«Tudo aquilo que um partido pode dar em coragem, visão revolucionária e consistência num momento histórico, Lenin, Trotsky e todos os seus camaradas deram em boa medida. Toda a honra e capacidade revolucionárias das quais a social-democracia ocidental estava desprovida foram representadas pelos bolcheviques. A sua insurreição de Outubro não foi apenas a salvação efectiva da Revolução Russa; foi igualmente a salvação da honra do socialismo internacional.»1

Hoje, 20 de Agosto de 2020, cumprem-se 80 anos sem Trotsky. Neste dia, o companheiro de armas de Lenin foi assassinado por um sicário da GPU, Ramón Mercader. Após várias tentativas frustradas, a sentença de Stalin foi executada. Trotsky, tal como a geração de comunistas que travou a grande batalha por Outubro, não pôde escapar à maquinaria assassina do stalinismo. A longa noite da revolução traída engoliu o mais consequente defensor do leninismo e do legado de 1917.

As palavras acima citadas, escritas pela irredutível camarada que foi Rosa Luxemburgo, servem-nos para abrir este texto que publicamos em três partes. O partido de Lenin e Trotsky, como era mundialmente conhecido, ainda não sofrera os golpes da burocratização nem o abalo ideológico imposto pela contra-revolução stalinista. Naquele momento, ninguém pensava que apenas 20 anos depois a geração de comunistas que tornou possível a tomada do poder se depararia com o seu massacre, sendo esmagada da forma mais impiedosa por ordens de Stalin.

O rigoroso estudo da Revolução Russa e da posterior contra-revolução stalinista não representam, nos tempos actuais, um esforço vão. O colapso da economia capitalista e o descrédito das instituições e dos partidos que sustêm o sistema são um motivo de primeira importância para conhecer a fundo a política dos bolcheviques nos tempos de Lenin e Trotsky.

Apesar de ter passado mais de um século e de serem inúmeros os apologistas do capitalismo que utilizam as tribunas parlamentares, jornalísticas, universitárias ou sindicais para difamar pela enésima vez o marxismo — acusando-o de ser uma ideologia oitocentista própria de um museu de curiosidades históricas —, o certo é que os princípios e o método dialéctico do socialismo científico continuam a ser os mais úteis e certeiros para entender as causas do actual caos económico, social e político, para entender por que as revoluções, insurreições e levantamentos varrem cada vez mais países por todos os continentes.

No contexto actual, quando a esquerda parlamentar — seja de raíz social-democrata ou proveniente dos restos do stalinismo oficial — não deixa de propagar a colaboração de classes e a unidade nacional, um estudo profundo da Revolução Russa mostra-se incrivelmente revelador.

Basta comparar a atitude dos bolcheviques à dos dirigentes da esquerda reformista do século XXI. Em lugar de organizar, educar, elevar a consciência e disposição ao combate dos oprimidos, tentam realizar a ideologia inebriante do pacto social e reformar o capitalismo. O resultado de uma tal política, em tempos de aguda crise capitalista, é permitir à burguesia seguir em frente e recompor uma e outra vez a sua dominação — evidentemente, com um custo cada vez mais alto —, e dar asas à extrema-direita, que se aproveita da ruína da sociedade para propagar a sua demagogia reaccionária.

A questão que se coloca é se a proposta da esquerda reformista — seja ela a velha ou a nova — contém algo de original em relação ao que foi dito no passado.

Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo e, muito antes, Marx e Engels tiveram que aguçar as armas da sua crítica contra os apóstolos da conciliação entre as classes. Os seus escritos contra o reformismo refutam hoje, com uma actualidade surpreendente, os pregadores da submissão parlamentar ao capital, que copiam as ideias de Kautsky ou Bernstein para nos convencer de que a ruptura com a ordem burguesa é uma infeliz e delirante ideia.

O programa e a acção dos bolcheviques, tal como o combate que Trotsky travou para restaurar a sua obra teórica e práctica — enterrada sob a montanha de cães mortos que significou a degeneração stalinista — são um guia para a acção nos momentos actuais. Permitem-nos saber que muitas das questões que agora mesmo nos colocamos enquanto revolucionários foram colocadas também no passado e receberam respostas acertadas.

