo prematuro" — significava, na política, mudar de uma posição proletária para uma posição pequeno-burguesa. Significava passar para a posição de ala esquerda da revolução nacional.

A revolução de Fevereiro, se considerada por si só, foi uma revolução burguesa. Mas, como revolução burguesa, chegou demasiado tarde e era desprovida de estabilidade. Despedaçada por contradições que imediatamente encontraram sua expressão na dualidade de poderes [10], tinha que ou transformar-se num prelúdio direto da revolução proletária — o que geralmente acontecia — ou fazer retroceder a Rússia a uma existência semicolonial, sob algum tipo de regime oligárquico burguês. Consequentemente, o período após a revolução de Fevereiro pode ser considerado a partir de dois pontos de vista: como um período de consolidação, desenvolvimento ou consumação da revolução "democrática", ou como um período de preparação para a revolução proletária. O primeiro foi defendido não apenas pelos mencheviques e pelos social-revolucionários [SRs; 11], mas também por uma certa secção da direcção do nosso próprio partido, com a diferença de que estes últimos realmente tentaram levar a revolução democrática o mais possível para a esquerda. Mas o método era essencialmente o mesmo: "exercer pressão" sobre a burguesia dominante, uma "pressão" calculada de modo a permanecer dentro da estrutura do regime democrático burguês. Se essa política tivesse prevalecido, o desenvolvimento da revolução teria passado sobre a cabeça do nosso partido e, no final, a insurreição das massas operárias e camponesas teria ocorrido sem a direcção do partido; por outras palavras, teríamos repetido as jornadas de Julho [12] numa escala colossal — desta vez não como um episódio mas como uma catástrofe.

É perfeitamente óbvio que a consequência imediata de tal catástrofe teria sido a destruição física do nosso partido, o que nos fornece uma medida do quão profundas eram as divergências que então existiam.

A influência dos mencheviques e dos SRs no primeiro período da revolução não foi, é claro, acidental. Refletia a preponderância das massas pequeno-burguesas — principalmente camponesas — na população e a imaturidade da própria revolução. Foi precisamente essa imaturidade, perante circunstâncias excepcionais criadas pela guerra, que colocou a direcção nas mãos de revolucionários pequeno-burgueses — ou pelo menos a aparência de direcção — que defendiam os direitos históricos da burguesia ao poder. Mas isso não significa que a Revolução Russa não poderia ter tomado outro caminho além daquele que tomou de Fevereiro a Outubro de 1917. Esse caminho resultou não apenas das relações entre as classes, mas também das circunstâncias temporárias criadas pela guerra. Por causa da guerra, o campesinato foi organizado e armado num exército de muitos milhões. Antes que o proletariado conseguisse organizar-se sob a sua própria bandeira e assumir a direcção das massas rurais, os revolucionários pequeno-burgueses encontraram um apoio natural no exército camponês, que se rebelava contra a guerra. Com todo o peso deste numeroso exército do qual, afinal, tudo dependia diretamente, os revolucionários pequeno-burgueses exerceram pressão sobre os trabalhadores e arrastaram-nos atrás de si num primeiro período.

Que a revolução podia ter tomado um rumo diferente sobre as mesmas bases de classe é melhor demonstrado pelos eventos imediatamente anteriores à guerra. Em Julho de 1914 greves revolucionárias abalaram Petrogrado, suscitando até combates nas ruas. A direcção deste movimento estava incontestavelmente nas mãos da organização clandestina e da imprensa legal do nosso partido. O bolchevismo consolidava a sua influência na luta directa contra os liquidacionistas e os partidos pequeno-burgueses em geral. O crescimento do movimento significaria, acima de tudo, o crescimento do Partido Bolchevique. Se o desenvolvimento dos acontecimentos tivesse chegado ao estágio dos sovietes de deputados operários, estes teriam sido provavelmente bolchevique desde o princípio. O levantamento das aldeias teria então procedido sob a liderança directa ou indirecta dos sovietes das cidades, liderados pelos bolcheviques. Isso não significa necessariamente que os SRs teriam desaparecido imediatamente das aldeias. De forma alguma. Muito provavelmente, o primeiro estágio da revolução camponesa teria ocorrido sob a bandeira dos narodniki [13]. Mas, com o desenvolvimento dos eventos como esboçámos, os próprios narodniki teriam sido obrigados a alargar a sua ala esquerda a fim de buscarem uma aliança com os sovietes bolcheviques nas cidades.

Certamente, o resultado imediato da insurreição dependeria, mesmo neste caso, em primeiro lugar do estado de espírito e da conduta do exército, que estava ligado ao campesinato. É impossível e até inútil tentar adivinhar agora se o movimento de 1914-15 teria levado à vitória caso a eclosão da guerra não tivesse forjado um elo novo e gigantesco na cadeia de desenvolvimentos. É muito provável, porém, que se a revolução vitoriosa se tivesse desenvolvido na via que os acontecimentos de Julho de 1914 inauguraram, o derrube do czarismo tivesse provocado a chegada ao poder dos sovietes operários revolucionários que, por intermédio dos narodniki de esquerda, (desde o início) arrastariam as massas camponesas para a sua órbita.

A guerra interrompeu o desenrolar do movimento revolucionário. Retardou-o a princípio para depois acelerá-lo enormemente. Sob a forma de um exército de milhares de homens, a guerra criou uma base absolutamente excepcional, social e organizativamente, para os partidos pequeno-burgueses. A peculiaridade do campesinato consiste precisamente, apesar do seu grande número, na dificuldade de transformar os camponeses numa base organizada, mesmo quando imbuídos de um espírito revolucionário. Apoiando-se nos ombros de uma organização já formada, o exército, os partidos pequeno-burgueses impuseram-se ao proletariado, encerrando-o nas malhas do defensismo [14].

Aí está o porquê de Lenin se ter lançado furiosamente contra a velha palavra de ordem da "ditadura democrática do proletariado e do campesinato", que sob as novas circunstâncias significava a transformação do Partido Bolchevique na ala esquerda do bloco defensista. Para Lenin, a tarefa principal era livrar a vanguarda proletária do pântano do defensismo. Somente nessa condição poderia o proletariado tornar-se no eixo em torno do qual, no estágio seguinte, as massas trabalhadoras rurais se agrupariam. Mas, neste caso, qual deve ser nossa atitude em relação à revolução democrática, ou melhor, à ditadura democrática do proletariado e do campesinato? Lenin foi implacável ao refutar os "velhos bolcheviques" que «mais do que uma vez desempenharam um papel tão lamentável na história do nosso partido, reiterando fórmulas sem sentido aprendidas mecanicamente em vez de estudar as características específicas da nova e viva realidade ... É preciso orientarmo-nos não pelas velhas fórmulas, mas pela nova realidade. Essa realidade é abarcada pela fórmula do camarada Kamenev, velho bolchevique, que diz que "a revolução democrática burguesa não está concluída?” Não é. A fórmula está obsoleta. Não tem valor algum. Está morta. E não há utilidade nenhuma em tentar ressuscitá-la.»

É verdade que Lenin dizia ocasionalmente que os soviets dos deputados operários, soldados e camponeses no primeiro período da revolução de Fevereiro representavam, até certo ponto, a ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato. E isso era verdade na medida em que esses sovietes encarnavam o poder em geral. Mas, como Lenin frequentemente explicava, os sovietes do período de Fevereiro encarnavam apenas um semi-poder. Sustentavam o poder da burguesia enquanto exerciam uma "pressão" sobre esta na forma de uma semi-oposição. E foi precisamente essa posição intermediária que não lhes permitiu transcender a estrutura da coligação democrática de trabalhadores, camponeses e soldados. Nesta forma de governo, esta coligação tendia para a ditadura na medida em que se apoiava não em relações estatais formais, mas na força armada e na supervisão revolucionária directa, embora estando ainda muito longe de uma real ditadura.

A instabilidade dos sovietes conciliacionistas residia justamente nessa democracia amorfa de um semi-poder exercido pela coligação semi-poderosa de operários, camponeses e soldados. Os sovietes tinham que desaparecer por completo ou tomar o poder real nas suas mãos. Mas não poderiam tomar o poder enquanto uma coligação democrática de trabalhadores e camponeses representados por diferentes partidos, mas apenas enquanto ditadura do proletariado dirigida por um único partido, atraindo para si as massas camponesas, a começar pelas suas camadas semi-proletárias. Por outras palavras, a coligação de trabalhadores e camponeses só podia tomar uma forma imatura, incapaz de alcançar o poder de facto. Qualquer movimento em direção à conquista do poder inevitavelmente faria explodir o invólucro democrático e confrontaria a maioria dos camponeses com a necessidade de seguir os trabalhadores, proporcionaria ao proletariado a oportunidade de realizar uma ditadura de classe e, assim, colocaria na agenda — junto com uma democratização total e radical das relações sociais — a preeminência socialista do Estado operário na esfera dos direitos de propriedade capitalistas. Sob tais circunstâncias, continuar a prender-se à fórmula da "ditadura democrática" era na realidade renunciar ao poder e levar a revolução a um beco sem saída.

A questão fundamental e controversa em torno da qual tudo se concentrava era a seguinte: devemos ou não lutar pelo poder; devemos ou não assumir o poder? Isso por si só é a prova de que não estávamos a lidar então com uma mera diferença episódica de opinião, mas com duas tendências principistas. A primeira e principal tendência era proletária e levava ao caminho da revolução mundial. A outra era "democrática", i.e., pequeno-burguesa, e levava, em última análise, à subordinação das políticas proletárias às necessidades da sociedade burguesa no seu processo de reforma. Estas duas tendências entraram em conflito hostil sobre todas as questões essenciais que surgiram ao longo do ano de 1917. É precisamente durante uma época revolucionária — ou seja, uma época em que o conhecimento acumulado pelo partido é colocado em prática — que divergências deste género revelam-se inevitavelmente. Em maior ou menor grau, com maiores ou menores modificações, estas duas tendências manifestar-se-ão mais de uma vez nos períodos revolucionários em todos os países. Se por "bolchevismo" — e aqui destaca-se o aspecto essencial — se entende uma educação, uma têmpera, uma organização da vanguarda proletária que a torna capaz de conquistar o poder de armas nas mãos; e se por "social-democracia" se entende a aceitação de uma actividade de oposição reformista no quadro da sociedade burguesa e a sua adaptação à legalidade, ou seja, a educação das massas na Ideia da inviolabilidade do Estado burguês; então é claro que mesmo dentro de um Partido Comunista — que não emerge já formado da forja da história — a luta entre as tendências social-democratas e o bolchevismo manifestam-se muito mais nítida e claramente num período revolucionário quando a questão do poder se põe directamente.

O problema da conquista do poder só foi apresentado ao partido após 4 de Abril, ou seja, após a chegada de Lenin a Petrogrado [15]. Mas mesmo após esse momento a linha política do partido não adquiriu, de forma alguma, um caráter unificado e indivisível. Apesar das decisões da Conferência de Abril de 1917 [16], a oposição ao curso revolucionário — às vezes oculta, às vezes aberta — permeou todo o período de preparação.

O estudo do desenvolvimento das divergências entre Fevereiro e a consolidação da revolução de Outubro não é apenas de extraordinária importância teórica, mas de extrema importância prática. Em 1910 Lenin falou das divergências no Segundo Congresso do Partido em 1903 como "antecipatórias", isto é, uma advertência. É extremamente importante seguir essas divergências até à sua origem, 1903, ou mesmo antes, começando no "Economicismo" [17]. Mas tal estudo adquire significado apenas se chegar à sua conclusão lógica e se abranger o período em que essas divergências foram submetidas ao teste decisivo, ou seja, o período de Outubro.

Não podemos, dentro dos limites deste prefácio, comprometermo-nos a lidar exaustivamente com todos os estágios dessa luta. Mas consideramos indispensável, pelo menos em parte, preencher a deplorável lacuna existente na nossa literatura em relação ao período mais importante no desenvolvimento do nosso partido.

Como já foi dito, as divergências concentraram-se na questão do poder. De um modo geral, essa é a pedra de toque segundo a qual o caráter do partido revolucionário (e de outros partidos também) é determinado.

Existe uma íntima conexão entre a questão do poder e a questão da guerra, que foi colocada e decidida neste período. Propomos considerar essas questões por ordem cronológica, tendo como principais marcos: a posição do partido e da sua imprensa no primeiro período após a queda do czarismo e antes da chegada de Lenin; a luta em torno das teses de Lenin; a conferência de Abril; as consequências das jornadas de julho; o período Kornilov; a Conferência Democrática e o Pré-Parlamento; a questão da insurreição armada e a tomada do poder (Setembro-Outubro); e a questão de um governo socialista "homogéneo".

Acreditamos que o estudo dessas divergências nos permitirá tirar conclusões de considerável importância a outros partidos da Internacional Comunista.

 

3. A luta contra a guerra e o defensismo

A queda do czarismo em Fevereiro de 1917 representou, é claro, um gigantesco salto adiante. Mas, considerada em si mesma e não como um passo em direção a Outubro, a revolução de Fevereiro significou apenas uma aproximação da Rússia ao tipo de república burguesa como por exemplo a de França. Os partidos revolucionários pequeno-burgueses, como de costume, consideravam que a revolução de Fevereiro não era nem burguesa nem um passo em direção a uma revolução socialista, mas uma espécie de entidade "democrática" auto-suficiente. E sobre esta premissa construíram a ideologia do defensismo revolucionário. Defendiam não o domínio de qualquer classe, mas a "revolução" e a "democracia". Mas, mesmo no nosso próprio partido, o ímpeto revolucionário de Fevereiro gerou a princípio uma grande confusão de perspectivas políticas. De facto, durante os dias de Março, o Pravda [18] manteve uma posição muito mais próxima do defensismo revolucionário do que da posição de Lenin.

«Quando um exército se opõe a outro», lemos num dos seus editoriais, «nenhuma política pode ser mais absurda do que propor que um deles deponha armas e volte para casa. Tal política não seria uma política de paz, mas de escravatura, uma política a ser desdenhosamente rejeitada por um povo livre. Não. O povo permanecerá firmemente no seu posto, respondendo a cada bala com outra bala, a cada projéctil com outro projéctil. Isto é indiscutível. Não devemos permitir nenhuma desorganização das forças armadas da revolução.» [19]

Não encontramos aqui menção de classes, de opressores e oprimidos; em vez disso, fala-se de um "povo livre"; não há classes lutando pelo poder, mas, em vez disso, um povo livre ocupando "o seu posto". As idéias e as fórmulas são completamente defensistas! E mais adiante no mesmo artigo lê-se:

«A nossa palavra de ordem não é o grito vazio “Abaixo a guerra!” — o que significa a desorganização do exército revolucionário, do exército que se está a tornar cada vez mais revolucionário. A nossa palavra de ordem deve ser a de pressionar [!] o Governo Provisório [20] de forma a pressioná-lo a tentar [!], sem falhar, abertamente e diante dos olhos da democracia mundial [!], convencer [!] todos os países beligerantes a iniciar imediatamente negociações para acabar com a guerra mundial. Até então, que todos [!] permaneçam no seu posto [!].»

O programa de exercer pressão sobre um governo imperialista para “induzi-lo" a seguir um curso piedoso foi o programa de Kautsky e de Ledebour na Alemanha, de Jean Longuet na França, de MacDonald na Inglaterra; mas nunca foi o programa do bolchevismo. Em conclusão, o artigo não apenas oferece “calorosas saudações” ao notório manifesto do soviete de Petrogrado dirigido aos povos do mundo [21] — um manifesto impregnado do princípio ao fim com o espírito do defensismo revolucionário — mas ressalta “com prazer” a solidariedade do conselho editorial com as resoluções abertamente defensistas adoptadas em duas reuniões em Petrogrado. Dessas resoluções, será suficiente mostrar um excerto de uma delas:

«Se as forças democráticas na Alemanha e na Áustria não prestarem atenção à nossa voz [i.e., a “voz” do Governo Provisório e do soviete conciliatório — L.T.], defenderemos a nossa pátria até à última gota do nosso sangue.» (Pravda, nº 9, 15 de março de 1917)

Este artigo não é uma excepção. Pelo contrário, expressa com bastante precisão a posição do Pravda antes do regresso de Lenin à Rússia. Na edição seguinte, no artigo “Sobre a Guerra” [22], embora contenha algumas críticas ao Manifesto aos Povos do Mundo, lê-se o seguinte: “É impossível não saudar a proclamação de ontem do Soviete de Trabalhadores e Soldados de Petrogrado aos povos do mundo, chamando-os a forçar os seus governos a pôr fim ao massacre.” E onde procurar uma saída da guerra? O artigo dá a seguinte resposta: "O caminho para a saída consiste em pressionar o Governo Provisório com a exigência de que o governo proclame a sua prontidão a iniciar negociações imediatas pela paz".

Poderíamos citar uma série de declarações semelhantes, de caráter defensista e conciliatório mais ou menos disfarçado. Durante esse período, e mesmo semanas antes, Lenin, que ainda não tinha saído Zurique, escrevia nas suas Cartas de Longe [23] — a maioria das quais nunca chegou ao Pravda — contra a menor sugestão de concessão ao defensismo e conciliação. «É absolutamente inadmissível», escreveu ele a 9 de Março, discernindo a imagem dos eventos revolucionários no espelho distorcido dos despachos capitalistas, «ocultar de nós mesmos e do povo que esse governo deseja continuar a guerra imperialista, que é um agente da capital Britânico, que deseja restaurar a monarquia e fortalecer o domínio dos latifundiários e capitalistas.» Mais tarde, a 12 de Março, disse: «Instar o governo a concluir uma paz democrática é como pregar virtude a proprietários de bordéis». Na época em que o Pravda defendia "exercer pressão" sobre o Governo Provisório, a fim de induzi-lo a intervir em favor da paz "diante dos olhos da democracia mundial”, Lenin escrevia: «Instar o governo Guchkov-Milyukov a concluir uma uma paz rápida, honesta, democrática e de boa vizinhança é como o bom padre da aldeia exortando os latifundiário e os comerciantes a “seguirem o caminho de Deus”, a amarem os vizinhos e darem a outra face.»

A 4 de Abril, no dia seguinte à sua chegada a Petrogrado, Lenin insurgiu-se resolutamente contra a posição do Pravda na questão da guerra e da paz. Ele escreveu: «Nenhum apoio ao Governo Provisório; a completa falsidade de todas as suas promessas deve ser denunciada, particularmente aquelas relacionadas à renúncia das anexações. É necessário desmascarar este governo, ao invés da reivindicação inadmissível e que provoca ilusões de que este governo, um governo de capitalistas, deveria deixar de ser imperialista.» A proclamação emitida pelos conciliadores a 14 de Março, que recebeu tantos elogios d’O Pravda foi caracterizada por Lenin apenas como "notória" e "confusa". É o ápice da hipocrisia instigar outras nações a romper com seus banqueiros enquanto em simultâneo forma um governo de coligação com os banqueiros do próprio país.