Quer isto dizer que nada mudou, que as coordenadas se mantêm as mesmas em termos políticos, sociais ou económicos? De forma alguma. O mundo sofreu transformações radicais. Para começar, já não existe a União Soviética — aniquilada pela mesma burocracia stalinista que usurpou o poder da classe trabalhadora —, e a contra-revolução capitalista triunfou também na China, um país que até há pouco tempo se mantinha muito atrasado e actualmente se bate por conquistar a hegemonia mundial. Que a história tenha sofrido grandes transformações não significa que a luta de classes se detenha, que a crise do capitalismo não se desenvolva a uma velocidade vertiginosa ou que a ideia utópica de um capitalismo com rosto humano não continue a causar danos nas fileiras da esquerda.

A 80 anos do assassinato de Leon Trotsky, continuamos a defender convictamente a sua excepcional contribuição para o arsenal do marxismo, a urgência na contrucção de um partido revolucionário com raízes nas massas da classe trabalhadora e da juventude, o seu combate intransigente pelo internacionalismo proletário.

Rodeado por um mar de contra-revolução, deserção e desmoralização, colocado perante a mais terrível adversidade pessoal, Trotsky resistiu e legou-nos uma bandeira merecedora de toda a luta e sacrifício: a bandeira da revolução socialista mundial.

Nas páginas seguintes expomos as ideias fundamentais de Trotsky e dos bolcheviques na Revolução Russa, o seu papel na direcção do jovem Estado soviético, os factores objectivos e subjectivos que levaram à degeneração burocrática da URSS, do partido bolchevique e da Terceira Internacional, e o papel de Trotsky para restabelecer a democracia operária e o programa leninista à cabeça da Oposição de Esquerda.


O levantamento dos operários e soldados de Petrogrado, em Fevereiro de 1917, marcou o início da Revolução Russa. Trazida à cena pela Primeira Guerra Mundial e pelo colapso do despotismo czarista, o violento despertar das massas determinou o fim de Nicolau II, mas não significou que aquelas conquistassem o poder imediatamente. Mesmo tendo-se como certo que a queda do czar provocaria transformações profundas, não era claro o caminho que tomariam os acontecimentos.

Para os mais perspicazes círculos burgueses, a gravidade da situação era evidente: a queda do absolutismo poderia acarretar o desaparecimento do regime capitalista russo, e por isso as manobras políticas com o fim de preservar os privilégios e os negócios da classe dominante e do imperialismo sucederam-se freneticamente. Iniciou-se assim um período de hipocrisia e dupla linguagem para ludibriar o povo e conseguir que a revolução fosse apenas aparente, preservando a estrutura de classes da sociedade russa.

A farsa da colaboração de classes

Após as jornadas de Fevereiro, [para a burguesia] não tinha cabimento pensar num enfrentamento aberto com o povo insurrecto, e muito menos recorrer às tropas contagiadas pela euforia revolucionária, ainda que alguns velhos ansiassem fazê-lo. Houve que procurar outras opções mais realistas para conter o vendaval que vinha; por isso, quando as cabeças mais destacadas da “intelligentsia progressista” ofereceram a sua colaboração activa para gerir a situação, produziu-se uma sensação de alívio. A burguesia liberal, espectadora passiva das grandes mobilizações armadas de São Petersburgo, foi catapultada para o governo do país, não por mérito próprio, mas antes por decisão da esquerda conciliadora. Foi assim que um sistema político moribundo, mas empenhado em sobreviver, logrou permanecer à tona.

A atmosfera de euforia e confraternização preparou o terreno para oportunistas e arrivistas, e o êxito das massas foi temporariamente monopolizado pelos campeões da conciliação. Os dirigentes dos partidos socialista-revolucionário (SR) e menchevique2 constituíam esta ala conciliadora, e apesar de em tempos passados terem disputado entre si questões doutrinárias (os primeiros bebiam da tradição populista, anarquista e inclusivamente terrorista, e os segundos tinham uma origem marxista que renegaram), agora estavam solidamente unidos pelo espírito do social-patriotismo e por uma opinião comum sobre a natureza “burguesa” da Revolução Russa.

Partindo deste pressuposto fundamental, o Comité Executivo do Soviete — por eles dominado — propôs ao comité provisório da Duma,3 integrado por políticos burgueses e do velho regime, a formação de um Governo Provisório que assumiria o poder. Ambos os órgãos, o Executivo do Soviete e o Governo Provisório, representantes de um poder dual e contraditório, apressaram-se a protagonizar a grande farsa da colaboração em prol do "interesse nacional e da revolução".

As organizações conciliadoras e os políticos burgueses alçados ao poder tinham, supostamente, reformas urgentes a levar a cabo: acabar com a guerra, distribuir a terra, desenvolver a indústria e melhorar o abastecimento, resolver o problema das nacionalidades… Tudo isto questões que não ultrapassavam os limites das conquistas democrático-burguesas mais elementares. Mas nenhuma reforma foi abordada satisfatoriamente. Os factos demonstravam que as promessas de um futuro melhor eram traídas com o maior descaramento.

A burguesia russa estava atrelada às potências imperialistas do bloco dos Aliados por causa dos seus negócios e pretensões anexionistas, e daí resultava ter como prioridade o apoio a uma guerra impopular que já causara milhões de mortos. Eram também muitos os vínculos que atavam esta mesma burguesia à propriedade fundiária — sobre a qual pesavam hipotecas no valor de milhares de milhões de rublos —; na prática, muitos burgueses eram ao mesmo tempo latifundiários, e vice-versa. Por outro lado, as audazes exigências da classe trabalhadora para a redução da jornada laboral, para a melhoria dos salários e das condições de trabalho, dos serviços sociais e da educação, faziam perigar a taxa de lucro dos capitalistas que tanto crescera com o lucrativo negócio da guerra.

Em circunstâncias tais, a política de colaboração de classes acentuou-se. Os mencheviques e SRs sacrificaram todos os seus princípios "socialistas" para bem do entendimento com a burguesia. O que significava isto? Em primeiro lugar, significava enganar os camponeses com discursos e debates parlamentares enquanto renunciavam à reforma agrária e zelavam pela propriedade fundiária. Em segundo lugar, atraiçoar as ânsias de paz dos soldados, prosseguindo a guerra até à "vitória final" para a satisfação dos aliados e da sua política imperialista. Em terceiro lugar, entrar em confronto com os trabalhadores e as suas reivindicações porque "ameaçavam" os lucros e a prosperidade futura. E, em quarto lugar mas sem menor importância, negar o direito de auto-determinação às nacionalidades e nações oprimidas sob bota do czarismo, para regozijo do chauvinismo grão-russo. Os governos de colaboração de classes que se foram sucedendo desde as jornadas de Fevereiro até a insurreição de Outubro não cumpriram nenhuma das suas promessas, o que não os impediu de exigir constantes sacrifícios a uma população exausta.

Perante este bloco que tratava de liquidar o poder revolucionário surgido da revolução, ergueu-se um partido ainda minoritário, mas que denunciou incansavelmente esta política e a sua responsabilidade em conduzir a Rússia para a catástrofe. Lenin e o Partido Bolchevique, com uma posição de classe intransigente, desnudaram as bases fraudulentas desta coligação frente-populista.

Ainda exilado, Lenin telegrafou aos seus correligionários, a 6 de Março de 1917: “A nossa táctica: desconfiança absoluta, negar todo apoio ao Governo Provisório (...) não há outra garantia senão armar o proletariado”. E após pisar solo russo no mês de Abril, nas suas primeiras palavras ao chegar à estação de Finlândia, em Petrogrado, declarou desafiante: “Não está longe o dia em que, respondendo ao nosso camarada Karl Liebknecht, os povos voltarão as armas contra os seus exploradores (...). A Revolução Russa (...) iniciou uma nova era. Viva a revolução socialista mundial!”

O processo de tomada de consciência

Durante a revolução de Fevereiro, o proletariado e os soldados (na sua maioria camponeses de uniforme) estabeleceram com os sovietes um embrião de poder operário que disputava com as velhas instituições do Estado czarista o governo da sociedade. Os partidos reformistas subordinaram este embrião de poder à burguesia, como passo necessário para o suprimir quando o momento adequado chegasse. E foi precisamente essa política de conciliação que acelerou a radicalização e a desconfiança de grandes camadas da classe trabalhadora e dos camponeses. A sopa envenenada que serviam os mencheviques e SRs através dos seus discursos pomposos não podia ocultar a manutenção do velho estado de coisas, a mesma exploração e o mesmo saque praticado pelas classes dominantes da Rússia durante séculos.