«Os homens do centro juram e declaram que são marxistas e internacionalistas, que são pela paz, por exercerem todo tipo de “pressão” sobre os governos, por ”exigirem” de todas as formas que o seu próprio governo deva “satisfazer a vontade do povo pela paz”.»

Mas aqui alguém pode, à primeira vista, levantar uma objeção: deve um partido revolucionário renunciar a “exercer pressão” sobre a burguesia e o seu governo? Certamente que não. O exercício de pressão sobre um governo burguês é o caminho da reforma. Um partido marxista revolucionário não rejeita reformas. Mas o caminho da reforma serve um propósito útil em questões secundárias, não nas fundamentais. O poder de Estado não pode ser obtido através de reformas. A "pressão" nunca pode induzir a burguesia a mudar a sua política numa questão em relação à qual depende a sua sorte. A guerra criou uma situação revolucionária justamente pelo fato de não deixar espaço para nenhuma "pressão" reformista. A única alternativa era ou percorrer todo o caminho com a burguesia ou despertar as massas contra ela, a fim de arrancar o poder das suas mãos. No primeiro caso, poderiam obter-se da burguesia certas concessões em política interna, sob condição de sustentar, sem reservas, a política externa imperialista. Por essa mesma razão o reformismo socialista transformou-se abertamente, com o início da guerra, em imperialismo socialista. Pela mesma razão, os elementos genuinamente revolucionários foram forçados a iniciar a criação desta nova Internacional.

O ponto de vista do Pravda não era proletário e revolucionário, mas democrático-defensista, embora vacilante no seu defensismo. Derrubámos o czarismo, devemos agora exercer pressão sobre nosso próprio governo democrático. Este último deve propor paz aos povos do mundo. Se a democracia alemã se mostrar incapaz de exercer a devida pressão sobre seu próprio governo, defenderemos nossa “pátria” até a última gota de sangue. A perspectiva de paz não é colocada como uma tarefa independente da classe trabalhadora que os trabalhadores são chamados a realizar sobre a cabeça do governo provisório, porque a conquista do poder pelo proletariado não é colocada como uma tarefa revolucionária prática. E contudo, ambas as tarefas estão inextricavelmente unidas.

 

4. A Conferência de Abril

O discurso que Lenin proferiu na estação de comboio da Finlândia sobre o caráter socialista da Revolução Russa foi como que uma bomba para muitos dirigentes do partido. A polémica entre Lenin e os partidários de "completar a revolução democrática" rebentou logo no primeiro dia.

A manifestação armada de Abril [24], onde ecoou a palavra de ordem "Abaixo o Governo Provisório!" esteve na origem de um grave conflito ao servir de pretexto a certos representantes da ala direita para acusarem Lenine de blanquismo [25]. O derrube do governo provisório, que era naquela altura apoiado pela maioria do soviete, só poderia ser realizado contrariando a vontade da maioria dos trabalhadores.

Do ponto de vista formal, esta acusação pode parecer bastante plausível, mas na realidade não havia o menor tom de blanquismo na política de Lenin em Abril. Para Lenin, toda a questão dependia de saber até que ponto os sovietes continuavam a refletir o real estado de espírito das massas e se o partido estava errado ou não ao guiar-se pela maioria do soviete. A manifestação de Abril, que foi mais “para a esquerda” do que convinha, serviu de teste ao estado de espírito das massas e as relações entre estas e a maioria do soviete. Levou à conclusão de que era necessário um longo período preparatório. No início de Maio Lenin repreendeu duramente os marinheiros de Kronstadt, que tinham ido longe demais ao declararem não reconhecer o Governo Provisório...

Os adversários da luta pelo poder tinham uma abordagem totalmente diferente a essa questão. Na Conferência do Partido de Abril, o camarada Kamenev fez a seguinte reclamação: «No nº 19 do Pravda, uma resolução foi proposta pela primeira vez pelos camaradas [a referência aqui é obviamente a Lenin — L.T.] no sentido de que devíamos derrubar o Governo Provisório. Apareceu impresso antes da última crise, e esta palavra de ordem foi mais tarde rejeitada por tender à desorganização e foi reconhecida como aventureirismo. Isto significa que os nossos camaradas aprenderam algo durante esta crise. A resolução que agora é proposta [por Lenin — L.T.] repete esse erro...»

Esta maneira de formular a questão é muito significativa. Lenin, depois do teste de Abril, retirou a palavra de ordem do derrube imediato do Governo Provisório. Mas não o fez por um determinado período de tempo — por tantas semanas ou meses —, estava estritamente dependente de quão rapidamente crescesse a revolta das massas contra os conciliacionistas. A oposição, pelo contrário, considerava a palavra de ordem em si um erro. No recuo temporário de Lenin não havia qualquer indício de uma mudança na linha política. Ele não o fez a partir do facto de que a revolução democrática ainda estava incompleta. Ele baseava-se exclusivamente na ideia de que as massas não eram capazes de derrubar o Governo Provisório naquele momento e que, portanto, tudo devia ser feito para preparar a classe trabalhadora para derrubá-lo no dia seguinte.

A Conferência de Abril foi dedicada à seguinte questão fundamental: estamos a caminho da conquista do poder em nome da revolução socialista ou estamos a ajudar a concluir a revolução democrática? Infelizmente, o relatório da Conferência de Abril não foi publicado até os dias de hoje, embora seja difícil encontrar outro congresso na história de nosso partido que tenha tido uma influência tão excepcional e imediata no destino de nossa revolução quanto aquele.

A posição de Lenin era esta: a luta irreconciliável contra o defensismo e seus apoiadores; a conquista da maioria nos sovietes; o derrube do Governo Provisório; a tomada do poder pelos sovietes; uma política de paz revolucionária e um programa de revolução socialista no interior e de revolução internacional no exterior. Contra isso, como já sabemos, a oposição considerou que era necessário concluir a revolução democrática exercendo pressão sobre o Governo Provisório, e nesse processo os sovietes permaneceriam os órgãos de "controlo" sobre o poder da burguesia. Daí flui uma outra e incomparavelmente mais conciliatória atitude em relação ao defensismo.

Um dos adversários de Lenin argumentou da seguinte maneira na Conferência de Abril: «Falamos dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados como se fossem os centros organizadores das nossas próprias forças e do poder estatal. O seu próprio nome mostra que constituem um bloco de forças pequeno-burguesas e proletárias que ainda são confrontadas com tarefas democráticas burguesas incompletas. Se a revolução democrática burguesa tivesse sido concluída, este bloco deixaria de existir... e o proletariado prosseguiria a luta revolucionária contra ele... E, no entanto, reconhecemos nestes sovietes os centros de organização das nossas forças... Consequentemente, a revolução burguesa ainda não está concluída, ainda não cumpriu a sua função histórica; e acredito que todos nós devemos reconhecer que, com a sua conclusão, o poder teria de facto passado para as mãos do proletariado.» (do discurso do camarada Kamenev).

O esquematismo incorrigível deste argumento é óbvio. O cerne da questão reside precisamente no facto de que a “conclusão” da revolução nunca poderia acontecer sem uma mudança dos detentores do poder. O discurso acima ignora o eixo de classe da revolução; deduz a tarefa do partido não a partir do agrupamento real das forças das classes, mas de uma definição formal da revolução considerada como burguesa ou democrática burguesa. Devemos participar num bloco com a pequena burguesia e exercer o controle sobre o poder burguês até que a revolução burguesa esteja completamente concluída. O padrão é obviamente menchevique. Limitando de forma doutrinária as tarefas da revolução à sua nomenclatura (uma revolução “burguesa”), não se poderia deixar de chegar à política de exercer controle sobre o Governo Provisório e exigir que este apresente uma política de paz sem anexações e assim por diante. Pela conclusão da revolução democrática entendiam-se uma série de reformas a serem realizadas através da Assembleia Constituinte! [26] Além disso, ao Partido Bolchevique era atribuído o papel de ala esquerda da Assembleia Constituinte.

Tal perspectiva privava a palavra de ordem "Todo o poder aos sovietes!" de qualquer significado real. Isso foi expresso da maneira mais consistente e completa na Conferência de Abril pelo falecido Nogin, que também pertencia à oposição: “No processo de desenvolvimento, as funções mais importantes dos sovietes desaparecerão. Toda uma série de funções administrativas serão transferidas para os municípios, os zemstvos [27], etc. Se examinarmos o futuro desenvolvimento da estrutura do Estado, não podemos negar que a Assembleia Constituinte será convocada, e depois o Parlamento ... Assim, as funções mais importantes dos sovietes irão extinguir-se gradualmente. Isso, no entanto, não quer dizer que os sovietes terminem a sua existência em ignomínia. Apenas irão transferir as suas funções. Sob esses mesmos sovietes, não alcançaremos a república comunal no nosso país. ”

Finalmente, um terceiro oponente tratou da questão do ponto de vista de que a Rússia não estava preparada para o socialismo: “Podemos contar com o apoio das massas se levantarmos a palavra de ordem da revolução proletária? A Rússia é o país mais pequeno-burguês da Europa. Contar com a simpatia das massas por uma revolução socialista é impossível; e, consequentemente, quanto mais tempo o partido mantiver a posição de uma revolução socialista, mais será reduzido ao papel de um círculo de propagandistas. O ímpeto para uma revolução socialista deve vir do Ocidente. ” E mais adiante: “Onde nascerá o sol da revolução socialista? Acredito que, tendo em vista todas as circunstâncias e o nosso nível cultural geral, não nos cabe a nós iniciar a revolução socialista. Faltam-nos as forças necessárias; as condições objetivas para isso não existem no nosso país. Mas para o Ocidente esta questão é colocada da mesma maneira que no nosso país o é a questão de derrubar o czarismo”.

Nem todos os adversários do ponto de vista de Lenin na Conferência de Abril tiraram as mesmas conclusões que Nogin — mas todos foram forçados a aceitá-las vários meses depois, na véspera de Outubro. Ou devemos assumir a liderança da revolução proletária ou devemos aceitar o papel de oposição num parlamento burguês, tal era a forma como se colocava a questão dentro do nosso partido. É perfeitamente óbvio que a última posição era essencialmente menchevique, ou melhor, a posição que os mencheviques se viram obrigados a ocupar após a Revolução de Fevereiro. De fato, os líderes mencheviques haviam, por muitos anos, papagueado a ideia de que a revolução que se aproximava deve ser burguesa; que o governo de uma revolução burguesa só poderia cumprir tarefas burguesas; que a social-democracia não pode assumir as tarefas da democracia burguesa e deve permanecer uma oposição enquanto "empurra a burguesia para a esquerda". Este esquema foi desenvolvido com uma entediante profundidade por Martynov. Com o início da revolução burguesa em 1917, os mencheviques viram-se rapidamente no governo. De toda a sua posição “de princípios” restava apenas uma conclusão política, a saber, que o proletariado não ousa tomar o poder. Mas é bastante claro que aqueles bolcheviques que acusavam o ministerialismo menchevique e que ao mesmo tempo se opunham à tomada do poder pelo proletariado estavam, de fato, a caminhar para as posições pré-revolucionárias dos mencheviques.

A revolução causou viragens políticas em duas direções: os reaccionários tornaram-se kadetes [28] e os kadetes tornaram-se republicanos contra os seus próprios desejos — uma viragem puramente formal para a esquerda — e os SRs e os mencheviques tornaram-se os partidos burgueses no poder — uma viragem para a direita. Estes são os processos pelos quais a sociedade burguesa busca criar para si uma nova espinha dorsal para manter o poder, a estabilidade e a ordem do Estado. Mas, ao mesmo tempo, enquanto os mencheviques passavam de uma posição socialista formal para uma democrática vulgar, a ala direita dos bolcheviques passava para uma posição socialista formal, isto é, a posição menchevique de ontem.

O mesmo reagrupamento de forças ocorreu na questão da guerra. A burguesia, com exceção de alguns doutrinários, continuou mesma melodia cansada e monótona: nem anexações, nem indemnizações — mais não fosse porque as esperanças de anexação eram já muito tênues. Os mencheviques Zimmerwaldianos [29] e os SRs, que tinham criticado os socialistas franceses por defenderem sua pátria republicana burguesa, tornaram-se defensistas no exacto momento em que se sentiam parte de uma república burguesa. De uma posição internacionalista passiva, passaram para uma posição patriótica activa. Ao mesmo tempo, a ala direita dos bolcheviques passou para uma posição internacionalista passiva (exercendo “pressão” sobre o governo provisório por uma paz democrática, “sem anexações e sem indenizações”). Assim, na Conferência de Abril, a fórmula da ditadura democrática do proletariado e do campesinato desfez-se em pedaço teórica e politicamente, e daí resultaram dois pontos de vista antagónicos: um ponto de vista democrático, camuflado por restrições socialistas formais, e um ponto de vista socialista e revolucionário, o ponto de vista genuinamente bolchevique e leninista.

 

5. As Jornadas de Julho, a Sublevação de Kornilov, a Conferência Democrática e o Pré-Parlamento

As decisões da Conferência de Abril deram ao partido os princípios orientadores correctos mas não liquidaram as divergências entre os líderes do partido. Pelo contrário, com a marcha dos acontecimentos, estas divergências foram assumindo formas mais concretas e atingiram a sua expressão mais aguda durante o momento mais decisivo da revolução — nos dias de Outubro.

A tentativa de organizar uma manifestação a 10 de Junho (por iniciativa de Lenin) foi denunciada como sendo uma aventura pelos mesmos camaradas que ficaram insatisfeitos com o carácter da manifestação de Abril. A manifestação acabou por não acontecer pois foi proibida pelo Congresso dos Sovietes. Mas a 18 de Junho o partido vingou-se. A manifestação geral em Petrogrado, iniciada pelos conciliadores de maneira imprudente, ocorreu quase totalmente sob as palavras de ordem bolcheviques. O governo tentou, contudo, levar a melhor. Ordenou imbecilmente uma ofensiva na frente. O momento era decisivo. Lenin continuava a alertar o partido contra medidas imprudentes. A 21 de Junho, escrevia no Pravda: “Camaradas, não seria racional fazermos uma demonstração de força neste momento. Atravessamos uma etapa inteiramente nova da nossa revolução.” Mas as jornadas de Julho aproximaram-se — um marco importante no caminho da revolução, bem como no caminho das divergências internas do partido.

Nas jornadas de Julho, o momento decisivo chegou com o ataque espontâneo das massas de Petrogrado. Não há dúvida de que em Julho Lenin se perguntava então: Chegou a hora? Superou o estado de espírito das massas a superestrutura soviética? Corremos o risco de, hipnotizados pela legalidade soviética, atrasarmo-nos em relação às massas e separarmo-nos delas? É muito provável que operações isoladas e puramente militares durante os dias de Julho tenham sido iniciadas por camaradas que acreditavam sinceramente que não divergiam da estimativa que Lenin fazia da situação. Lenin diria depois: «Fizemos muitas asneiras em Julho». Mas foi nas jornadas de Julho que fizemos um outro teste, muito mais extenso, num novo e mais elevado estágio do movimento. Tivemos que fazer uma retirada, sob condições penosas. O partido, à medida em que se preparava para a insurreição e a tomada do poder, considerava— como Lenin — que o episódio de Julho foi apenas um episódio em que tivemos que pagar caro por uma exploração das nossas próprias forças e das forças inimigas, mas que não poderia alterar o eixo principal da nossa atividade. Por outro lado, os camaradas que se opunham à política destinada à tomada do poder estavam fadados a ver uma aventura perniciosa no episódio de Julho. A mobilização dos elementos da ala direita do partido tornou-se cada vez mais intensa e as suas críticas mais abertas. Houve também uma mudança correspondente no tom da sua refutação. Lenin escreveu: «Todas essas lamúrias, todos esses argumentos no sentido de que 'não deveríamos' ter participado (na tentativa de dar um carácter 'pacífico e organizado' ao descontentamento popular perfeitamente legítimo e indignação!!), são ou pura apostasia, se vindos dos bolcheviques, ou a expressão usual do estado habitual, intimidado e confuso, da pequena burguesia.» O uso da palavra “apostasia” nesse momento lança uma luz trágica sobre as divergências. À medida que os eventos se desenrolavam, esta palavra sinistra aparecia com maior frequência.

A atitude oportunista em relação à questão do poder e à questão da guerra determinou, é claro, uma atitude correspondente em relação à Internacional. A ala direita tentou atrair o partido para a Conferência de Estocolmo [30] dos social-patriotas. Lenin escrevia a 16 de Agosto: «O discurso proferido pelo camarada Kamenev a 6 de Agosto no Comité Executivo Central da Conferência de Estocolmo não pode senão encontrar reprovação de todos os bolcheviques fiéis ao seu partido e princípios».

Mais adiante, em referência a certas declarações que alegavam que uma grande bandeira revolucionária estava a ser desfraldada sobre Estocolmo, Lenin dizia: «É uma declaração oca, no espírito das de Tchernov e Tseretelli. É uma mentira flagrante. Na verdade, não é a bandeira revolucionária que começa a abanar sobre Estocolmo, mas a bandeira dos pactos, dos acordos, da amnistia para os social-imperialistas e das negociações entre banqueiros para dividir o território anexado».

A estrada para Estocolmo foi, de facto, a estrada para a Segunda Internacional, assim como participar no Pré-Parlamento foi a estrada para a república burguesa. Lenin foi a favor do boicote à Conferência de Estocolmo, assim como mais tarde foi ao boicote ao Pré-Parlamento. Mesmo no auge da luta, ele nem por um segundo se esqueceu da tarefa de criar uma nova Internacional Comunista.

Já a 10 de Abril Lenin apresenta uma proposta para mudar o nome do partido. Todas as objeções contra o novo nome foram caracterizadas da seguinte forma: «É um argumento de rotinismo, um argumento de inércia, um argumento de estagnação... É hora de despir a camisa suja e vestir roupa limpa.» No entanto, a oposição da liderança do partido era tão forte que um ano inteiro teve que passar — durante o qual toda a Rússia deitou fora as roupas imundas da dominação burguesa — antes que o partido se decidisse a adoptar um novo nome, regressando à tradição de Marx e Engels. Este incidente de renomear o partido serve como expressão simbólica do papel de Lenin ao longo de todo o ano de 1917: durante a viragem mais brusca da História, não deixa de encabeçar dentro do partido uma luta encarniçada contra o passado em nome do futuro. E a oposição, pertencente ao passado, marchando sob a bandeira da “tradição”, tornava-se por vezes extrema.

A sublevação de Kornilov [31], que gerou uma mudança abrupta na situação a nosso favor, atenuou temporariamente as discordâncias, que, ainda que tivessem sido suavizadas, não foram eliminadas. Na ala direita, durante esses dias manifestava-se uma tendência para que o partido se aproximasse da maioria do soviete com base na defesa da revolução e, em parte, da pátria. A reação de Lenin veio expressa na sua carta ao Comité Central no início de Setembro: «É minha convicção que aqueles que não têm princípios são pessoas que [...] caem no defencismo ou (como outros bolcheviques) num bloco com os SR, para apoiar o Governo Provisório. A sua atitude é absolutamente errada e sem princípios. Só nos tornaremos defensistas após a transferência de poder para o proletariado ... Mesmo agora, não devemos apoiar o governo de Kerensky. Seria não termos princípios. Podemos perguntar-nos: não vamos lutar contra Kornilov? Certamente que sim! Mas não é a mesma coisa; há uma linha divisória aqui que está a ser ultrapassada por alguns bolcheviques que se comprometem e se permitem levar pelo curso dos acontecimentos».

O próximo estágio na evolução de visões divergentes foi a Conferência Democrática [32] (14-22 de Setembro) e o Pré-Parlamento que se seguiu (7 de Outubro). A tarefa dos mencheviques e dos SRs consistia em emaranhar os bolcheviques na legalidade soviética para depois a transformar sem dificuldade em legalidade parlamentar burguesa. A ala direita estava pronta a permitir isso. Já estamos familiarizados com a maneira como retratam o futuro desenvolvimento da revolução: os sovietes entregariam gradualmente as suas funções às instituições correspondentes — às Dumas, aos Zemstvos, aos sindicatos e, finalmente, à Assembleia Constituinte — e desapareceriam automaticamente de cena. Através do canal do Pré-Parlamento, a consciência política das massas deveria ser direcionada para longe dos sovietes como instituições "temporárias" e moribundas, para a Assembléia Constituinte, a coroa da revolução democrática. Enquanto isso, os bolcheviques já estavam na maioria dos sovietes de Petrogrado e Moscovo; a nossa influência sobre o exército crescia, não de dia para dia, mas de hora para hora. Não era mais uma questão de prognóstico ou perspectiva; era literalmente uma questão de como agiríamos no dia seguinte.

A conduta dos partidos conciliacionistas na Conferência Democrática foi a encarnação da vilania mesquinha. No entanto, a proposta que apresentamos para abandonar ostensivamente a Conferência Democrática, deixando-a à sua malfadada sorte, encontrou grande oposição por parte de elementos da ala direita que ainda tinham influência sob a direcção do partido. O choque nesta questão foi um prelúdio para a luta sobre a questão do boicote ao Pré-Parlamento. A 24 de Setembro, ou seja, depois da Conferência Democrática, Lenin escreveu: «Os bolcheviques deviam ter saído da reunião em protesto e não se terem deixado cair na armadilha da conferência que procurava desviar a atenção de questões sérias».

A discussão na facção bolchevique na Conferência Democrática sobre a questão do boicote ao Pré-Parlamento teve uma importância excepcional, apesar do alcance relativamente estreito da questão em si. De facto, foi a tentativa mais vasta e, à superfície, mais bem-sucedida por parte da ala direita de fazer o partido enveredar pelo caminho da "conclusão da revolução democrática". Aparentemente não foram feitas actas dessas discussões nem nenhum outro registro foi publicado; que eu saiba, nem sequer se conhece o paradeiro das anotações da secretária. Os editores deste volume encontraram alguns documentos muito limitados entre os meus próprios trabalhos. O camarada Kamenev expôs uma linha de argumentação que, posteriormente, foi desenvolvida de uma forma mais nítida e definida e incorporada na conhecida carta de Kamenev e Zinoviev (datada de 11 de Outubro) às organizações do partido. A questão foi mais bem formulada por Nogin: o boicote ao Pré-Parlamento é um apelo à insurreição, ou seja, à repetição das jornadas de Julho. Outros camaradas basearam-se em considerações gerais sobre táticas parlamentares. Ninguém ousaria — como repetiam abundantemente — propor que boicotássemos o Parlamento; no entanto, é feita uma proposta para que boicotemos uma instituição idêntica simplesmente porque é chamada de Pré-Parlamento.

A concepção básica da ala direita era a seguinte: a revolução deve conduzir inevitavelmente dos sovietes ao estabelecimento do parlamentarismo burguês; o “Pré-Parlamento” constitui um elo natural neste processo; portanto, seria tolice recusarmo-nos a participar no Pré-Parlamento, tendo em conta a nossa prontidão para ocupar os bancos da esquerda no próprio parlamento. Era necessário concluir a revolução democrática e "preparar" a revolução socialista. Como nos deveríamos preparar? Ao passar pela escola do parlamentarismo burguês; porque o país avançado mostra ao país atrasado a imagem de seu próprio futuro. A queda da monarquia czarista é vista como revolucionária — e assim foi — mas a conquista do poder pelo proletariado é concebida de forma parlamentar, na base de uma democracia completamente acabada. Longos anos de regime democrático devem decorrer no intervalo entre a revolução burguesa e a revolução proletária. A luta pela nossa participação no Pré-Parlamento foi a luta pela “europeização” do movimento da classe trabalhadora, por direcioná-lo o mais rápido possível para o canal de uma “luta pelo poder” democrática, ou seja, para o canal da social-democracia. A nossa facção na Conferência Democrática, com mais de cem indivíduos, não diferiu muito, especialmente naqueles dias, de um congresso do partido. A maioria da fação manifestou-se a favor da participação no Pré-Parlamento. Esse facto foi por si só motivo suficiente para alarme; e a partir desse momento Lenin tocou o alarme incessantemente.

Enquanto prosseguia a Conferência Democrática, Lenin escrevia: «Seria um grande erro, puro cretinismo parlamentar da nossa parte, se considerássemos a Conferência Democrática um parlamento; pois, mesmo se se proclamasse um parlamento permanente e soberano da revolução, não iria decidir nada. O poder de decisão está fora dele nos bairros da classe trabalhadora de Petrogrado e Moscovo.»

A avaliação de Lenin sobre a importância da participação ou não participação no Pré-Parlamento é revelada em muitas das suas declarações e, em particular, da sua carta de 29 de Setembro ao Comité Central, na qual ele fala de «tais erros flagrantes por parte dos bolcheviques como a vergonhosa decisão de participar do Pré-Parlamento.» Para ele, essa decisão era uma expressão das mesmas ilusões democráticas e vacilações pequeno-burguesas contra as quais lutara, desenvolvendo e aperfeiçoando no curso dessa luta a sua concepção da revolução proletária.

Não é verdade que muitos anos tenham de decorrer entre as revoluções burguesa e proletária. Não é verdade que a escola do parlamentarismo seja a única, ou a principal, ou compulsória para a conquista do poder. Não é verdade que o caminho para o poder passe necessariamente pela democracia burguesa. Todas estas são abstrações inconsistentes, padrões doutrinários, que desempenham apenas um papel político: atar as mãos e os pés da vanguarda proletária e, através da maquinaria estatal "democrática", transformá-la numa sombra política oposicionista da burguesia sob o nome da social-democracia. A política do proletariado não pode ser guiada por esquemas escolásticos, mas sim de acordo com o fluxo real da luta de classes. A nossa tarefa não é ir para o Pré-Parlamento, mas organizar a insurreição e tomar o poder. O resto daí derivará. Lenin até propôs convocar um congresso extraordinário do partido com o principal objectivo de discutir o boicote ao Pré-Parlamento. Daí em diante, todas as suas cartas e artigos martelam num único ponto: devemos dirigirnos não ao Pré-Parlamento para agir como uma cauda "revolucionária" dos conciliadores, mas às ruas — para lutar pelo poder!

 

6. Na véspera da Revolução de Outubro e o seu resultado

Um congresso de emergência mostrou-se desnecessário. A pressão exercida por Lenin garantiu o deslocamento necessário de forças para a esquerda, tanto dentro do Comité Central quanto na facção bolchevique no Pré-Parlamento, tendo-o abandonado a 10 de Outubro. Em Petrogrado, o soviete entrou em confronto com o governo sobre a ordem de transferir para a frente a parte da guarnição que simpatizava com os bolcheviques. A 16 de Outubro, foi criado o Comité Militar Revolucionário, o órgão soviético legal da insurreição. A ala direita do partido procurou retardar o desenvolvimento de eventos. A luta das tendências dentro do partido, assim como a luta de classes no país, entrava na sua fase decisiva.

A posição da ala direita é melhor e bem ilustrada por uma carta assinada por Zinoviev e Kamenev e intitulada “Sobre a Situação Actual”. Foi escrita a 11 de Outubro, ou seja, duas semanas antes da insurreição, e enviada às organizações mais importantes do partido. Nela encontramos uma oposição decisiva à resolução de uma insurreição armada adotada pelo Comité Central. Advertindo contra o risco de subestimar o inimigo, quando na realidade subestimavam monstruosamente as forças da revolução, negando até que as massas estivessem com um estado de espírito para começar uma batalha (duas semanas antes do 25 de Outubro!), declaram na carta: «Estamos profundamente convencidos de que proclamar nesta altura a insurreição armada é arriscar não só a sorte do nosso partido, mas também a da Revolução Russa e Internacional.»

Mas se a insurreição e a tomada do poder estão fora de questão, então o que se deveria fazer? A resposta da carta também é bastante clara e precisa: «Através do exército, através dos operários, empunhamos um revólver apontado à cabeça da burguesia», e por causa desse revólver a burguesia não poderá suprimir a Assembleia Constituinte. «As chances do nosso partido nas eleições para a Assembleia Constituinte são excelentes... A influência dos bolcheviques está a aumentar... Com as tácticas corretas, poderemos obter um terço — senão mais — dos assentos na Assembleia Constituinte.»

Assim, esta carta orienta abertamente o partido a desempenhar o papel de uma oposição "influente" numa Assembleia Constituinte burguesa. Este curso de acção puramente social-democrata é superficialmente camuflado pela seguinte consideração: «Os sovietes, que se enraizaram na vida, não podem ser destruídos. A Assembleia Constituinte só poderá encontrar apoio para o seu trabalho revolucionário nos sovietes. A Assembleia Constituinte com os sovietes compõem em conjunto o tipo de instituição estatal para onde nos dirigimos». É de extraordinário interesse, no que diz respeito à caracterização de toda a linha da ala direita, que a teoria das formas estatais “combinadas”, a junção da Assembléia Constituinte com os sovietes, foi retomada na Alemanha um ano e meio ou dois anos depois por Rudolf Hilferding, que também travou uma luta contra a tomada do poder pelo proletariado. O oportunista austro-alemão não sabia que plagiava.

A carta “Sobre a Situação Atual” refuta a afirmação de que a maioria do povo da Rússia já nos apoiava, com base numa estimativa puramente parlamentar dessa maioria. «Na Rússia, a maioria dos trabalhadores», afirmam na carta, «e uma parte substancial dos soldados estão conosco. Mas todo o resto é incerto. Estamos todos convencidos, por exemplo, de que se as eleições para a Assembleia Constituinte fossem agora, a maioria dos camponeses votaria nos SR. É isto um acidente?»

A formulação da questão acima contém um erro fundamental decorrente da falha em compreender que os camponeses podem ter fortes interesses revolucionários e um intenso desejo de realizá-los, mas não podem ter uma posição política independente. Eles podem votar na burguesia, através dos SRs, ou juntar-se à acção do proletariado. Qual dessas duas possibilidades se materializaria dependia precisamente da nossa política. Se tivéssemos ido para o Pré-Parlamento constituir uma oposição influente (“obter um terço — senão mais — dos assentos”) na Assembleia Constituinte, teríamos quase automaticamente colocado o campesinato numa posição em que estaria compelido a satisfazer os seus interesses através da Assembleia Constituinte e, consequentemente, teriam olhado não para a oposição, mas para a maioria.

Pelo contrário, a tomada do poder pelo proletariado criava imediatamente um quadro revolucionário para a luta do campesinato contra os latifundiários e os oficiais. Para usar uma expressão corrente entre nós sobre esta questão, esta carta simultaneamente subestima e sobrestima o campesinato. Subestima o potencial revolucionário dos camponeses (sob uma direção proletária!) e sobrestima a sua independência política. Este duplo erro decorre, por sua vez, de se subestimar a nossa própria classe e o seu partido — isto é, de ter uma abordagem social-democrata em relação ao proletariado. E não há nada de surpreendente nisto. Todas as matizes de oportunismo, em última análise, se reduzem a uma avaliação incorreta das forças revolucionárias e do potencial do proletariado.

Fazendo objeções à tomada do poder, a carta tenta assustar o partido com a perspectiva de uma guerra revolucionária. «A massa dos soldados apoiam-nos não devido à palavra de ordem da guerra, mas por causa da palavra de ordem da paz... Se, tomando hoje o poder por nós mesmos, chegamos à conclusão (dada a situação mundial) que é necessário travar uma guerra revolucionária, a massa dos soldados afastar-se-ia de nós. É claro que os melhores jovens soldados do exército permaneceriam connosco, mas as massas de soldados abandonar-nos-iam.» Esta linha de raciocínio é altamente instrutiva. Temos aqui os argumentos básicos a favor da assinatura da paz de Brest-Litovsk [33]; mas neste caso, no entanto, são usados contra a tomada do poder. É bastante claro que a posição expressa na carta “Sobre a Situação Actual” mais tarde facilitou a aceitação da paz de Brest-Litovsk por aqueles que apoiaram os pontos de vista expressos na carta acima. Resta-nos repetir aqui o que já temos dito, a saber, que o génio político de Lenin se caracteriza não por tomar a capitulação temporária de Brest-Litovsk como um fato isolado, mas apenas por considerar Brest-Litovsk em conjunto com Outubro. É preciso ter sempre isto em mente.

A classe trabalhadora luta e amadurece com a consciência de que a preponderância de forças está do lado do inimigo. Essa preponderância manifesta-se no quotidiano, a cada passo. O inimigo possui riqueza e poder estatal, todos os meios de exercer pressão ideológica e todos os instrumentos de repressão. Habituamo-nos à ideia de que a preponderância das forças está do lado do inimigo; e este pensamento habitual entra como parte integrante de toda a vida e atividade do partido revolucionário durante a época preparatória. As consequências decorrentes deste ou daquele acto imprudentes ou prematuro de cruéis lembretes da força do inimigo.

Mas chega um momento em que esse hábito de considerar o inimigo mais forte se torna o principal obstáculo no caminho para a vitória. A fraqueza de hoje da burguesia parece estar encoberta pela sombra da sua força de ontem. «Subestimam a força do inimigo!» É em torno deste eixo que se agrupam todos os elementos opostos à insurreição armada. «Mas todos os que não querem apenas falar da insurreição», escreveram os oponentes da insurreição no nosso país, duas semanas antes da nossa vitória, «devem avaliar cuidadosamente as suas hipóteses. E aqui consideramos nosso dever dizer que, no momento atual, seria mais prejudicial subestimar as forças do nosso oponente e sobrestimar as nossas próprias forças. As forças do oponente são maiores do que parecem. Petrogrado é decisiva, e em Petrogrado os inimigos do partido proletário acumularam forças substanciais: 5.000 junkers [34], muito bem armados e organizados, ansiosos (por causa de sua posição de classe) e capazes de lutar; também as tropas de choque, os cossacos, uma parte substancial da guarnição e outra muito considerável da artilharia, que assumiu uma posição em formato de leques em torno de Petrogrado. Para além disso os nossos adversários tentarão, sem dúvida, com a ajuda do Comité Executivo Central dos Sovietes de Toda a Rússia, trazer tropas da frente.» (“Sobre a Situação Atual”).

Numa guerra civil, na medida em que não se trata apenas de contar batalhões de antemão, mas de traçar um balanço aproximado de seu estado de consciência, tal estimativa pode, é claro, nunca ser completamente satisfatória ou adequada. Até Lenin estimou que o inimigo dispunha de importantes forças em Petrogrado e propôs que a insurreição começasse em Moscovo, onde, pensava ele, poderia ser realizada quase sem derramamento de sangue. Estes erros parciais de previsão são absolutamente inevitáveis mesmo nas circunstâncias mais favoráveis e é sempre mais correto fazer planos de acordo com as condições menos favoráveis. Contudo, o que nos interessa neste caso é a formidável sobrestimação das forças do inimigo e a completa distorção das proporções, quando, na realidade, o inimigo não dispunha de força armada nenhuma..

Esta questão — como provou a experiência da Alemanha — é de suma importância. Enquanto a palavra de ordem da insurreição foi usada pelos líderes do Partido Comunista Alemão (KPD) principalmente, senão exclusivamente, para fazer agitação, eles simplesmente ignoraram a questão das forças armadas à disposição do inimigo (exército, destacamentos fascistas, polícia, etc). Julgavam que a ascensão constante da maré revolucionária resolveria automaticamente a questão militar. Mas quando a tarefa os encarou, os mesmos camaradas que antes tratavam as forças armadas do inimigo como se elas não existissem, passaram imediatamente para o outro extremo. Aceitaram todas as estatísticas da burguesia sobre as suas forças, incluindo o exército e a polícia; que calcularam ser meio milhão ou mais, e assim viram-se em mãos com uma força compacta armada até os dentes e absolutamente suficiente para paralisar seus próprios esforços.

Sem dúvida que as forças da contra-revolução alemã eram muito mais fortes numericamente e, de qualquer modo, mais bem organizadas e preparadas do que nossos próprios kornilovistas e semi-kornilovistas. Mas o mesmo acontecia com as forças da revolução alemã. O proletariado compõe a esmagadora maioria da população na Alemanha. No nosso país, a questão — pelo menos na fase inicial — foi decidida por Petrogrado e Moscovo. Na Alemanha, a insurreição teria explodido imediatamente em dezenas de poderosos centros proletários. Nesta arena, as forças armadas do inimigo não pareceriam tão terríveis quanto pareciam em cálculos estatísticos, expressos em números redondos. De qualquer modo, devemos rejeitar categoricamente os cálculos tendenciosos que se fizeram, e continuam a ser feitos, após a derrota do Outubro Alemão, a fim de justificar a política que levou ao desastre.

O nosso exemplo russo é de grande importância nesta comparação. Duas semanas antes da nossa vitória sem derramamento de sangue em Petrogrado — e poderia ter acontecido duas semanas antes — políticos experientes do partido viram erguer-se contra nós os junkers militares, ansiosos e capazes de lutar, as tropas de choque, os cossacos, uma parte substancial da guarnição, a artilharia, em formação em leque, e as tropas que chegam da frente. Afinal, na realidade, tudo isso não deu em nada: em números redondos, zero. Agora, imaginemos por um momento que os adversários da insurreição venciam no nosso partido e no Comité Central. O papel que a direcção desempenha numa guerra civil é muito claro: em tal caso, a revolução estaria condenada de antemão — a menos que Lenin tivesse apelado ao partido para agir contra a decisão do Comité Central, o que ele se preparava para fazer, em relação ao qual seria sem dúvida bem sucedido. Mas, em circunstância idênticas, nem todos os partidos terão o seu Lenin...