O curso das revoluções não segue um caminho em rectilíneo ou pré-estabelecido, é muito mais caprichoso e contraditório do que pensam alguns doutrinários. Dito isto, é igualmente certo que a revolução e a contra-revolução têm leis gerais que se manifestam tarde ou cedo. Trotsky explica-o da seguinte forma no prefácio da sua célebre obra, História da Revolução Russa:

«A mais indubitável característica das revoluções é a intervenção directa das massas nos acontecimentos históricos. Nos períodos ordinários, o Estado, seja monárquico ou democrático, eleva-se acima da nação, e a história é feita por especialistas do ramo: monarcas, ministros, burocratas, parlamentares, jornalistas. Mas nesses momentos cruciais nos quais a velha ordem se torna insuportável para as massas, estas irrompem sobre as barreiras que as excluem da arena política, varrem os seus representantes tradicionais e criam, pela sua própria interferência, as bases de um novo regime. Deixamos ao juízo dos moralistas se isto é bom ou mau. Da nossa parte, tomaremos os factos tal como nos são dados pelo seu curso objectivo de desenvolvimento. A história de uma revolução é, para nós, primeiramente, a história da entrada violenta das massas na esfera da governação do seu próprio destino.

(...)

As transformações repentinas nas ideias e na disposição das massas numa época de revolução não derivam da flexibilidade e da mobilidade da psique humana, mas precisamente do oposto, do seu profundo conservadorismo. O crónico atraso das ideias e das relações perante as condições objectivas, justamente até ao momento em que estas se abatem sobre as pessoas na forma de uma catástrofe, é o que gera, num período de revolução, esse salto das ideias e das paixões que ao olhar policial aparece simplesmente como o resultado da actividade de "demagogos".

As massas entram numa revolução não com um plano traçado de reconstrução social, mas com um agudo sentimento de que não podem tolerar o velho regime4 (a ênfase é nossa)

A consciência das massas nunca reflete de forma automática a madurez das condições objectivas. Em todas as sociedades de classes, as ideias da classe dominante, repletas de preconceitos conservadores para justificar o status quo, influem decisivamente na visão do mundo que têm os oprimidos. A burguesia domina graças à sua posição de dirigente nas relações sociais de produção capitalista e no Estado, o que lhe assegura preponderância ideológica e cultural. E a pequena-burguesia joga um papel essencial para a transmissão dos valores burgueses.

As massas durante a revolução sofrem também a pressão do passado e a sua consciência não pode estar ao nível dos acontecimentos a não ser passando por grandes e dolorosas experiências. “A situação revolucionária em si, quando abordada no plano político”, escreve Trotsky, “deriva do facto de todos os grupos e camadas do proletariado, ou pelo menos a sua esmagadora maioria, estarem tomados pelo desejo de unir os seus esforços para transformar o regime existente. Isto não significa, no entanto, que todos compreendam como fazê-lo, e muito menos que estejam dispostos a romper com os seus partidos e a passar-se às fileiras dos comunistas. A consciência política da classe não amadurece metódica e uniformemente; subsistem profundas diferenças internas inclusive na época revolucionária, quando todos os processos se desenvolvem por meio de saltos.”5

O factor subjectivo torna-se o elemento objectivo mais decisivo para o triunfo da revolução. Trotsky explica-o da seguinte forma ao tratar as lições da Revolução Russa:

«O proletariado pode imbuir-se da confiança necessária ao derrube do governo somente se uma perspectiva clara se abre diante de si, somente se teve a oportunidade de testar pela acção a correlação de forças que se modifica a seu favor, somente se sente ter à sua cabeça uma direcção com visão, firme e confiante. Isto leva-nos à última premissa — que de forma alguma é a última em importância — para a conquista do poder: o partido revolucionário como vanguarda, firmemente soldada e temperada, da classe. (...)

É sem dúvida testemunho geral da história — a Comuna de Paris, as revoluções Alemã e Austríaca de 1918, os revoluções soviéticas da Húngria e de Baviera, a Revolução Italiana de 1919, a crise alemã de 1923, a Revolução Chinesa dos anos 1925-27, a Revolução Espanhola de 1931 — que, até hoje, o elo mais fraco na cadeia de condições necessárias tem sido o partido. A maior dificuldade é a classe trabalhadora criar uma organização revolucionária capaz de se elevar à altura da sua tarefa histórica. (...)

Os bolcheviques não eram homens de mãos de seda, não eram amigos literários das massas, não eram pedantes. Não tinham medo das camadas atrasadas que pela primeira vez se erguiam da lama. Os bolcheviques tomavam o povo tal como a história precedente o criara, tal como era chamado a realizar a revolução. Os bolcheviques assumiam como sua missão estar à cabeça desse povo.»6

Trotsky e Lenin não exigiam das massas atributos milagrosos ou uma suposta "consciência socialista". Os grandes marxistas entendiam a revolução como uma tarefa estratégica na qual o partido joga o papel decisivo para fazer avançar a consciência da classe trabalhadora e dos oprimidos, generalizando a sua experiência prática até à necessária tomada do poder:

«A força temporária dos social-patriotas, assim como a fraqueza escondida da ala oportunista dos bolcheviques” — escreve Trotsky — “assentava no facto de aqueles se basearem nas ilusões e preconceitos temporários das massas, enquanto estes se conformavam a essas ilusões e preconceitos temporários. A força fundamental de Lenin assentava na sua compreensão da lógica interna do movimento e em guiar por essa lógica a sua política. Lenin não impunha os seus planos às massas; ajudava as massas a reconhecer o seu próprio plano. Quando Lenin reduzia a um único problema todos os problemas da revolução — "explicar pacientemente" —, expressava a necessidade de fazer a consciência das massas chegar à correspondência com a situação na qual o processo histórico as tinha colocado.»7

Lenin apoiou-se na experiência viva dos acontecimentos para colocar a teoria e as tarefas do movimento na ordem do dia. Combateu todos aqueles que queriam conter o movimento revolucionário nos limites da chamada "república democrática", uma sombra fantasmagórica e demagógica por detrás da qual se erguia o poder dos capitalistas, dos latifundiários e do Estado Maior. A questão colocada por Lenin era simples: como levar a cabo a passagem da terra aos camponeses, a paz sem anexações, a liberdade para as nacionalidades oprimidas e o progresso para o povo trabalhador? Ainda que se pudesse supor que estas reivindicações não ultrapassavam os limites da democracia burguesa, Lenin insistia acertadamente que seriam satisfeitas somente quando a classe trabalhadora, em aliança com os camponeses pobres e os soldados, tomasse o poder, iniciando a transformação socialista da sociedade. O programa de Lenin converteu-se rapidamente na plataforma política do partido bolchevique e da revolução de Outubro.

A teoria marxista da revolução permanente

Marx e Engels ensinaram-nos que as condições objectivas para a construção do socialismo nos países capitalistas mais avançados estavam maduras. Mas esta ideia, que foi repetidamente distorcida para negar a revolução nos países atrasados, não faz mais do que reconhecer que o socialismo precisa de um elevado grau de desenvolvimento das forças produtivas para se tornar realidade. Marx e Engels jamais afirmaram que a classe trabalhadora deveria abster-se de tomar o poder nos países capitalistas mais débeis, ou que devia subordinar-se politicamente à burguesia como única forma de levar a cabo as tarefas democráticas da revolução.

Esta questão fora tratada tanto teórica como praticamente durante a experiência revolucionária de 1848, que nos deu grandes ensinamentos e clarificou a atitude da burguesia. Marx e Engels explicaram-no assim:

«A burguesia alemã tinha-se desenvolvido tão indolente, cobarde e lentamente que, no momento em que se contrapôs ameaçadoramente ao feudalismo e ao absolutismo, avistou frente a si própria, ameaçadores, o proletariado e todas as fracções da população urbana cujos interesses e ideias se aparentam com o proletariado. E viu como inimiga não apenas uma classe atrás de si, mas toda a Europa diante de si. A burguesia prussiana não era, como a francesa de 1789, a classe que defendia toda a sociedade moderna face aos representantes da velha sociedade, a realeza e a nobreza. Tinha descido a uma espécie de estado [ou ordem social — Stand], tão marcadamente contra a Coroa como contra o povo, desejosa de opor-se a ambos, indecisa face a cada um dos seus adversários tomado isoladamente, uma vez que os via sempre atrás ou diante de si; inclinada desde o princípio para a traição contra o povo e para o compromisso com o representante coroado da velha sociedade, uma vez que já ela própria pertencia à velha sociedade; (...).»8