Não é difícil imaginar como a história teria sido escrita caso o Comité Central tivesse fugido da batalha. Os historiadores oficiais teriam, é claro, explicado que uma insurreição em Outubro de 1917 seria pura loucura; e teriam fornecido ao leitor gráficos estatísticos inspiradores de temor dos junkers, cossacos, tropas de choque, artilharia em formação em leque, e corpos de exército vindos da frente. Sem serem testadas no fogo da insurreição, essas forças teriam parecido incomensuravelmente mais terríveis do que comprovaram ser em ação. Aqui está a lição que deve ficar gravada na consciência de todos os revolucionários!

A pressão persistente, incansável e incessante que Lenin exerceu sobre o Comité Central ao longo de Setembro e Outubro surgiu do seu medo constante de que deixássemos passar o momento propício. Tudo isso é um absurdo, respondeu a ala direita, nossa influência continuará a crescer. Quem estava certo? E o que significa perder o momento propício? Esta questão envolve diretamente uma questão sobre a qual a estimativa bolchevique dos caminhos e meios da revolução entra em conflito mais nítida e claramente com a social-democrata, a estimativa menchevique: a primeira sendo activa, estratégica e prática durante todo o processo, enquanto a última é totalmente impregnada de fatalismo.

O que significa perder o momento propício? As condições mais favoráveis ​​para uma insurreição existem, obviamente, quando a correlação de forças atinge um máximo a nosso favor. Estamos, é claro, a referirmo-nos à relação de forças no domínio da consciência, ou seja, no domínio da superestrutura política, e não no domínio das bases econômicas, que se pode assumir que permanecem mais ou menos inalteradas ao longo de toda a época revolucionária. Sobre as mesmas bases económicas, com a mesma divisão de classes na sociedade, a relação de forças muda dependendo do estado de espírito das massas proletárias, do grau de destruição das suas ilusões e do crescimento da sua experiência política, da perda de confiança das classes e grupos intermédios no poder estatal e, finalmente, da medida em que este último perde confiança em si mesmo.

Durante a revolução todos estes processos ocorrem à velocidade da luz. Toda a arte táctica consiste nisso: em aproveitarmos o momento em que a combinação de circunstâncias é a mais favorável para nós. A sublevação de Kornilov preparou essa combinação. As massas, tendo perdido a confiança nos partidos da maioria do soviete, viam com seus próprios olhos o perigo da contra-revolução. Chegaram à conclusão de que agora cabia aos bolcheviques encontrar uma saída para a situação. Nem a desintegração do poder do estado nem o afluxo da confiança impaciente e exigente das massas nos bolcheviques podia durar por um longo período de tempo. A crise tinha de ser resolvida de uma forma ou de outra.

«É agora, ou nunca!» repetia Lenin. A ala direita refutava: «Seria uma séria mentira histórica formular a questão da transferência de poder para as mãos do partido proletário nos termos: agora ou nunca. Não. O partido do proletariado vai crescer. O seu programa será conhecido por massas cada vez mais amplas... E há apenas uma maneira pela qual o partido proletário pode interromper os seus sucessos, e é se, nas condições atuais, se encarregar de dar início a uma insurreição... Levantamos nossa voz em advertência contra esta política perigosa.» (“Sobre a Situação Actual”).

Esse otimismo fatalista merece um estudo mais cuidadoso. Não tem nada de nacional nem certamente nada de individual. Apenas no ano passado testemunhámos a mesma tendência na Alemanha. Esse fatalismo passivo não serve para mais que ocultar a indecisão e até mesmo a incapacidade de ação, mas camufla-se ele próprio com o prognóstico consolador de que vamos sendo cada vez mais influentes e que com o passar do tempo, as nossas forças aumentarão continuamente. Que ilusão grosseira! A força de um partido revolucionário só aumenta até certo momento, a partir do qual o processo pode transformar-se exatamente no oposto. As esperanças das massas transformam-se em desilusão como resultado da passividade do partido, enquanto o inimigo se recupera do pânico e se aproveita dessa desilusão. Testemunhámo-lo na Alemanha em Outubro de 1923. Não estávamos muito longe de uma reviravolta semelhante na Rússia no Outono de 1917. Talvez um atraso de mais algumas semanas tivesse sido suficiente. Lenin estava certo. Era agora ou nunca!

«Mas a questão decisiva» — e aqui os oponentes da insurreição apresentaram o seu último e mais forte argumento — «é o sentimento entre os trabalhadores e soldados da capital realmente tal que eles vêem a salvação apenas nos combates de rua, que estão impacientes por irem para as ruas? Não. Não existe tal sentimento... Se entre as grandes massas de pobres da capital houvesse um sentimento militante desejoso de ir para as ruas, a sua acção garantiria que uma insurreição por estas iniciadas atrairia as maiores organizações (sindicatos ferroviários, sindicatos de trabalhadores dos correios e telégrafos, etc.), onde a influência do nosso partido é fraca. Mas, uma vez que não existe tal sentimento, mesmo nas fábricas e quartéis, seria uma ilusão construir quaisquer planos sobre essa assumpção.» (“Sobre a Situação Actual”).

Essas linhas, escritas a 11 de Outubro, adquirem um significado excepcional quando recordamos que os camaradas dirigentes do partido alemão, em sua tentativa de explicar a sua retirada do ano passado sem desferir um golpe, enfatizavam especialmente a relutância das massas em lutar. Mas o cerne da questão está no fato de que uma insurreição vitoriosa se torna, em geral, mais garantida quando as massas têm experiência suficiente para não mergulhar de cabeça na luta, mas para esperar e exigir uma liderança resoluta e capaz. Em Outubro de 1917, as massas da classe trabalhadora, ou pelo menos a sua vanguarda, já haviam chegado à firme conclusão — com base na experiência da Manifestação de Abril, das jornadas de Julho e da sublevação de Kornilov — de que nem protestos isolados nem operações de reconhecimento continuavam ordem do dia — mas sim uma insurreição decisiva para a tomada do poder. O estado de espírito das massas tornou-se correspondentemente mais concentrado, mais crítico e mais profundo.

A transição de um estado de espírito exuberante e com ilusões para um mais crítico e consciente implica necessariamente um corte na continuidade revolucionária. Esta crise progressiva no ânimo das massas só pode ser superada por uma política do partido adequada, isto é, acima de tudo pela genuína prontidão e capacidade do partido para liderar a insurreição do proletariado. Por outro lado, um partido que mantém uma agitação revolucionária prolongada, arrancando as massas da influência dos conciliacionistas, e então, depois da confiança das massas ter sido elevada ao seu máximo, começa a vacilar, a buscar subterfúgios, a divagar — tal partido paralisa a atividade das massas, semeia a desilusão e a desintegração entre elas e arruína a revolução; apenas para depois do desastre assegurar-se a si mesmo com a desculpa pronta da falta de actividade das massas. Era justamente essa a linha de pensamento da carta “Sobre a Situação Actual”. Felizmente o nosso partido, sob a liderança de Lenin, foi capaz de liquidar de forma decisiva este sentimento entre a direcção. Só por isso foi capaz de conduzir uma revolução vitoriosa.

Caracterizámos a natureza das questões políticas ligadas à preparação da Revolução de Outubro e procurámos esclarecer o cerne das diferenças que surgiram; resta-nos agora examinar brevemente os momentos mais importantes da luta interna do partido durante as últimas semanas, as decisivas.

A resolução para uma insurreição armada foi adoptada pelo Comité Central a 10 de Outubro. A 11 de Outubro, a carta “Sobre a Situação Actual”, analisada acima, foi enviada às organizações partidárias mais importantes. A 18 de Outubro, ou seja, uma semana antes da revolução, Novaya Zhizn [Vida Nova] publicou a carta de Kamenev. «Não só o camarada Zinoviev e eu», lemos nesta carta, «mas também vários camaradas práticos pensam que assumir a iniciativa de uma insurreição armada neste momento, dada a correlação de forças, independentemente do e vários dias antes do Congresso dos Sovietes, é um passo inadmissível e ruinoso para o proletariado e a revolução.» [35] A 25 de Outubro, foi tomado o poder em Petrogrado e criado o governo soviético.

A 4 de Novembro, vários membros destacados ​​do partido renunciaram do Comité Central do partido e ao Conselho dos Comissários do Povo, e fizeram um ultimato exigindo a formação de um governo de coligação composto por todos os partidos do soviete. «Caso contrário», escreveram eles, «o único caminho que resta é manter um governo puramente bolchevique por meio do terror político». E, noutro documento, emitido ao mesmo tempo: «Não podemos assumir qualquer responsabilidade por esta política ruinosa do Comité Central contrária à vontade da grande maioria do proletariado e dos soldados que anseiam o mais rapidamente possível pelo fim do derramamento de sangue entre as diferentes secções da democracia. Por esta razão renunciamos aos nossos cargos no Comité Central para nos valer do direito de exprimir as nossas opiniões francas às massas operárias e militares e convocá-las a apoiar o nosso grito: “Viva o governo de todos os partidos do soviete! Conciliação imediata nesta base!”» [36]

Assim, aqueles que se opunham à insurreição armada e à tomada do poder como uma aventura exigiam, após a conclusão vitoriosa da insurreição, que o poder fosse restaurado aos partidos contra os quais o proletariado tinha que lutar para conquistar o poder. E porque seria obrigado o partido bolchevique vitorioso a restaurar o poder aos mencheviques e SRs? (E era precisamente a restauração do poder que estava em questão aqui!) A isto a oposição respondeu: «Consideramos que a criação de tal governo é necessária para evitar mais derramamento de sangue, uma fome iminente, o esmagamento do revolução por Kaledin e os seus partidários; e para assegurar a convocação da Assembleia Constituinte e a efectiva realização do programa de paz adoptado pelo Congresso Pan-Russo de Soviets de Deputados de Soldados e Trabalhadores.»

Noutras palavras, tratava-se de abrir caminho para o parlamentarismo burguês através dos portões dos sovietes. A revolução recusou-se a passar pelo Pré-Parlamento e teve que abrir um caminho para si mesma até Outubro; portanto a tarefa, tal como formulada pela oposição, consistia em salvar a revolução da ditadura, com a ajuda dos mencheviques e dos SRs, canalizando-a para um regime burguês. O que estava em causa aqui era a liquidação de Outubro - nem mais, nem menos. Naturalmente, não se poderia falar em conciliação nestas condições.

No dia seguinte, a 5 de Novembro, foi publicada mais uma carta no mesmo sentido. «Não posso, em nome da disciplina partidária, calar-me quando, diante do bom senso e do movimento elementar das massas, os marxistas se recusam a levar em consideração as condições objetivas que imperiosamente nos ditam, sob ameaça de catástrofe, a conciliação com todos os partidos socialistas ... Não posso, em nome da disciplina partidária, submeter-me ao culto da personalidade e fazer depender um acordo político com todos os partidos socialistas que concordam com as nossas reivindicações fundamentais da inclusão deste ou daquele indivíduo no ministério, prolongando assim o derramamento de sangue.» [37] O autor desta carta (Lazovsky) conclui declarando que é urgente lutar por um congresso partidário emergencial onde se decidiria a questão de «se o Partido Operário Social-Democrata Russo (bolcheviques) continuará a ser um partido marxista da classe operária ou se adoptará um curso que não tem nada em comum com o marxismo revolucionário.» [Ibidem]

A situação parecia perfeitamente desesperada. Não apenas a burguesia e os latifundiários, não apenas a chamada “democracia revolucionária” que ainda mantinha o controlo dos órgãos dirigentes de muitas organizações (o Comité Executivo Central de Ferroviários de toda a Rússia [Vikzhel], os Comités do exército, o governo funcionários, e assim por diante), mas também alguns dos membros mais influentes do nosso próprio partido, membros do Comité Central e do Conselho dos Comissários do Povo, condenavam publicamente o partido pela tentativa de permanecer no poder a fim de realizar o seu programa. A situação poderia parecer desesperada, se examinássemos apenas os acontecimentos superficialmente. Aquiescer às exigências da oposição significava liquidar Outubro. Nesse caso, valia a pena ter feito a Revolução. Restava apenas um caminho: marchar adiante, contando com a vontade revolucionária das massas.

A 7 de Novembro o Pravda publicou a declaração decisiva do Comité Central do nosso partido, escrita por Lenin, que destilava um verdadeiro fervor revolucionário, expressa em formulações claras, simples e inconfundíveis dirigidas às bases do partido. Esta proclamação pôs fim a quaisquer dúvidas quanto à futura política do partido e do seu Comité Central: «Vergonha para todos os tímidos, todos os vacilantes e duvidosos, todos aqueles que se deixaram intimidar pela burguesia ou que sucumbiram aos clamores de seus apoiantes directos e indirectos! Não há a menor hesitação entre a massa de trabalhadores e soldados de Petrogrado, Moscovo e outros lugares. O nosso partido mantém-se sólido e firme, a uma só voz, em defesa do poder soviético, em defesa dos interesses de todos os trabalhadores e, acima de tudo, dos trabalhadores e camponeses pobres.» [38]

A crise mais aguda do partido foi superada. No entanto, as lutas internas do partido continuaram na mesma linha, mas cada vez com menor importância política. Encontramos a prova disto num relatório feito por Uritsky numa sessão do Comité de Petrogrado do nosso partido a 12 de Dezembro, sobre o assunto da convocação da Assembleia Constituinte. «As divergências dentro do nosso partido não são novas. Temos aqui a mesma tendência que se manifestou anteriormente sobre a questão da insurreição. Alguns camaradas pensam agora que a Assembleia Constituinte é o culminar da revolução. Raciocinam como pequeno-burgueses, pedindo que não cometamos faltas de tacto. Opõem-se a que os bolcheviques, enquanto membros da Assembleia Constituinte, decidem a data da sua convocação, a sua relação de forças, etc. Vêem as coisas de um ponto de vista puramente formal, ignorando totalmente que o exercício desse controlo é apenas um reflexo dos acontecimentos ocorridos fora da Assembleia Constituinte, e que com esta consideração em mente pudemos delinear a nossa atitude em relação à Assembleia Constituinte... O nosso ponto de vista actual é que estamos a lutar pelos interesses do proletariado e do campesinato pobres, enquanto um punhado de camaradas consideram que estamos a fazer uma revolução burguesa que deve ser coroada por uma Assembleia Constituinte.»

A dissolução da Assembleia Constituinte pode ser considerada como o encerramento não só de um grande capítulo da história da Rússia, mas de um capítulo igualmente importante da história do nosso partido. Superando os atritos internos, o partido do proletariado não só conquistou o poder, como foi capaz de o manter.

 

7. A Insurreição de Outubro e a “Legalidade” dos Sovietes

Em Setembro, durante os dias da Conferência Democrática, Lenin exigiu que iniciássemos imediatamente a insurreição. «Para tratar a insurreição de uma forma marxista, ou seja, como uma arte, devemos ao mesmo tempo, sem perder um só momento, organizar um quartel-general dos destacamentos insurgentes, distribuir as nossas forças, mover os regimentos de confiança ​​para os pontos mais importantes, cercar o Teatro Alexandrinsky, ocupar a Fortaleza de Pedro e Paulo, prender o Estado-Maior e o governo, e enviar contra os cadetes e a Divisão Selvagem aqueles destacamentos que preferem morrer a permitir que o inimigo se aproxime dos pontos estratégicos da cidade. Devemos mobilizar os trabalhadores armados e chamá-los para lutar a última luta desesperada, ocupar simultaneamente as centrais dos telégrafos e telefónica de vez, mover o nosso quartel-general da insurreição para a central telefónica e conectá-la por telefone com todas as fábricas, todos os regimentos, todos os pontos de luta armada, etc. Claro, tudo isso é a título de exemplo, apenas para ilustrar o fato de que, no momento presente, é impossível permanecer leal ao marxismo, permanecer leal à revolução, a menos que a insurreição seja tratada como uma arte.» [39]

A formulação da questão acima pressupunha que a preparação e conclusão da insurreição deviam ser realizadas através dos canais do partido e em nome do partido, e posteriormente o Congresso dos Sovietes colocaria o selo de aprovação na vitória. O Comité Central não aceitou esta proposta. A insurreição foi conduzida pelos canais do soviete e foi associada à nossa agitação no 2º Congresso dos Sovietes. Uma explicação detalhada desta diferença de opinião tornará claro que esta questão pertence não a princípios, mas sim a uma questão técnica de grande importância prática.

Já assinalamos a intensa ansiedade com que Lenin considerava o adiamento da insurreição. Face às hesitações dos dirigentes do partido, a agitação que subordinava formalmente a insurreição à convocação do 2º Congresso dos Sovietes parecia-lhe um atraso inadmissível, uma concessão à irresolução, uma perda de tempo, um verdadeiro crime. Lenin continuou a insistir nesta ideia desde o final de Setembro em diante.

«Há uma tendência, ou uma opinião, no nosso Comité Central e entre os dirigentes do nosso Partido», escreveu ele a 29 de Setembro, «que favorece a espera pelo Congresso dos Sovietes e se opõe à tomada do poder imediatamente, se opõe a uma insurreição imediata. Essa tendência, ou opinião, deve ser superada.» No início de Outubro, Lenin escreveu: «Esperar é um crime. Esperar pelo Congresso dos Sovietes seria um jogo infantil de formalidades, um vergonhoso jogo de formalidades e uma traição à revolução». Nas suas teses para a Conferência de Petrogrado de 8 de Outubro, Lenin disse: «É necessário lutar contra as ilusões constitucionais e as esperanças depositadas no Congresso dos Sovietes, para descartar a ideia preconcebida de que devemos absolutamente “esperar” por este» Finalmente, a 24 de Outubro, Lenin escreveu: «Agora está absolutamente claro que atrasar a insurreição seria fatal ... A história não perdoará os revolucionários por procrastinarem quando poderiam ser vitoriosos hoje (e serão certamente vitoriosos hoje), enquanto correm o risco de perder muito amanhã, ou, na verdade, correm o risco de perder tudo».

Todas essas cartas, das quais cada frase foi forjada na bigorna da revolução, são de valor excepcional, pois servem tanto para caracterizar Lenin quanto para fornecer uma estimativa da situação na época. O pensamento básico e omnipresente expresso nelas é de raiva, protesto e indignação contra uma atitude fatalista, expectante, social-democrata e menchevique em relação à revolução, como se esta fosse um filme sem fim. Se o tempo é, em geral, um factor primordial na política, então a sua importância é multiplicada por cem na guerra e na revolução. Não é possível realizar amanhã tudo o que pode ser feito hoje. Pegar nas armas, subjugar o inimigo, tomar o poder, pode ser possível hoje, mas amanhã pode ser impossível.

Mas tomar o poder é mudar o curso da história. É realmente verdade que tal evento histórico pode depender de um intervalo de vinte e quatro horas? Pode sim. Quando as coisas atingem o ponto de uma insurreição armada, os eventos devem ser medidos não ao quilómetro da política, mas ao metro da guerra. Perder várias semanas, vários dias, às vezes até um único dia, equivale, em certas condições, à rendição da revolução, à capitulação. Se Lenin não tivesse soado o alarme, se não houvesse toda essa pressão e crítica de sua parte, não fosse por sua intensa e apaixonada desconfiança revolucionária, o partido provavelmente não teria conseguido corrigir a sua linha no momento decisivo, pois a oposição entre os dirigentes do partido era muito forte, e a direcção desempenha um importante papel em todas as guerras, incluindo as civis.

Ao mesmo tempo, entretanto, é bastante claro que preparar a insurreição e executá-la sob o pretexto da preparação do 2º Congresso dos Sovietes e sob a palavra de ordem da sua defesa foi uma vantagem inestimável para nós. A partir do momento em que nós, enquanto soviete de Petrogrado, invalidámos a ordem de Kerensky de transferir dois terços da guarnição para a frente, entrámos de facto num estado de insurreição armada. Lenin, que não estava em Petrogrado, não pôde avaliar o completo significado deste facto. Tanto quanto me lembro, não há uma menção sobre isto em nenhuma das cartas durante esse período. No entanto, o resultado da insurreição de 25 de Outubro foi resolvido em pelo menos três quartos, se não mais, no momento em que nos opusemos à transferência da guarnição de Petrogrado; criámos o Comité Militar Revolucionário (16 de Outubro); nomeámos os nossos próprios comissários em todas as divisões e instituições do exército; e, portanto, isolámos completamente não só o estado-maior geral da zona de Petrogrado, mas também o governo. Na verdade, tivemos aqui uma insurreição armada — uma insurreição armada, embora sem derramento de sangue, dos regimentos de Petrogrado contra o Governo Provisório — sob a liderança do Comité Militar Revolucionário e sob a palavra de ordem de preparar a defesa do 2º Congresso dos Sovietes, que decidiria o destino final do poder estatal.

O conselho de Lenin para iniciar a insurreição em Moscovo, onde, acreditava, poderíamos obter uma vitória sem derramamento de sangue, decorreu precisamente do facto de não ter tido a oportunidade, a partir do seu refúgio subterrâneo, de avaliar a viragem radical que ocorreu não apenas no estado de espírito mas também nos laços organizacionais entre as bases militares e a hierarquia do exército após a insurreição “pacífica” da guarnição da capital em meados de Outubro. No momento em que os regimentos, por ordem do Comité Militar Revolucionário, se recusaram a sair da cidade, tivemos uma insurreição vitoriosa na capital, que os derradeiros farrapos das formas estatais da democracia burguesa mal disfarçavam. A insurreição de 25 de Outubro foi apenas de caráter complementar. É exatamente por isso que foi indolor. Em Moscovo, por outro lado, a luta foi muito mais longa e sangrenta, apesar de que em Petrogrado o poder do Conselho dos Comissários do Povo já tinha sido estabelecido. É bastante claro que, se a insurreição tivesse começado em Moscovo antes de Petrogrado, ter-se-ia arrastado ainda mais, e o seu êxito seria bastante duvidoso. O fracasso em Moscovo teria efeitos graves em Petrogrado. Claro, não se excluía de todo uma vitória nesse sentido. Mas o rumo que os acontecimentos tomaram realmente mostrou-se muito mais económica, muito mais favorável e muito mais bem-sucedida.

Fomos mais ou menos capazes de sincronizar a tomada do poder com a abertura do 2º Congresso dos Sovietes apenas porque a insurreição armada pacífica, quase “legal” — pelo menos em Petrogrado — já estava três quartos, senão nove décimos, alcançada. A nossa referência a esta insurreição como sendo “legal” é no sentido de que foi uma consequência das condições “normais” do duplo poder. Mesmo quando os conciliacionistas dominavam o Soviete de Petrogrado, frequentemente acontecia o soviete rejeitar ou corrigir as decisões do governo. Isso era, por assim dizer, parte da constituição sob o regime que ficou inscrito nos anais da história como o “período Kerensky”. Quando nós, bolcheviques, assumimos o poder do Soviete de Petrogrado, apenas continuámos e aprofundámos os métodos de duplo poder. Decidimos rejeitar a ordem de transferência de tropas para a frente. Com este acto, cobrimos a insurreição da guarnição de Petrogrado com as tradições e métodos do duplo poder legal. E isso não foi tudo. Ao adaptarmos formalmente a nossa agitação sobre a questão do poder à abertura do 2º Congresso dos Sovietes, desenvolvemos e aprofundámos as tradições já existentes de duplo poder e preparámos a estrutura da legalidade soviética para a insurreição bolchevique em toda a Rússia.

Não alimentámos as massas com nenhumas ilusões constitucionais em relação aos sovietes, pois sob a palavra de ordem da luta pelo 2º Congresso dos Sovietes conquistámos para o nosso lado as baionetas do exército revolucionário e consolidámos as nossas conquistas organizacionalmente. E, além disso, conseguimos, muito mais do que esperávamos, em atrair os nossos inimigos, os conciliacionistas, para a armadilha da legalidade soviética. Recorrer a ardis na política, ainda mais na revolução, é sempre perigoso. Muitas vezes não será possível enganar o inimigo, mas acabamos antes por enganar as massas que nos seguem. O nosso ardil provou ser 100% bem-sucedido — não porque fosse um esquema engenhoso criado por estrategas astutos que procuravam evitar uma guerra civil, mas por resultar naturalmente da desintegração do regime conciliacionista com as suas contradições flagrantes. O Governo Provisório queria livrar-se da guarnição. Os soldados não queriam ir para a frente. Nós demos a este sentimento natural uma expressão política; um objetivo revolucionário e uma cobertura “legal”. Assim, assegurámos uma unanimidade sem precedentes dentro da guarnição e ligámo-la estreitamente aos operários de Petrogrado. Os nossos oponentes, pelo contrário, por causa da posição desesperada em que se encontravam e da sua teimosia, estavam inclinados a aceitar a legalidade do soviete como moeda segura. Ansiavam por serem enganados e nós demos-lhes a oportunidade de satisfazerem o seu desejo.

Havia uma luta pela legalidade soviética entre nós e os conciliacionistas. Na mente das massas, os sovietes eram a fonte de todo o poder. Dos sovietes vieram Kerensky, Tseretelli e Skobelev. Mas nós mesmos estávamos intimamente ligados aos sovietes através da nossa palavra de ordem "Todo o poder aos sovietes!". A burguesia assegurava a sua sucessão ao poder através Duma estatal. Os conciliacionistas através dos sovietes; e nós também. Mas os conciliacionistas procuraram reduzir os sovietes a nada; enquanto nós nos esforçávamos para transferir o poder aos sovietes. Os conciliacionistas ainda não conseguiam romper com os sovietes e tinham pressa em criar uma ponte entre estes e o parlamentarismo. Com isto em mente, convocaram a Conferência Democrática e criaram o Pré-Parlamento. A participação dos sovietes no Pré-Parlamento impediu até certo ponto a sua acção. Os conciliacionistas procuravam enganar a revolução com o isco da legalidade soviética para, depois de a pescar, arrastá-la para o canal do parlamentarismo burguês.

Mas também estávamos interessados em fazer uso da legalidade. Na conclusão da Conferência Democrática, extraímos dos conciliacionistas a promessa de convocar o 2º Congresso dos Sovietes. Este congresso colocou-os numa posição extremamente embaraçosa. Por um lado, não podiam opor-se a convocá-lo sem romper com a legalidade; por outro lado, não puderam deixar de ver que o Congresso — por causa de sua composição — não lhes traria vantagem nenhuma. Em consequência, com a maior insistência apelamos ao 2º Congresso como o verdadeiro dono dos destinos do país; e ainda mais adaptámos todo o nosso trabalho preparatório ao apoio e defesa do 2º Congresso contra os inevitáveis ataques da contra-revolução. Se os conciliacionistas tentaram apanhar-nos com o isco da legalidade através do Pré-Parlamento proveniente dos sovietes, então da nossa parte, atraímo-los com a mesma legalidade — através do 2º Congresso.

Uma coisa é preparar uma insurreição armada sob a palavra de ordem da tomada do poder pelo partido, outra coisa muito diferente é preparar e depois realizar uma insurreição sob a palavra de ordem da defesa dos direitos do Congresso dos Sovietes. Assim, se bem que quiséssemos fazer coincidir a tomada do poder com o 2.º Congresso dos Sovietes, de modo nenhum tivemos a esperança ingênua de que este, por si só, pudesse resolver a questão do poder. Esse fetichismo da forma soviética era-nos totalmente alheio. Todo o trabalho necessário para a conquista do poder, não só o político, mas também o organizacional e técnico-militar para a tomada do poder, prosseguiu a todo vapor. Mas a cobertura legal de todo esse trabalho sempre foi proporcionada por uma referência invariável ao Congresso que se aproximava, que resolveria a questão do poder. Travando uma ofensiva ao longo de toda a linha, mantivemos a aparência de estar na defensiva.

Por outro lado, o Governo Provisório — se tivesse decidido defender-se seriamente — teria que atacar o Congresso dos Sovietes, proibir sua convocação e, assim, fornecer ao adversário um motivo — muito prejudicial para o governo — para uma insurreição armada. Além disso, não apenas colocámos o Governo Provisório numa posição política desfavorável; também acalmámos as suas mentes já de si suficientemente preguiçosas e pesadas. Estas pessoas acreditavam seriamente que estávamos preocupados apenas com o parlamentarismo soviético e com um novo congresso que adoptaria uma nova resolução sobre o poder — no estilo das resoluções adotadas pelos sovietes de Petrogrado e Moscovo — e que o governo então a ignoraria, usando o Pré-Parlamento e a Assembleia Constituinte que aí vinha como pretexto, colocando-nos assim numa posição ridícula.

Temos o testemunho irrefutável de Kerensky de que as mentes dos sábios pedantes da pequena-burguesia se inclinavam precisamente a pensar assim. Nas suas memórias, Kerensky relata como, no seu escritório, à meia-noite de 25 de Outubro, disputas tempestuosas ocorreram entre ele, Dan e os outros sobre a insurreição armada, que então estava em pleno andamento. Kerensky diz: «Dan declarou, em primeiro lugar, que eles estavam mais bem informados do que eu, e que eu estava a exagerar os eventos, sobre a influência de relatórios dos meus “funcionários reacionários”. Ele então informou-me que a resolução adoptada pela maioria dos sovietes da república, que tanto ofendera "a auto-estima do governo", era de extremo valor e essencial para provocar a "mudança no estado de espírito das massas"; que o seu efeito já "se fazia sentir" e que agora a influência da propaganda bolchevique iria "declinar rapidamente". Por outro lado, de acordo com as próprias palavras de Dan, os próprios bolcheviques tinham declarado, em negociações com os líderes da maioria do soviete, a sua prontidão para “se submeterem à vontade da maioria do soviete”; e que estavam prontos "amanhã" para usar todas as medidas para reprimir a insurreição que explodiu contra seus próprios desejos e sem sua autorização! Em conclusão, após mencionar que os bolcheviques iriam dispersar seu estado-maior militar “amanhã” (sempre amanhã!) Dan declarou que todas as medidas que eu tinha tomado para esmagar a insurreição tinham apenas “irritado as massas” e que devido à minha intromissão eu tinha “impedindo os representantes da maioria do soviete” de concluírem com sucesso as suas negociações com os bolcheviques para a liquidação da insurreição ...

Para completar o quadro, devo acrescentar que no exacto momento em que Dan me transmitia esta informação notável os destacamentos armados dos “Guardas Vermelhos” ocupavam edifícios do governo, um após o outro. E quase imediatamente após a partida de Dan e seus camaradas do Palácio de Inverno, o Ministro Kartashev, a caminho de casa de uma sessão do Governo Provisório, foi preso na rua Milliony e levado diretamente para Smolny, para onde Dan estava a voltar para retomar a sua pacífica negociação com os bolcheviques. Devo reconhecer que os bolcheviques agiram então com muita energia e não menos habilidade. No momento em que a insurreição estava em pleno andamento, e enquanto as “tropas vermelhas” operavam por toda a cidade, vários líderes bolcheviques especialmente designados para o efeito procuraram, com sucesso, fazer os representantes da “democracia revolucionária” ver mas permanecererm cegos e ouvir mas permanecerem surdos. Durante toda a noite, esses homens astutos envolveram-se em disputas intermináveis ​​sobre várias fórmulas que supostamente deveriam servir como base para a reconciliação e para a liquidação da insurreição. Com este método de "negociação", os bolcheviques ganharam muito tempo. Mas as forças combatentes dos SRs e dos mencheviques não foram mobilizadas a tempo. Mas, claro, isso é QED! [abreviação da expressão latina "quod erat demonstrandum" que significa "o que era necessário demonstrar" e tradicionalmente aparecia no final de demonstrações matemáticas — nota do tradutor] [40]»

Bem colocado! QED! Os conciliacionistas, como deduzimos do relato acima, foram completamente apanhados pela isca da legalidade dos sovietes. A suposição de Kerensky de que certos bolcheviques estavam especialmente disfarçados para enganar os mencheviques e os SRs sobre a liquidação pendente da insurreição não é verdade. Na verdade, os bolcheviques que participaram mais activamente nas negociações foram aqueles que realmente desejavam a liquidação da insurreição e que acreditaram na fórmula de um governo socialista, formado pela conciliação de todos os partidos. Objectivamente, no entanto, esses parlamentares sem dúvida prestaram um serviço à insurreição — alimentando, com as suas próprias ilusões, as ilusões do inimigo. Mas só puderam prestar este serviço à revolução porque o partido, apesar de todos os seus conselhos e todas as suas advertências, prosseguiu com a insurreição com uma energia infatigável e a levou até ao fim.

Uma combinação de circunstâncias excepcionais — grandes e pequenas — foi necessária para garantir o sucesso desta manobra extensa e abrangente. Acima de tudo, era necessário um exército que não quisesse mais lutar. Todo o curso da revolução — principalmente nos estágios iniciais — de Fevereiro a Outubro, inclusive, teria sido, como já dissemos, totalmente diferente se no momento da revolução não existisse no país um exército camponês vencido e descontente de muitos milhões. Só estas condições permitiram concluir com êxito a experiência com a guarnição de Petrogrado, que predeterminou o desfecho vitorioso de Outubro.

Não se pode santificar numa lei esta combinação peculiar de uma insurreição “seca” e quase imperceptível em conjunto com a defesa da legalidade dos sovietes contra Kornilov e os seus seguidores. Pelo contrário, podemos afirmar com certeza que esta experiência nunca se repetirá em qualquer lugar desta forma. Mas o seu estudo cuidadoso é muito necessário. Alargará o horizonte de todos os revolucionários, revelando-lhes a multiplicidade e variedade de formas e meios que podem ser postos em acção, desde que o objetivo seja mantido claramente em mente, a situação seja avaliada corretamente e haja a determinação de conduzir a luta até o fim.

Em Moscovo, a insurreição demorou muito mais e exigiu sacrifícios muito maiores. A explicação para isso reside em parte no facto de que a guarnição de Moscovo não foi submetida à mesma preparação revolucionária que a guarnição de Petrogrado em conexão com a transferência de regimentos para a frente. Já dissemos, e repetimos, que a insurreição armada em Petrogrado foi realizada em duas partes: a primeira no início de Outubro, quando os regimentos de Petrogrado, obedecendo à decisão do soviete, que estava em completa harmonia com os seus próprios desejos, se recusaram a cumprir as ordens do quartel-general — e fizeram-no impunemente — e a segunda a 25 de Outubro, quando apenas uma insurreição menor e complementar foi necessária para cortar o cordão umbilical do poder estatal de Fevereiro. Mas em Moscovo, a insurreição ocorreu numa única etapa, e essa foi provavelmente a principal razão de ter sido tão prolongada.

Mas havia um outro motivo: a direcção não foi suficientemente decisiva. Em Moscovo, vimos uma transição da acção militar para as negociações apenas para voltar à acção militar. Se as vacilações da direcção, que são transmitidas às bases, são geralmente prejudiciais na política, tornam-se um perigo mortal numa insurreição armada. A classe dominante já perdeu a confiança na sua própria força (caso contrário, não poderia haver, em geral, esperança de vitória), mas o aparelho ainda permanece nas suas mãos. A tarefa da classe revolucionária é conquistar o aparelho de Estado. Para isso deve ter confiança nas suas próprias forças. Assim que o partido tenha conduzido os trabalhadores à insurreição, deve tirar daí todas as conclusões necessárias. À la guerre comme à la guerre (“Guerra é guerra”). Sob as condições de guerra, a vacilação e a procrastinação são menos permissíveis do que em qualquer outro momento. Marcar passo, mesmo que por algumas horas, é restituir em parte a confiança à classe dominante enquanto se tira dos insurgentes. Mas é precisamente isto que determina a relação de forças, que, por sua vez, determina o resultado da insurreição. Deste ponto de vista, é necessário estudar, passo a passo, o curso das operações militares em Moscovo em conexão com a direcção política.

Seria de grande importância indicar vários outros casos em que a guerra civil ocorreu em condições especiais, sendo complicada, por exemplo, pela intrusão de um elemento nacional. Tal estudo, baseado em dados factuais cuidadosamente digeridos, enriqueceria muito os nosso conhecimento da mecânica da guerra civil e, assim, facilitaria a elaboração de certos métodos, regras e dispositivos de caráter suficientemente geral para servir como uma espécie de "manual" da guerra civil. Mas, em antecipação às conclusões parciais de tal estudo, pode-se dizer que o curso da guerra civil nas províncias foi em grande parte determinado pelo desfecho em Petrogrado, mesmo apesar do atraso em Moscovo. A revolução de Fevereiro quebrou o velho aparato. O Governo Provisório herdou-o e não o pôde renovar nem fortalecer. Em consequência, o seu aparato estatal funcionou entre Fevereiro e Outubro apenas como uma relíquia da inércia burocrática. A burocracia provincial tinha-se acostumado a fazer o que Petrogrado fazia; fez isso em Fevereiro e repetiu-o em Outubro. Foi para nós uma enorme vantagem estarmo-nos a preparar para derrubar um regime que ainda não tinha tido tempo de se consolidar. A extrema instabilidade e falta de segurança do aparato estatal de Fevereiro facilitou extremamente o nosso trabalho, incutindo autoconfiança nas massas revolucionárias e no próprio partido.