Marx e Engels refutaram a ideia de que a burguesia podia encabeçar a luta consequente pelas reivindicações democráticas, e chegaram a esta conclusão… em meados do século XIX! Insistiram nisto e alertaram a vanguarda operária da necessidade de lutar pelos seus próprios objectivos de classe, independente também da pequena-burguesia:

«Os pequeno-burgueses democratas, muito longe de pretenderem revolver toda a sociedade em benefício dos proletários revolucionários, aspiram a uma alteração das condições sociais que lhes torne tão suportável e cómoda quanto possível a sociedade existente. (...)

Ao passo que os pequeno-burgueses democratas querem pôr fim à revolução o mais depressa possível, realizando, quando muito, as exigências atrás referidas, o nosso interesse e a nossa tarefa são tornar permanente a revolução até que todas as classes mais ou menos possidentes estejam afastadas da dominação, até que o poder de Estado tenha sido conquistado pelo proletariado, que a associação dos proletários, não só num país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro, tenha avançado a tal ponto que tenha cessado a concorrência dos proletários nesses países e que, pelo menos, estejam concentradas nas mãos dos proletários as forças produtivas decisivas. Para nós não pode tratar-se da transformação da propriedade privada, mas apenas do seu aniquilamento, não pode tratar-se de encobrir oposições de classes mas de suprimir as classes, nem de aperfeiçoar a sociedade existente, mas de fundar uma nova.»9

Desde então, a luta entre reformismo e revolução, entre independência de classe e colaboração com a burguesia, polarizaram e dividiram a social-democracia europeia e russa.

A polémica ganhou uma nova perspectiva à luz dos acontecimentos do ano 1905, quando a revolução estalou em São Petersburgo e Moscovo. Nesse momento, uma maioria de dirigentes da Segunda Internacional, incluindo os russos, consideravam que a Rússia precisava de uma revolução burguesa nacional para tornar-se um país capitalista moderno e eliminar todos os vestígios de feudalismo. Daqui se retirava uma ideia de importância cardinal: que o proletariado devia limitar-se a actuar como força auxiliar da burguesia liberal, sem atravessar a fronteira das reivindicações democrático-burguesas, e somente após um período prolongado (e indefinido) de desenvolvimento capitalista a classe trabalhadora reuniria forças suficientes para iniciar a transformação da sociedade, utilizando os mecanismos do parlamentarismo. Em suma, a revolução era apresentada como uma sucessão de etapas: primeiro, uma fase democrático-burguesa, de seguida, a fase socialista.

Esta concepção etapista, mecânica e anti-dialéctica da revolução, que transformava em fim estratégico a defesa da democracia burguesa, serviu de álibi teórico à maioria dos líderes da Segunda Internacional na sua capitulação às respectivas burguesias nacionais, em 1914.

Perante esta distorção dos fundamentos do socialismo, rebelaram-se Rosa Luxemburgo, Lenin e Trotsky. A batalha contra o revisionismo deu-se em torno da natureza de classe do Estado e da democracia, do papel do parlamentarismo burguês e das reformas sob capitalismo, do papel do sindicalismo e do partido, da política de alianças e do imperialismo e das crises, entre outros aspectos relevantes.

No caso da Rússia, o absolutismo czarista fora tardiamente integrado na economia capitalista mundial e sofria uma forte dependência das finanças externas, especialmente a francesa e a inglesa. A estrutura económica e social do império estava marcada pela sobrevivência de relações semi-feudais: ainda que a servidão da gleba tivesse sido abolida em 1861, a terra sofreu um agudo processo de concentração nas mãos de uma oligarquia de nobres e burgueses terratenentes. Milhões de camponeses desapossados levavam uma vida miserável nas aldeias e os pequenos proprietários e arrendatários sobreviviam com enormes privações.