Situação semelhante existiu na Alemanha e na Áustria depois de 9 de Novembro de 1918. No entanto nesse caso a social-democracia preencheu as fendas do aparelho de Estado e ajudou a estabelecer um regime republicano burguês; e embora esse regime não possa ser considerado um modelo de estabilidade, sobreviveu já seis anos.

Quanto aos outros países capitalistas, eles não terão essa vantagem, ou seja, a proximidade de uma revolução burguesa e proletária. O seu Fevereiro já passou há muito tempo. É verdade que na Inglaterra existem muitas relíquias do feudalismo, mas não há absolutamente nenhuma base para falar de uma revolução burguesa independente na Inglaterra. Purgar o país da monarquia, dos Lordes, e do resto, será alcançado pela primeira varredura da vassoura do proletariado inglês quando eles chegarem ao poder. A revolução proletária no Ocidente terá que lidar com um Estado burguês completamente estabelecido. Mas isso não significa que terá de lidar com um aparelho de Estado estável; pois a própria possibilidade de insurreição proletária implica um processo extremamente avançado de desintegração do Estado capitalista. Se no nosso país a Revolução de Outubro se desenrolou na luta contra um aparelho de Estado que não se conseguiu estabilizar depois de Fevereiro, noutros países a insurreição confrontar-se-á com um aparelho de Estado em progressiva desintegração.

Pode-se assumir como regra geral — apontámo-lo no 4º Congresso Mundial da Internacional Comunista — que a força da resistência pré-Outubro da burguesia nos antigos países capitalistas será geralmente muito maior do que no nosso país; será mais difícil para o proletariado obter a vitória; mas, por outro lado, a conquista do poder garantirá imediatamente para eles uma posição muito mais estável e firme do que a que alcançamos no dia seguinte a Outubro. No nosso país, a guerra civil só ganhou real dimensão depois de o proletariado conquistar o poder nas principais cidades e centros industriais e durou os primeiros três anos de governo soviético. Tudo indica que nos países da Europa Central e Ocidental será muito mais difícil para o proletariado conquistar o poder, mas depois da tomada do poder terá uma mão muito mais livre. Naturalmente, essas considerações sobre as perspectivas são apenas hipotéticas. Muito dependerá da ordem em que ocorrem as revoluções nos diferentes países da Europa, das possibilidades de intervenção militar, do poderio económico e militar da União Soviética na época, e assim por diante. Mas, em todo caso, o nosso postulado básico e, acreditamos, incontestável, de que o próprio processo de conquista do poder encontrará na Europa e na América uma resistência muito mais séria, obstinada e preparada das classes dominantes do que foi o nosso caso — torna ainda mais importante para nós ver a insurreição armada em particular e a guerra civil em geral como uma arte.

 

8. Sobre os Sovietes e o Partido na Revolução Proletária

No nosso país, tanto em 1905 quanto em 1917, os sovietes de deputados operários nasceram do próprio movimento como a sua forma natural de organização num determinado estágio da luta. Mas os jovens partidos europeus, que mais ou menos aceitaram os sovietes como uma “doutrina” e um “princípio”, correm o perigo de tratar os sovietes como um fetiche, como algum factor auto-suficiente numa revolução. No entanto, apesar das enormes vantagens dos sovietes como órgãos de luta pelo poder, pode muito bem haver casos em que a insurreição pode desenvolver-se com base noutras formas de organização (Comités de fábrica, sindicatos, etc) e os sovietes podem surgir apenas durante a própria insurreição, ou mesmo depois de se ter alcançado a vitória, como órgãos de poder estatal.

Muito instrutiva deste ponto de vista é a luta que Lenin lançou depois das jornadas de Julho contra o fetichismo da forma organizacional dos sovietes. À medida que os sovietes controlados pelos SRs e mencheviques se tornavam, em Julho, organizações que incitavam abertamente os soldados à ofensiva e esmagavam os bolcheviques, o movimento revolucionário das massas proletárias foi obrigado e compelido a encontrar novos caminhos e canais. Lenin indicou os Comités de fábrica como as organizações de luta pelo poder (ver, por exemplo, as memórias do camarada Ordzhonikidze). É muito provável que o movimento se tivesse desenvolvido nessas linhas se não fosse pela sublevação de Kornilov, que forçou os sovietes conciliacionistas a defenderem-se e possibilitou aos Bolcheviques imbuí-los de um novo vigor revolucionário, ligando-os estreitamente às massas através da ala esquerda, isto é, da ala bolchevique.

Esta questão é de enorme importância internacional, como foi demonstrado pela recente experiência alemã. Foi na Alemanha que os sovietes foram várias vezes criados como órgãos de insurreição sem que ocorresse uma insurreição — e como órgãos do poder de Estado — sem qualquer poder. Isto levou a que em 1923, o movimento amplo de massas proletárias e semi-proletárias se tenha começado a cristalizar em torno dos Comités de fábrica, que cumpriam principalmente todas as funções assumidas pelos nossos sovietes no período anterior à luta directa pelo poder. No entanto, durante Agosto e Setembro de 1923, vários camaradas avançaram com a proposta de que procedêssemos à criação imediata de sovietes na Alemanha. Após uma longa e acalorada discussão, esta proposta foi rejeitada, e com razão. Tendo em vista que os Comités de fábrica já se tinham tornado na prática os centros de mobilização das massas revolucionárias, os sovietes só teriam sido uma forma de organização paralela, sem nenhum conteúdo real, durante a fase preparatória. Os sovietes só poderiam ter desviado a atenção dos alvos materiais da insurreição (exército, polícia, bandos armados, ferrovias, etc.) fixando-a numa forma de organização independente.

E, por outro lado, a criação de sovietes assim, antes e à parte das tarefas imediatas da insurreição, teria significado uma proclamação de guerra aberta. O governo, obrigado a “tolerar” os Comités de fábrica na medida em que estes se tinham tornado centros de mobilização das grandes massas, teria golpeado o primeiro soviete enquanto órgão oficial de uma “tentativa” de tomada do poder. Os comunistas teriam de sair em defesa dos sovietes como entidades puramente organizacionais. A luta decisiva teria estourado não para nos apoderarmos ou defendermos quaisquer posições materiais, nem no momento por nós escolhido — momento em que a insurreição decorreria das condições do movimento de massas — mas teria estourado sobre a “bandeira” dos sovietes, num momento escolhido pelo inimigo e nos imposto.

É bastante claro que todo o trabalho preparatório para a insurreição poderia ter sido realizado com sucesso sob a autoridade dos Comités de fábrica e de lojas, que já se tinham estabelecido como organizações de massa e que estavam a crescer constantemente em número e força, o que permitiria ao partido escolher a data da insurreição. Os sovietes, é claro, teriam de surgir em determinado estágio. É incerto que, nas condições acima mencionadas, tivessem surgido como órgãos diretos da insurreição, a meio do conflito, pelo risco de se criarem dois centros revolucionários no momento mais crítico. Um provérbio inglês diz que não se devem trocar os cavalos ao cruzar um rio. É possível que os sovietes se tivessem formado em todos os pontos decisivos do país após a vitória. Em qualquer caso, uma insurreição triunfante teria levado inevitavelmente à criação de sovietes como órgãos do poder de Estado.

Não nos devemos esquecer que no nosso país os sovietes cresceram na fase “democrática” da revolução, legalizando-se, por assim dizer, nessa fase, e posteriormente sendo herdados e utilizados por nós. Isso não se repetirá nas revoluções proletárias do Ocidente. Lá, na maioria dos casos, os sovietes serão criados em resposta ao apelo dos comunistas; e consequentemente serão criados como órgãos diretos da insurreição proletária. É evidentemente possível que a desintegração do aparelho de estado burguês se torne muito forte antes da conquista do poder pelo proletariado o que criaria as condições para a formação de sovietes como órgãos declarados da preparação da insurreição. Mas não é provável que essa seja a regra geral. Muito provavelmente, apenas será possível criar sovietes nos últimos dias, como órgãos directos das massas insurgentes. Finalmente, é bastante provável que surjam circunstâncias que farão com que os sovietes apareçam, seja depois de que a insurreição tiver passado seu estágio crítico, ou mesmo nos seus estágios finais como órgãos do novo poder de Estado.

Todas estas variantes devem ser mantidas em mente para evitar que caiamos no fetichismo organizacional e para não transformar os sovietes daquilo que deveriam ser, uma forma flexível e viva de luta, num “princípio” organizacional imposto ao movimento a partir do exterior, interrompendo o seu desenvolvimento normal.

Ultimamente tem-se escrito na nossa imprensa que não estamos em posição de dizer por que canais virá a revolução proletária na Inglaterra. Virá pelo canal do Partido Comunista ou pelos sindicatos? Tal formulação da questão mostra uma perspectiva histórica ficticiamente ampla. É radicalmente falsa e perigosa porque oblitera a principal lição dos últimos anos. Se a revolução triunfante não veio com o fim da guerra, foi porque faltava um partido. Esta conclusão aplica-se à Europa como um todo. Pode-se verificar concretamente no destino do movimento revolucionário em vários países.

No que diz respeito à Alemanha, o caso é bastante claro. A revolução alemã poderia ter triunfado tanto em 1918 quanto em 1919, havendo uma direcção do partido adequada. O mesmo aconteceu em 1917 no caso da Finlândia. Aí, o movimento revolucionário desenvolveu-se em circunstâncias excepcionalmente favoráveis, sob a asa da Rússia revolucionária e com a sua assistência militar directa. Mas a maioria da direcção do partido finlandês provou ser social-democrata e arruinou a revolução. A mesma lição se retira da experiência húngara. Lá os comunistas, junto com os social-democratas de esquerda, não conquistaram o poder, este foi-lhes entregue pela burguesia assustada. À revolução húngara — triunfante sem batalha e sem vitória — faltou desde o início uma liderança lutadora. O Partido Comunista fundido com o partido social-democrata, mostrou assim que ele próprio não era um Partido Comunista; e, em consequência, apesar do espírito de luta dos trabalhadores húngaros, mostrou-se incapaz de manter o poder que havia obtido com tanta facilidade.

Sem um partido, à parte de um partido, sobre um partido, ou com um substituto dum partido, a revolução proletária não pode vencer. Essa é a principal lição da última década. É verdade que os sindicatos ingleses podem tornar-se uma poderosa alavanca da revolução proletária. Podem até mesmo tomar o lugar dos sovietes de trabalhadores sob certas condições e por um determinado período de tempo. No entanto não podem cumprir tal papel separadamente de um partido comunista, e certamente não contra o partido, mas apenas na condição de que a influência comunista se torne a influência decisiva nos sindicatos. Pagámos caro demais por esta conclusão — no que diz respeito ao papel e à importância de um partido na revolução proletária — para renunciar a ela de forma tão leviana ou mesmo minimizar o seu significado.

A consciência, a premeditação e o planeamento desempenharam um papel muito menor nas revoluções burguesas do que estão destinados a desempenhar, e já desempenham, nas revoluções proletárias. No primeiro caso, a força motriz da revolução também foi fornecida pelas massas, mas as últimas estavam muito menos organizadas e muito menos conscientes do que atualmente. A direção permaneceu nas mãos de diferentes setores da burguesia, e esta tinha à sua disposição riqueza, educação e todas as vantagens organizacionais a ela relacionadas (as cidades, as universidades, a imprensa, etc.). A monarquia burocrática defendia-se empiricamente, explorando no escuro às apalpadelas e então agindo. A burguesia esperava por um momento favorável em que se pudesse aproveitar do movimento das classes mais baixas para lançar todo o seu peso social na balança e, assim, tomar o poder do Estado. A revolução proletária distingue-se precisamente pelo fato de que o proletariado — através da sua vanguarda — actua nela não apenas como a principal força ofensiva, mas também como a força motriz. O papel desempenhado nas revoluções burguesas pelo poder económico da burguesia, pela sua educação, pelos seus municípios e universidades, é um papel que só pode ser preenchido numa revolução proletária pelo partido do proletariado.

O papel do partido tornou-se tanto mais importante quanto o inimigo se tornou mais consciente. A burguesia, ao longo de séculos de governo, aperfeiçoou uma escola política muito superior à da velha monarquia burocrática. Se o parlamentarismo serviu ao proletariado até certo ponto como uma escola para a revolução, então também serviu à burguesia numa extensão muito maior como a escola da estratégia contra-revolucionária. Basta dizer que por meio do parlamentarismo a burguesia conseguiu formar a social-democracia que hoje é quem sustenta principalmente a propriedade privada. A época da revolução social na Europa, como ficou demonstrado nos seus primeiros passos, será uma época não apenas de luta árdua e implacável, mas também de batalhas planeadas e calculadas — em muito maior grau do que connosco em 1917.

É por isso que exigimos uma abordagem totalmente diferente da actual sobre as questões da guerra civil em geral e da insurreição armada em particular. Seguindo Lenin, todos nós repetimos continuamente as palavras de Marx de que a insurreição é uma arte. Mas essa ideia transforma-se numa frase vazia se a fórmula de Marx não se complementa com um estudo dos elementos fundamentais da arte da guerra civil, com base na vasta experiência acumulada nos últimos anos. É preciso declarar abertamente que a nossa indiferença pelas questões da insurreição armada é testemunho da força considerável que a tradição social-democrata conserva no nosso seio. Um partido que dá uma atenção superficial à questão da guerra civil, na esperança de que tudo se resolva de alguma forma no momento crucial, certamente naufragará. Devemos analisar coletivamente a experiência das lutas proletárias desde 1917.

A história acima esboçada dos agrupamentos do partido em 1917 também constitui parte integrante da experiência da guerra civil e acreditamos que é de importância imediata para as políticas da Internacional Comunista como um todo. Já dissemos, e repetimos, que o estudo das divergências não pode, e não deve em nenhum caso, ser considerado um ataque contra os camaradas que seguiam uma política falsa. Mas, por outro lado, é absolutamente inadmissível apagar o maior capítulo da história do nosso partido simplesmente porque alguns membros do partido não conseguiram acompanhar o passo da revolução proletária.O partido pode e deve conhecer todo o passado, para poder avaliá-lo corretamente e atribuir a cada acontecimento o seu devido lugar. A tradição de um partido revolucionário baseia-se não em subterfúgios, mas na clareza crítica.

A história garantiu ao nosso partido vantagens revolucionárias verdadeiramente inestimáveis. As tradições da luta heróica contra a monarquia czarista, o hábito do sacrifício revolucionário ligado às condições da actividade clandestina, o amplo estudo teórico e assimilação da experiência revolucionária da humanidade, a luta contra o menchevismo, contra os narodniki e contra o conciliacionismo, a experiência suprema da revolução de 1905, o estudo teórico e a assimilação dessa experiência durante os anos de contra-revolução, o exame dos problemas do movimento operário internacional à luz das lições revolucionárias de 1905 — tudo isto no seu conjunto deu ao nosso partido um temperamento revolucionário excepcional, uma clarividência teórica superior e um alcance revolucionário sem paralelo. No entanto, mesmo dentro deste partido, entre seus dirigentes, na véspera de uma ação decisiva, formou-se um grupo de revolucionários experientes, velhos bolcheviques, que se opuseram fortemente à revolução proletária e que, no curso do período mais crítico da a revolução de Fevereiro de 1917 a aproximadamente Fevereiro de 1918, adoptou em todas as questões fundamentais uma posição essencialmente social-democrata. Foi necessário Lenin, e a influência excepcional de Lenin no partido, sem precedentes mesmo naquela época, para salvaguardar o partido e a revolução contra a enorme confusão resultante de tal situação. Isto nunca deve ser esquecido, se quisermos que outros Partidos Comunistas aprendam alguma coisa connosco.

A questão da seleção do dirigentes do partido é de excepcional importância para os partidos da Europa Ocidental. A experiência do abortado Outubro alemão é uma prova chocante disto. Mas essa seleção deve proceder à luz da ação revolucionária. Durante estes últimos anos, a Alemanha ofereceu amplas oportunidades para testar os principais membros do partido em momentos de luta directa. Na falta deste critério, o resto é inútil. A França, durante estes anos, foi muito mais pobre em convulsões revolucionárias — mesmo parciais. Mas mesmo na vida política da França tivemos clarões de guerra civil, momentos em que o Comité Central do partido e a direcção sindical tiveram que reagir em acção a questões inadiáveis ​​e agudas (como a sangrenta reunião de 11 de Janeiro de 1924) Um estudo cuidadoso de tais episódios fornece material insubstituível para a avaliação da direcção de um partido, a conduta de vários órgãos do partido e membros dirigentes individuais. Ignorar essas lições é não tirar delas as conclusões necessárias quanto à escolha de personalidades, é convidar a derrotas inevitáveis, pois sem uma direção perspicaz, decidida e corajosa, a vitória da revolução proletária é impossível.

Cada partido, mesmo o partido mais revolucionário, produz inevitavelmente um conservadorismo organizacional, pois de outra forma não teria a estabilidade necessária. Mas, a este respeito, é tudo uma questão de grau. Num partido revolucionário deve combinar-se a dose necessária de conservadorismo com uma ausência de rotina, com iniciativa na orientação e ousadia na ação. Estas qualidades são submetidas ao teste mais severo durante os momentos decisivos da história. Já citámos as palavras de Lenin de que mesmo os partidos mais revolucionários, quando ocorre uma mudança abrupta numa situação e quando novas tarefas surgem como consequência, frequentemente seguem a linha política de ontem e assim tornam-se, ou ameaçam tornar-se, um freio ao processo revolucionário. Tanto o conservadorismo quanto a iniciativa revolucionária encontram a sua expressão mais concentrada nos órgãos dirigentes do partido. Os partidos Comunistas europeus ainda terão que enfrentar o seu “ponto de inflexão” mais agudo — a passagem do trabalho preparatório para a tomada real do poder. Esta mudança é a mais exigente, a mais inadiável, a mais responsável e a mais formidável. Perder o momento da mudança é incorrer na maior derrota que um partido pode sofrer.

A experiência das lutas europeias, e sobretudo das lutas na Alemanha, quando vistas à luz da nossa própria experiência, diz-nos que existem dois tipos de dirigentes que tendem a arrastar o partido de volta para trás precisamente no momento em que deve dar em frente o maior salto. Os primeiros tendem a ver principalmente as dificuldades e obstáculos no caminho da revolução, e a avaliar cada situação com uma intenção pré-concebida, embora nem sempre consciente, de evitar qualquer ação. O marxismo nas suas mãos transforma-se num método para estabelecer a impossibilidade de ação revolucionária. Os espécimes mais puros deste tipo são os mencheviques russos. Mas esse tipo como tal não se limita ao menchevismo e, no momento mais crítico, manifesta-se repentinamente em cargos de responsabilidade no partido mais revolucionário.

Os segundos distinguem-se pela sua abordagem superficial e agitadora. Nunca vêem nenhum obstáculo ou dificuldade até colidirem de frente com eles. A capacidade de superar obstáculos reais através de frases bombásticas, a tendência a demonstrar elevado optimismo em todas as questões (“a profundidade do oceano é da altura dos joelhos”), transforma-se inevitavelmente no seu polo oposto quando chega a hora da acção decisiva.

Para o primeiro tipo de revolucionário, que faz de pequenos montes montanhas, as dificuldades da conquista do poder constituem a acumulação e multiplicação de todas as dificuldades que está habituado a encontrar no seu caminho. Para o segundo tipo, o optimista superficial, as dificuldades da ação revolucionária são sempre uma surpresa. No período preparatório, o comportamento dos dois é diferente: o primeiro é um céptico em quem não se pode confiar muito, num sentido revolucionário, o segundo, pelo contrário, pode parecer um revolucionário fanático. Mas, no momento decisivo, os dois marcham de mãos dadas: ambos se opõem à insurreição. Entretanto, todo o trabalho preparatório só tem valor na medida em que torna o partido e sobretudo os seus órgãos dirigentes capazes de determinar o momento de uma insurreição e de assumir a sua direção. Pois a tarefa do Partido Comunista é a conquista do poder com o objetivo de reconstruir a sociedade.

Muito se tem falado e escrito ultimamente sobre a necessidade de “bolchevizar” a Internacional Comunista. Esta é uma tarefa incontestável e inadiável, que se torna particularmente urgente depois das lições cruéis da Bulgária e da Alemanha há um ano. O bolchevismo não é uma doutrina (ou seja, não é apenas uma doutrina), mas um método de educação revolucionária para realizar a revolução proletária. O que significa a bolchevização dos partidos comunistas? Significa educá-los e selecionar uma equipa de dirigentes que não vacilem quando chegar o momento do seu Outubro. "Isto é todo o Hegel, e a sabedoria dos livros, e o significado de toda a filosofia...".

 

9. Breve Comentário Sobre Este Livro

A fase inicial da revolução “democrática” estende-se da Revolução de Fevereiro à crise de Abril e a sua solução a 6 de Maio com a formação de um governo de coligação com a participação dos mencheviques e narodniki. Em toda esta fase inicial, o escritor não participou directamente, chegando a Petrogrado apenas no dia 5 de Maio, véspera da formação do governo de coligação. A primeira etapa da revolução e as perspectivas revolucionárias foram tratadas por mim em artigos escritos na América. Na minha opinião, em todos os pontos fundamentais, estes artigos estão em completa harmonia com a análise da revolução feita por Lenin nas suas Cartas de Longe.

Desde que cheguei a Petrogrado o meu trabalho desenvolveu-se em plena coordenação com o Comité Central dos Bolcheviques. Naturalmente apoiei o curso de Lenin rumo à conquista do poder pelo proletariado. No que dizia respeito ao campesinato, não havia nem sequer sombra de desacordo entre Lenin e eu. Lenin naquela época estava a terminar a primeira etapa da sua luta contra os bolcheviques de direita e a sua palavra de ordem, “Ditadura democrática do proletariado e do campesinato”. Antes da minha entrada formal no partido, participei da redação de uma série de resoluções e documentos emitidos em nome do partido. Aquilo que atrasou a minha entrada formal no partido por três meses foi o desejo de acelerar a fusão dos melhores elementos da Organização Inter-Distrital [41], e dos revolucionários internacionalistas em geral, com os bolcheviques. Esta política também foi executada por mim em total acordo com Lenin.

Os editores deste volume chamaram-me a atenção para o facto de que num dos artigos que escrevi naquela época em favor da unificação, há uma referência ao “clã” organizacional dos bolcheviques. Claro que alguns pensadores tão profundos como o camarada Sorin não perderão tempo em ligar esta expressão às divergências sobre o primeiro parágrafo dos estatutos do partido. Não vejo necessidade de me envolver numa discussão sobre este assunto, particularmente tendo em conta que admiti tanto verbalmente quanto em acção os meus principais erros organizacionais. Um leitor menos perverso encontrará, no entanto, uma explicação muito mais simples e imediata para a expressão citada acima. Devem ser levadas em consideração as condições concretas daquela época. Entre os trabalhadores da Organização Inter-Distrital ainda existia uma forte desconfiança das políticas organizacionais do Comité de Petrogrado [42]. Argumentos baseados em “clanismo” — reforçados, como sempre em tais circunstâncias, por referências de todo o tipo de “injustiça” — eram comuns entre eles. Refutei esses argumentos da seguinte maneira: o caráter de “clã”, como uma herança do passado, ainda existe, mas para que diminua, os trabalhadores da Organização Inter-Distrital devem deixar de manter uma existência isolada.

A minha "proposta" puramente polémica ao 1º Congresso dos Sovietes de formar um governo de doze Peshekhonovs foi interpretada por algumas pessoas — por Sukhanov, creio eu — como expressão de uma inclinação pessoal por Peshekhonov ou como intenção de avançar uma linha política distinta da de Lenin. É claro que isso é um absurdo. Quando o nosso partido exigiu que os sovietes liderados pelos mencheviques e SRs assumissem o poder, “exigiu” um governo composto por Peshekhonovs. Em última análise, não havia diferenças fundamentais entre Peshekhonov, Chernov e Dan. Todos foram igualmente úteis para facilitar a transferência de poder da burguesia para o proletariado. Pode ser que Peshekhonov estivesse mais familiarizado com estatísticas e causasse uma impressão um pouco melhor como homem prático do que Tseretelli ou Chernov. Uma dúzia de Peshekhonovs significava um governo composto por uma dúzia de vigorosos representantes da democracia pequeno-burguesa em vez de uma coligação. Quando as massas de Petersburgo, lideradas pelo nosso partido, levantaram a palavra de ordem: “Abaixo os dez ministros capitalistas!” assim, exigiram que os cargos desses ministros fossem ocupados por mencheviques e narodniki. “Srs. democratas burgueses, expulsem os cadetes! Assumam o poder com as vossas próprias mãos! Coloquem no governo doze (ou tantos quantos tiverem) Peshekhonovs, e nós prometemo-vos, na medida do possível, removê-los “pacificamente” dos seus postos quando chegar a hora, o que deve ser muito em breve!” Não havia nenhuma linha política especial aqui, era a mesma linha que Lenin formulou repetidas vezes.

Considero necessário sublinhar enfaticamente a advertência do camarada Lentsner, editor deste volume. Como ele aponta, o grosso dos discursos contidos neste volume foi reimpresso não de notas estenográficas, mesmo defeituosas, mas de relatos feitos por repórteres da imprensa conciliadora, meio ignorantes e meio maliciosos. Uma inspeção superficial de vários documentos desse tipo levou-me a rejeitar imediatamente o plano original de corrigi-los e complementá-los até certo ponto. Deixem-nos permanecer como estão. Também eles, à sua maneira, são documentos da época, embora vindo “do outro lado”.

O presente volume não teria sido impresso se não fosse pelo trabalho cuidadoso e competente do camarada Lentsner, que também é responsável por compilar as notas, e dos seus assistentes, camaradas Heller, Kryzhanovsky, Rovensky e I. Rumer.

Aproveito a oportunidade para lhes expressar a minha gratidão. Gostaria de chamar especial atenção para o enorme trabalho realizado na preparação deste volume, bem como dos meus outros livros pelo meu colaborador mais próximo, M.S. Glazman. Concluo estas linhas com sentimentos de profunda tristeza pela morte extremamente trágica deste esplêndido camarada, trabalhador e homem.

Kislovodsk, 15 de Setembro de 1924.

 


Notas:


1. As Lições de Outubro foi publicado em Outubro de 1924 como prefácio de Trotsky à edição russa de dois volumes de recompilação dos seus escritos no primeiro ano da revolução, que tinham por título “1917”. As idéias contidas no prefácio foram expressas por muitos desde 1917, mas na vida de Lenin a firmeza bolchevique de Trotsky nunca foi questionada. A troika Stalin-Zinoviev-Kamenev, que assumiu o controle do Partido Bolchevique, tomou esse prefácio como um pretexto para lançar o fantasma do "trotskismo" em campo aberto. Quando Zinoviev rompeu com Stalin, admitiu que, devido às exigências das suas manobras para tomar o poder, sugeriu vincular as diferenças específicas do momento às discussões do passado. Trotsky deveria ser acusado de tentar desfigurar o leninismo. No curso do ataque às Lições de Outubro (que ficou conhecido como "discussão literária"), Trotsky foi acusado de pessimismo e aventureiro, de desvio pequeno-burguês e de subestimar o campesinato. Secretamente, Zinoviev e Kamenev propuseram que Trotsky fosse expulso do partido. Mas, agindo então com muita cautela, Stalin vetou a idéia. Todo o aparato do Estado e da Internacional Comunista, no entanto, foi acionado para isolar Trotsky e aterrorizar os seus partidários. A resolução oficial que encerra a "discussão" indicava que deveria ser realizada uma campanha sistemática no partido para o educar contra o carácter "pequeno-burguês" e "anti-bolchevique" do trotskismo, que existia desde 1903. As notas são da Esquerda Revolucionária Internacional, excepto quando se indique outra autoria.

2. Em junho de 1923, o governo búlgaro do dirigente camponês Stamboliyski foi derrubado militarmente por forças reacionárias lideradas por Tsankov, mais tarde chefe do fascismo búlgaro. Caracterizando a situação como uma luta entre as camarilhas burguesas e ignorando tanto a questão agrária quanto a nacional (a minoria macedónia), o Partido Comunista declarou-se neutro. Uma vez triunfante, o regime de Tsankov submeteu o Partido Comunista da Bulgária a uma feroz perseguição, declarando-o ilegal. Kolarov, representante dos comunistas búlgaros em Moscovo, negou, no entanto, que o partido tivesse sofrido uma derrota. Em Setembro do mesmo ano, sem compreender a mudança produzida na situação fruto da passividade de Junho, os comunistas tentaram um golpe aventureiro. Naturalmente, fracassou por completo.

3. Trotsky refere-se ao fracasso da revolução alemã em 1923. Como conseqüência dos ataques imperialistas e da ocupação da área do Ruhr pelo exército francês, uma nova crise revolucionária eclodiu. A resposta dos trabalhadores alemães foi contundente: grandes greves de massa foram organizadas e um poderoso movimento sindical emergiu. Os trabalhadores alemães voltaram-se para os comunistas, que conquistaram a maioria em numerosos sindicatos. Brigadas armadas também começaram a formar-se. O Partido Social-Democrata da Alemanha estava desorientado e a burguesia profundamente dividida. Era hora de uma estratégia clara para tomar o poder. Mas quando a iniciativa e a determinação prática da liderança revolucionária foram necessárias para levar o movimento à vitória, o Partido Comunista Alemão (KPD) mostrou-se incapaz de assumir as suas tarefas. Em vez de conquistar — por via de uma política vigorosa — a base descontente da social-democracia, que olhava com extraordinária simpatia para os comunistas, a direção do KPD hesitou, agarrando-se formalmente às táticas da Frente Unida, sem perceber que naquele momento as circunstâncias haviam-se alterado e era necessário passar à ofensiva. Por seu lado, os conselhos dos dirigentes da Terceira Internacional que seguiam os eventos na Alemanha, Stalin e Zinoviev, a favor de interromper a ação revolucionária foram completamente desastrosos: os trabalhadores alemães sofreram a terceira derrota em apenas cinco anos. .

4. O III Congresso da Internacional Comunista foi realizado em junho de 1921. Como resultado da profunda discussão sobre a ação de Março do Partido Comunista Alemão, o congresso finalmente adoptou o seguinte slogan: “Rumo ao poder através da conquista prévia das massas”, lançando os fundamentos da política da Frente Unida. Esta posição foi adotada com o apoio de Lenin e Trotsky, e contra a opinião dos elementos ultra-esquerdistas e putchistas. A justificativa para a ação de Março de 1921, conhecida como a teoria da ofensiva, era "eletrizar" as massas passivas por meio da ação de uma minoria insurrecional. As massas social-democratas mostrara-se hostis ou indiferentes à insurreição e esta foi vencida militarmente, isolada como um levantento armado da vanguarda dos trabalhadores de Hamburgo.

5. A Revolução de 1905 foi a consequência imediata da derrota da Rússia na guerra contra o Japão (1904-1905), que desgastou seriamente a autocracia. No primeiro ano da guerra 25.000 trabalhadores fizeram greve, mas em 1905 uma onda de greves políticas e económicas elevou esse número para 2.863.000. Irromperam revoltas camponesas para tomar a terra. Aproveitando o movimento das massas, a burguesia liberal exigiu que a monarquia concedesse um governo constitucional. Os trabalhadores organizaram-se independentemente da burguesia nos sovietes, que se transformaram em instrumentos da greve geral e órgãos do poder operário. A dada altura os soviéticos ameaçaram directamente o poder da monarquia. Quando os liberais constataram que o czarismo estava demasiado ffraco e que a luta revolucionária levaria à sua destruição, traíram o movimento, facilitando assim à monarquia a sangrenta liquidação da revolução.

6. V. I. Lenin, A propósito das Palavras de Ordem, Obras Completas, Tomo 34, página 12, Ed. Progresso, Moscovo, 1985.

7. O Grupo de Emancipação do Trabalho foi fundado por Plekhanov, Axelrod, Vera Zasulich, Deutsch e Ignatov, exilados russos na Suíça, após o seu rompimento com os narodniki em 1883. Foi a primeira organização social-democrata russa e dissolveu-se com a fundação do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR).

8. Os mencheviques eram a tendência minoritária que surgiu no congresso do POSDR de 1903, em oposição à maioria bolchevique. Ideologicamente ligados aos líderes reformistas da Segunda Internacional, eles defenderam a inevitabilidade de um longo período de domínio capitalista na Rússia antes que o proletariado pudesse considerar a tomada do poder. Segundo eles, as contradições entre a burguesia e a autocracia czarista levariam à realização de uma revolução democrático-burguesa clássica, sendo o papel do partido operário subordinar-se à burguesia, garantindo a liquidação do czarismo e os vestígios do antigo regime feudal e tornar-se a oposição política dentro da república democrática. Estas posições tornaram-se evidentes durante a Revolução Russa, quando os capitalistas demonstraram a sua incapacidade de resolver tarefas democráticas e levaram os mencheviques a tornar-se um dos principais apoiantes do governo provisório, opondo-se abertamente à insurreição de Outubro.

9. “As leis da história não têm nada em comum com o esquematismo pedante. O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, em nenhum lugar nos é revelado com tamanha evidências e complexidade como nos países atrasados. Assolados pelo chicote da necessidade material, os países atrasados ​​são forçados a saltar para a frente. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura deriva outra que, na falta de um nome mais adequado, qualificaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das diferentes etapas do caminho, à combinação das diferentes fases e ao amálgama nas formas arcaicas e modernas ”(Trotsky, História da Revolução Russa).

10. Observações de Lenin sobre o duplo poder: “A questão fundamental em qualquer revolução é a do poder estatal. Enquanto isso não for bem entendido, ninguém pode pretender participar consequentemente da revolução e muito menos liderá-la (...). O que é a dualidade de poderes? Consiste no fato de que ao lado do Governo Provisório, o governo da burguesia, se desenvolveu outro ainda fraco, embrionário, mas sem dúvida um governo real e crescente: os Sovietes de Deputados Operários e Soldados (...). Este poder é do tipo da Comuna de Paris, de 1871. As características fundamentais deste tipo de poder são: 1) a sua origem não está nas leis previamente discutidas e aprovadas pelo parlamento, mas na iniciativa directa das massas, na tomada directa do poder, para usar uma expressão popular; 2) em vez da polícia e do exército, instituições separadas do povo e opostas ao povo, existe o armamento direto de todo o povo; a ordem do governo é assim assegurada pelos próprios trabalhadores e camponeses armados, pelo próprio povo armado; 3) a burocracia oficial também é substituida pelo governo direto do povo, ou, pelo menos, colocada sob controle especial; Não só se tornam funcionários eleitos pelo povo, mas estão sujeitos à confirmação do povo, são reduzidos à categoria de representantes diretos; uma camada privilegiada com salários suculentos transforma-se em trabalhadores qualificados que usam certas ferramentas, recebendo salários que não excedem os recebidos por trabalhadores qualificados comuns ”(Pravda, nº 28, 9 de Abril de 1917).

11. Membros do Partido Socialista Revolucionário, que teve como origem os narodniki. O seu programa pedia a "constituição de um governo popular livre, a nacionalização da terra e a nacionalização de todas as grandes indústrias". A sua diversidade ideológica interna era um reflexo da enorme heterogeneidade do campesinato e da sua falta de independência política. A ala direita, maioritária, converteu-se no cão de fila da burguesia, participando do Governo Provisório. A ala esquerda dividiu-se e participou com os bolcheviques no governo soviético de Outubro até a assinatura da paz de Brest-Litovsk, que os levou a passar à oposição.

12. As jornadas de Julho englobam os eventos políticos desencadeados após a manifestação armada organizada em Petrogrado, em julho de 1917, por um amplo sector da vanguarda dos trabalhadores e pelas unidades revolucionárias do exército, principalmente o Regimento de Metralhadoras, contrárias à política conciliatória do governo Kerensky. Os bolcheviques tentaram convencer os soldados e trabalhadores de que a ação era prematura, mas não a conseguiram impedir. Kérenski aproveitou-se desta para desencadear uma campanha repressiva brutal contra o Partido Bolchevique, levando à prisão de vários dirigentes, entre eles Trotsky. Lenin passou à clandestinidade.

13. Narodniki (populistas): denominação que se dava aos anarquistas russos. Em 1876 organizaram o grupo Zemlia i Volia (Terra e Liberdade), no qual se começaram a desenvolver tendências políticas contraditórias. Em 1879, a organização dividiu-se em duas: Naródnaya Volia (Vontade do Povo) e Cherny Peredel (Repartição Negra), alusão à demanda pela distribuição de terras entre os "negros", os servos), liderados por Georgi Plekhanov. A primeira desviou-se para o terrorismo individual e foi esmagada após o assassinato do czar Alexandre II (1881); O irmão mais velho de Lenin pertencia a esse partido e foi executado com outros militantes em 1887, após uma tentativa fracassada de assassinar Alexandre III. Os sobreviventes formariam mais tarde o partido SR, razão pela qual seus membros também são chamados populistas (narodniki).