O endémico atraso do campo coexistia com as grandes fábricas e indústrias dos principais núcleos urbanos, em muitos casos com alta tecnologia.10 A Rússia, como outros países de características similares — por exemplo, a Espanha do início do século XX —, era atravessada pelo desenvolvimento desigual e combinado: atraso endémico nas relações agrárias submetidas ao poder da velha nobreza aristocrática, fundida agora com a burguesia como classe terratenente, e um desenvolvimento pontual mas vigoroso da produção capitalista em certas cidades e regiões, dando origem a uma nova classe trabalhadora que entrou em cena com grande determinação revolucionária.

A burguesia liberal, apesar de não ter nas suas mãos o monopólio do poder político do Estado russo — que permanecia sob o controlo do czar e da nobreza —, formava de facto um bloco social e económico com o regime autocrático que, por seu lado, zelava pelos lucrativos negócios da burguesia. Em todas as ocasiões nas quais pôde encabeçar a luta contra o czarismo, como em 1905, a burguesia liberal escolheu aliar-se a este contra a acção revolucionária da classe operária. Demonstrou que a sua defesa da democracia terminava ali onde começavam os seus rendimentos e privilégios.

Respondendo a estas posições reformistas, os marxistas russos demonstraram que a burguesia, devido à sua debilidade e à sua dependência do capital imperialista, era incapaz de levar a cabo as tarefas da sua própria revolução: a reforma agrária, o desenvolvimento industrial e o fim da opressão nacional. Não era a burguesia, mas antes a classe trabalhadora encabeçando a nação — especialmente as massas de camponeses pobres —, a classe que tinha nas suas mãos a resolução destes problemas. Leon Trotsky resumiu-o na sua teoria da revolução permanente:

«O conceito de revolução permanente foi formulado pelos grandes comunistas de meados do século XIX, Marx e seus co-pensadores, em oposição à ideologia democrática que, como sabemos, alega que pelo estabelecimento de um Estado "racional" ou democrático todas as questões podem ser resolvidas pacificamente através de medidas reformistas e graduais. Marx considerava a revolução burguesa de 1848 como o prelúdio directo da revolução proletária. Marx “errou”. Contudo, o seu erro foi de carácter factual e não metodológico. (...)

O "marxismo" ordinário forjou um esquema de evolução histórica segundo o qual toda a sociedade burguesa garante cedo ou tarde um regime democrático a partir do qual o proletariado, sob condições democráticas, se organiza e educa gradualmente para o socialismo. A passagem para o socialismo propriamente dita foi concebida de formas diversas: os reformistas assumidos imaginavam-na como sendo o gradual preenchimento da democracia com conteúdo socialista (Jaurès); os revolucionários formais reconheciam a inevitabilidade da aplicação de violência revolucionária na transição para o socialismo (Guesde). Mas tanto os primeiros como os segundos entendiam democracia e socialismo, para todos os povos e países, como duas etapas no desenvolvimento da sociedade que além de ser completamente distintas são também separadas por uma grande distância temporal. (...)

A teoria da revolução permanente, originada em 1905, declarou guerra a estas ideias e disposições. Mostrou que as tarefas democráticos das nações burguesas atrasadas levavam directamente, na nossa época, à ditadura do proletariado, e que a ditadura do proletariado coloca as reivindicações socialistas na ordem do dia. Eis a ideia central da teoria. Enquanto a visão tradicional era de que o caminho para a ditadura do proletariado passava por um longo período de democracia, a teoria da revolução permanente clarificou o facto de que, para os países atrasados, era o caminho da democracia que passava pela ditadura do proletariado. (...)

O segundo aspecto da teoria “permanente” prende-se com a própria revolução socialista. Por um período indefinidamente longo e em constante luta intestina, todas as relações sociais sofrem transformações. A sociedade fica permanentemente a mudar de pele. (...)