14. O defensismo revolucionário era a justificação, com argumentos supostamente revolucionários, para a continuação da Rússia na Primeira Guerra Mundial. A burguesia, e com ela os SRs e os mencheviques, argumentavam que era necessário defender as conquistas da Revolução de Fevereiro contra a autocracia militar alemã, ocultando assim os interesses materiais e predatórios que tanto a burguesia russa como os imperialistas franceses e britânicos tinham, unidos aos primeiros por milhares de laços. Lenin opôs-se ao defensismo com uma postura de derrotismo revolucionário. Ou seja, o caráter da guerra imperialista não havia mudado e "a derrota da Rússia é um mal menor" se o triunfo for alcançado mediante a união do proletariado com a burguesia. O Pravda, antes da chegada de Lenin à Rússia, defendia que "todo o derrotismo morreu desde o momento em que o primeiro regimento revolucionário apareceu nas ruas de Petrogrado".

15. Lenin chegou a Petrogrado na noite de 3 de abril de 1917. No dia seguinte, Zinoviev informou o Comité Executivo Soviético de Petrogrado das circunstâncias da viagem da Suíça, através da Alemanha, no famoso comboio blindado. Trinta e dois emigrantes políticos pertencentes a diferentes partidos fizeram a viagem. Fritz Platten, socialista suíço, tratou da papelada. Foi alcançado um acordo por escrito com o embaixador alemão na Suíça, cujos principais pontos foram os seguintes: 1) Todos os emigrantes, independentemente de sua opinião sobre a guerra, teriam o direito de viajar; 2) O vagão ocupado pelos emigrantes teria o privilégio de extraterritorialidade; ninguém teria o direito de entrar sem a permissão de Platten; não haveria controlo de passaportes ou bagagem; 3) Os viajantes comprometiam-se a tentar retribuir em número igual prisioneiros de guerra austro-húngaros e alemães na Rússia.

16. A Conferência de Abril dos bolcheviques realizou-se em Petrogrado, de 24 a 29 desse mês. A ordem de trabalhos incluía: a situação política (perspectivas da Revolução Russa), a guerra, os trabalhos preparatórios para a formação da Terceira Internacional, a questão agrária, o programa e a questão nacional. Muito poucas anotações foram feitas sobre os debates, mas foi provavelmente a conferência mais decisiva da história do partido. A linha seguida por Stalin e Kamenev, antes do regresso de Lenin à Rússia, foi substituída pela estratégia que levou à tomada do poder. Stalin via a diferença entre os sovietes e o Governo Provisório simplesmente como uma divisão do trabalho. Ele considerava o Governo Provisório, segundo as suas próprias palavras, como uma entidade que deveria “ratificar as conquistas do povo revolucionário”. Defendia ainda a reunificação com os mencheviques. "Devemos fazê-lo. É necessário definir a nossa posição como base para uma união; a união é possível na base de Zimmerwald-Kienthal (...). Vamos deixar de lado pequenas divergências dentro do partido". Nas Teses de Abril, Lenin fez uma crítica devastadora a essas posições conciliadoras. “Até os nossos bolcheviques mostram alguma confiança no governo. Isso só se explica pela intoxicação da revolução. É a morte do socialismo. Camaradas, você tem uma atitude de confiança em relação ao governo. Se assim é, os nossos caminhos separam-se. Eu prefiro permanecer em minoria.”

17. O "economismo" foi uma variante reformista da social-democracia russa nos seus primórdios. Defendia que a luta por reivindicações económicas era suficiente para desenvolver espontaneamente o movimento de massas, e o partido revolucionário deveria limitar-se a agitar por essas reivindicações. Lenin criticou fortemente essa posição no seu livro “O que fazer?” por idealizar o atraso da classe trabalhadora, subestimando as suas tarefas políticas e a necessidade de organizar um partido revolucionário.

18. Pravda (Verdade) era o órgão do Comité Central bolchevique.

19. Pravda nº 9, 15 de Março de 1917: Nenhuma diplomacia secreta.

20. O czar foi preso em Fevereiro de 1917, abdicando em favor do grão-duque Michael, como regente. Este último, porém, prudentemente preferiu renunciar. O Comité Provisório da Duma Imperial, com o consentimento do Comitê Executivo do Soviete de Petrogrado, formou um Governo Provisório chefiado pelo Príncipe Lvov. O líder da burguesia liberal, Milyukov, tornou-se Ministro dos Negócios Estrangeiros, Guchkov Ministro da Guerra e Kerensky da Justiça. O governo provisório continuou a política imperialista do czar. Milyukov declarou-se a favor da anexação de Constantinopla e de levar a guerra ao triunfo final. O ressentimento das massas foi manifestado nas manifestações de Abril em Petrogrado, exigindo a renúncia de Milyukov. Mas, liderado pelos conciliadores menchevique e SR, o soviéte tentou parar as massas. Sentindo, no entanto, que o chão tremia sob os seus pés, o Governo Provisório convidou o Comitê Executivo Central dos Sovietes a formar um governo de coligação. Com a oposição dos bolcheviques, o Comitê Executivo aceitou. Milyukov e outros renunciaram. A 18 de Maio, o segundo Governo Provisório (primeira coligação) foi formado, com Kerensky como Ministro da Guerra. Chernov, SR, foi designado ministro da Agricultura; os mencheviques Skobelev, do Trabalho, e Tsereteli, dos Correios e Telégrafos; o populista Ryajanov, da Alimentação. O Comité Executivo dos Sovietes justificou a coligação com o argumento de que a paz seria alcançada e a democracia se consolidaria. Na realidade, a coligação continuou a guerra e incentivou a reação. O governo não podia representar os interesses das classes conflitantes ao mesmo tempo. A crise aumentava e a burguesia sabotava a produção. Cinco ministros kadetes (liberais burgueses) renunciaram. A resolução das questões importantes foi adiada para a Assembléia Constituinte, que por sua vez foi postergada. A 20 de Julho, o príncipe Lvov renunciou e Kerensky assumiu o cargo de primeiro-ministro, mantendo o Ministério da Guerra.

21. A 14 de Março, o Comité Executivo Central dos Sovietes lançou um manifesto por uma “paz democrática”, que poderia ser perfeitamente aceite pelo presidente britânico Lloyd George e não diferia em nada da retórica do estado-unidense Woodrow Wilson. O verdadeiro controlo da política externa estava nas mãos do político burguês Milyukov, que perseguia os velhos objetivos imperialistas da Rússia czarista.

22. Pravda nº 10, 16 de Março de 1917.

23. Lenin escreveu as Cartas de Longe na Suíça entre 2 e 8 de Abril de 1917. Só a primeira (“A primeira etapa da primeira revolução”) chegaria a Petrogrado para ser publicada nos números 14 e 15 do Pravda. O resto apareceu pela primeira vez em 1924, no segundo volume de suas obras completas (edição russa). A quinta carta (“As tarefas envolvidas na construção do Estado proletário revolucionário”), iniciada a 8 de Abril, dia da saída de Lenin da Suíça, nunca foi concluída.

24. Manifestação armada espontânea de 25.000 soldados apoiados por trabalhadores, com a palavra de ordem "Renúncia de Milyukov". O Comité Central bolchevique, já orientado por Lenin, publicou posteriormente uma resolução que dizia: “A palavra de ordem 'Abaixo o Governo Provisório' está incorrecta neste momento porque sem um apoio sólido (isto é, consciente e organizado) da maioria da população à revolução proletária, tal palavra de ordem ou é uma frase vazia ou conduz a tentativas de carácter aventureiro ”. A resolução também estabelecia que a tarefa do partido na altura consistia em produzir crítica e propaganda, assim como ganhar a maioria nos sovietes, como prelúdio para a tomada do poder.

25. Louis-Auguste Blanqui (1805-81), revolucionário e representante do comunismo utópico francês, defendia a tomada do poder através da luta armada de uma minoria. O marxismo considera, como o blanquismo, que a insurreição é uma arte, mas difere dela nas condições em que deve ser realizada. “A insurreição”, escreveu Lenin, “para poder triunfar, não deve apoiar-se numa conspiração, num partido, mas da classe da vanguarda. Isso em primeiro lugar. Em segundo lugar, deve apoiar-se no entusiasmo revolucionário do povo. E em terceiro lugar, deve apoiar-se no momento crítico do desenvolvimento da revolução crescente, quando seja mair a actividade de vanguarda do povo, quando sejam maiores as vacilações nas fileiras dos inimigos e nas fileiras dos amigos débeis, inconsequentes e indecisos da revolução. Estas três condições ao colocar o problema da insurreição são precisamente aquelas que diferenciam o marxismo do blanquismo ”(Lenin, Marxismo e Insurreição, carta ao Comité Central do POSDR (b), 13-14 de Setembro de 1917, Obras Escolhidas, Volume 34, página 250, Ed Progresso, Moscovo, 1985).

26. “A reivindicação da reunião de uma Assembleia Constituinte fazia parte, no passado, com todo o direito, do programa da social-democracia revolucionária, porque numa república burguesa a Assembleia Constituinte constitui a forma suprema de democracia» escreveu Lenin nas suas “Teses Sobre a Assembleia Constituinte”, a 8 de Janeiro de 1918. Enquanto insistiam que a Assembleia Constituinte deveria reunir-se, os bolcheviques enfatizavam que uma república dos sovietes era uma forma de democracia superior à república burguesa. Depois que os sovietes tomarem o poder em Outubro, a Assembléia Constituinte perdeu o seu significado. Quando se reuniu a 18 de Janeiro, durou um único dia. A sua composição, maioritariamente de SRs de direita, era um reflexo da situação política anterior à deslocação das massas em direção às posições do bolchevismo. Depois da Assembleia se ter recusado a aceitar os principais decretos aprovados pelo Segundo Congresso dos Sovietes após o triunfo da Revolução de Outubro, os bolcheviques e os SRs de esquerda deixaram a sessão denunciando a maioria da Assembleia como contra-revolucionária. No mesmo dia, a Assembleia foi dispersa e a 19 de Janeiro o governo soviético dissolveu-a oficialmente.

27. Zemstvos: governos municipais e provinciais instituídos em 1864 na Rússia. Foi uma das reformas liberais do czar Alexandre II, paralela à abolição formal da servidão.

28. Kadetes: Membros do Partido Constitucional Democrata (formalmente, Partido da Liberdade do Povo), assim chamados pela sigla em russo (KDT). Principal partido da burguesia liberal monárquica russa, fundada em 1905 por elementos da burguesia, latifundiários dos zemstvos e intelectuais burgueses. Apoiaram a repressão czarista contra a revolução de 1905. Durante a Primeira Guerra Mundial, apoiaram a política anexionista do czar. Após a revolução de Fevereiro desempenharam um papel importante no Governo Provisório. Depois de Outubro tornaram-se os inimigos mais amargos dos bolcheviques, participando de todas as ações armadas contra-revolucionárias e nas campanhas militares dos imperialistas. O seu principal dirigente era Milyukov.

29. Refere-se à Conferência de Zimmerwald. A I Conferência Socialista Internacional foi realizada de 5 a 8 de Setembro de 1915 em Zimmerwald (Suíça). Nesta, os internacionalistas revolucionários, liderados por Lenin, e a tendência impregnada pelo espírito conciliatório e pacifista de Kautsky, que havia rompido na Alemanha com a maioria parlamentar do SPD, entraram em choque. Lenin e outros internacionalistas revolucionários formaram a chamada esquerda zimmerwaldiana, defendendo o derrotismo revolucionário. Trotsky, que na época ainda não se alinhava organicamente com os bolcheviques, redigiu o manifesto da Conferência, no qual a guerra mundial era descrita como imperialista, condenando a conduta dos "socialistas" que haviam votado a favor dos créditos de guerra e entrado em governos burgueses, e fez-se um apelo ao movimento operário europeu para lutar contra a guerra e por uma paz sem anexações nem compensações.

30. Em apoio a um comité conjunto dos partidos socialistas escandinavos, o diretor do Social Demokraten, Borgbjer, enviou um convite ao Comitê Executivo dos Sovietes para participar de uma conferência internacional de paz, a ser realizada em Estocolmo. Os mencheviques e os SRs concordaram em participar, assim como os social-democratas alemães Hase, Kautsky e Ledebour. Os socialistas franceses e britânicos rejeitaram o convite por razões patrióticas. A Conferência dos Bolcheviques de Abril rejeitou o projeto de acordo com a proposta de Lenin, porque ser um movimento político do imperialismo alemão, feito através de governos socialistas, para obter condições mais vantajosas de paz. Apenas Kamenev apoiou a participação.

31. Após a Conferência de Estado de Moscovo, a 26 de Agosto de 1917, convocada por Kerensky como parte de sua política bonapartista de "expandir a base" do governo provisório, os elementos mais reacionários do país prepararam um golpe de Estado contra os sovietes. A Conferência foi profundamente contra-revolucionária. A sua posição era de que o Governo Provisório carecia de poder suficiente, implicando que os sovietes tinham demasiado. As coisas precipitaram-se quando, a 2 de Setembro, os alemães desencadearam sua ofensiva na frente de Dvina e capturaram Riga. Ficou provado que Kornilov desprotegeu a frente russa para criar um ambiente de pânico, favorecendo a atmosfera necessária para o golpe militar. O seu plano consistia em marchar sobre Petrogrado e usar os cossacos para desarmar as massas. Mas o soviete de Petrogrado forçou Kerenski a emitir um mandado de prisão para Kornilov. Este marchou sobre Petrogrado para estabelecer uma ditadura militar. As massas mobilizaram-se imediatamente e Kornilov foi derrotado. O prestígio dos bolcheviques cresceu e Trotsky foi eleito Presidente do Soviete de Petrogrado.

32. A Conferência Democrática foi decidida nos dias da sublevação de Kornilov com o objectivo de assinalar a decrescente autoridade dos partidos conciliadores e justificar a sua coaligação com a burguesia. Foi planeado por Tsereteli como um meio de dividir os bolcheviques e na esperança de que servisse de contrapeso aos sovietes. Na conferência, os bolcheviques eram minoria, uma vez que os representantes foram cuidadosamente selecionados nos zemstvos e noutras instituições burguesas. Os delegados dos sovietes não tinham nenhum peso. Trotsky propôs que todo o poder fosse transferido para os sovietes, mas foi derrotado. Antes da dissolução, a Conferência designou um comité permanente, composto por 15% dos representantes de cada grupo, para formar um Conselho da República ou Pré-Parlamento, que funcionaria até a Assembleia Constituinte. Numa reunião dos delegados bolcheviques, Trotsky propôs boicotar o Pré-Parlamento, porque não representava o verdadeiro equilíbrio de forças e era uma maneira de colocar os soviéticos em xeque. Não conseguir a maioria, mas Lenin, que estava na clandestinidade, apoiou a sua posição, expressando que o Pré-Parlamento era uma "farsa". Foi quando Lenin escreveu: “Trotsky está pelo boicote. Bravo, camarada Trotsky! ” Na primeira sessão do Pré-Parlamento, Trotsky declarou que este estava nas mãos da burguesia e contra a revolução. Os bolcheviques abandonaram-no depois de lerem uma declaração, e decidiram convocar o Congresso dos Sovietes.

33. Tratado de Brest-Litovsk: Tratado de paz que o governo bolchevique assinou com a Alemanha e a Áustria-Hungria a 3 de Março de 1918. A delegação soviética encarregada das negociações foi inicialmente encabeçada por Adolf Ioffe e mais tarde por Leon Trotsky.
As negociações de paz causaram uma grave crise política no governo soviético e na liderança do partido bolchevique. Os SRs da esquerda, que formaram uma aliança precária com os bolcheviques, usaram-no como desculpa para deixar o governo, chamar à "guerra revolucionária" contra a Alemanha e lançar uma tentativa insurrecional de depor os bolcheviques, que rapidamente fracassou.
Na direcção bolchevique, a paz com a Alemanha levou à formação de três blocos: o liderado por Lenin, que pedia a assinatura imediata da paz, acreditando que a desmoralização das tropas russas tornaria impossivel uma resistência séria no caso de uma ofensiva alemã, que colocaria em risco a revolução; para Lenin, qualquer concessão territorial era melhor do que aceitar a perda de poder e permitiria a compra de tempo até a revolução alemã. O segundo bloco foi liderado por Trotsky, que, entendendo e apoiando as idéias e argumentos de Lenin, viu a possibilidade de prolongar as negociações e usá-las para realizar propaganda revolucionária entre os trabalhadores da Alemanha e da Áustria, despojando as manobras imperialistas; a sua posição foi resumida na palavra de ordem "Nem Paz, Nem Guerra!". O terceiro bloco foram os "comunistas de esquerda", incluindo líderes como Bukharin, Preobrazhenski, Búbnov, Uritski ou Piatakov, que defendiam a guerra revolucionária contra a Alemanha, não apenas como uma estratégia defensiva, mas como um gatilho para a revolução na Europa. Essa fação rejeitou a posição de Lenin e publicou o seu próprio jornal.
O debate deixou evidente a liberdade de opinião e a democracia interna que existiam dentro do partido bolchevique enquanto Lenin estava na vanguarda, algo diametralmente oposto ao que mais tarde aconteceria com Stalin. Quando o Comité Central decidiu aceitar o ponto de vista de Lenin, já com o total apoio de Trotsky, e a 3 de Março o tratado de Brest-Litovsk foi assinado, os "comunistas de esquerda" renunciaram a todas as suas posições e recuperaram a liberdade de agitação dentro e fora do partido.

34. Junkers: nas suas origens constituíam a aristocracia latifundiária prussiana e alimentavam os setores mais abastados da pequena burguesia. Foram o setor mais reacionário do exército e do Estado alemães e desempenharam um papel decisivo nas guerras imperialistas e na contra-revolução. Uma analogia é feita aqui com as forças reacionárias russas que combateram os bolcheviques.

35. Novaya Zhizn, 18 de Outubro de 1917.

36. Insurreição de Outubro, Arquivos da Revolução, 1917 (nota de Trotsky)

37. Rabochaya Gazeta, 5 de Novembro de 1917.

38. Pravda, 20 de Novembro de 1917.

39. V.I. Lenin, Marxismo e a insurreição, carta ao Comité Central do POSDR (b), 13-14 de Setembro de 1917, Obras Escolhidas, Volume 34, página 255, Ed Progresso, Moscovo, 1985).

40. De longe, A. Kerenski, p. 197-198.

41. Em 1910, a Organização Inter-Distrital dos Sociais-Democratas Unidos agrupava cerca de 4.000 membros em Petrogrado e 1.000 em organizações militares. Entre os seus representantes mais proeminentes estavam, juntamente com Trotsky, homens como Lunacharski, Volodarski, Uritski, Ioffe, Manuilski, Karajan, Riazánov, Pokrovski e Uren. Publicavam um jornal ilegal: Vpériod (Avante). A fusão com os bolcheviques ocorreu no VI Congresso, realizado de 8 a 16 de Agosto de 1917. Sverdlov relatou que Trotsky já se havia juntado ao comité de redação do Pravda, mas que ainda não actuava como membro por estar preso.

42. Refere-se ao Comité de Petrogrado do Partido Bolchevique.

 

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