O carácter internacional da revolução socialista, que constitui o terceiro aspecto da teoria da revolução permanente, decorre do presente estado da economia e da estrutura social da humanidade. O internacionalismo não é um princípio abstracto, é um reflexo teórico e político do carácter mundial da economia, do desenvolvimento mundial das forças produtivas e da escala mundial da luta de classes. A revolução socialista inicia-se dentro do marco nacional — mas não pode ser completada dentro deste marco. (...) Deste ponto de vista, uma revolução nacional não é uma unidade autónoma; é tão-somente um elo na cadeia internacional. A revolução internacional constitui um processo permanente, apesar de declínios e refluxos temporários.»11

Rosa Luxemburgo — envolvida directamente nos combates revolucionários de 1905 na cidade de Varsóvia — posicionou-se com Lenin e Trotsky neste debate, expondo as suas conclusões em livros e congressos. Vale a pena citá-los, posto que a sua harmonia com a teoria da revolução permanente não dá lugar a dúvidas:

«A Revolução Russa tem por primeira tarefa a abolição do absolutismo e a instauração de um moderno Estado constitucional parlamentar-burguês. Formalmente, é exactamente aquilo com que se confrontou a revolução de Março de 1848 na Alemanha, assim como a Grande Revolução Francesa no final do século XVIII. Mas as condições e o meio histórico em que tiveram lugar estas revoluções formalmente análogas são completamente diferentes das condições e do meio histórico da Rússia dos nossos dias. A diferença essencial é que entre aquelas revoluções burguesas no ocidente e a actual revolução burguesa no oriente decorreu todo um ciclo de desenvolvimento capitalista. E este desenvolvimento não tomou apenas os países da Europa ocidental, mas também a Rússia absolutista. A grande indústria, com todas as suas consequências — a moderna divisão de classes, agudos contrastes sociais, a vida moderna nas grandes cidades e o proletariado moderno —, tornou-se na Rússia a forma predominante, quer dizer, a forma de produção decisiva no desenvolvimento social.

A inusitada e contraditória situação histórica que daqui resulta é que (...) Não é agora a burguesia a força motriz da revolução, como foi nas anteriores revoluções do ocidente, enquanto as massas proletárias, engolfadas por uma massa pequeno-burguesa, tão-simplesmente serviam à burguesia como carne-para-canhão; pelo contrário, é o proletariado com consciência de classe o elemento activo e dirigente (...).

O proletariado russo (...) está destinado a desempenhar o papel dirigente da revolução burguesa (...) a luta do proletariado pela sociedade burguesa dirige-se simultaneamente e com igual ímpeto contra o absolutismo e contra a exploração capitalista (...).»12

A lenda construída pelo stalinismo fala de Lenin "repudiar" a teoria da revolução permanente. Como em tantas outras falsificações, apesar de Lenin não utilizar o termo, defendeu um enfoque muito semelhante ao de Trotsky. Na sua gigantesca obra sobre a revolução bolchevique, E. H. Carr trata esta importante questão:

«Ainda que a disputa entre bolcheviques e mencheviques parecesse girar em torno de questões esotéricas da doutrina marxista, na realidade colocava questões fundamentais para a história da Revolução Russa. Os mencheviques, ao teimar na primitiva sequência marxista segundo a qual a revolução democrático-burguesa precederia a revolução socialista-proletária, nunca aceitaram a hipótese de Lenin, enunciada já em 1898, da existência de um vínculo indissolúvel entre ambas (...). Para Lenin, as duas etapas formavam parte de uma espécie de processo contínuo.»13

Num texto escrito no calor da revolução de 1905, intitulado A atitude da social-democracia para com o movimento camponês, Lenin expressa a ideia apontada por Carr com precisão:

«(...) da revolução democrática deveremos imediatamente — e precisamente na medida das nossas forças, as forças do proletariado com consciência de classe e organizado — começar a passar à revolução socialista. Defendemos a revolução ininterrupta. Não vamos parar a meio-caminho. (...) não pouparemos esforços para ajudar o campesinato a realizar a revolução democrática, de maneira a facilitar-nos — a nós, o partido do proletariado — passar o mais rapidamente possível à nova e superior tarefa: a revolução socialista.»14

Lenin defendeu uma formulação concreta do regime que resultaria de uma revolução democrática na Rússia: “a ditadura democrática revolucionária dos trabalhadores e camponeses”. Uma formulação que reafirmava a aliança entre o proletariado e o campesinato para o triunfo revolucionário. Mas o desenvolvimento dos acontecimentos convenceu Lenin de que esta fórmula fora completamente ultrapassada. A revolução democrática após Fevereiro de 1917 chegara o mais longe que se podia esperar, e o resultado foi estabelecer um governo de coligação entre a burguesia e os partidos socialistas conciliadores — os socialistas-revolucionários e os mencheviques.

Lenin e as Teses de Abril. O caminho para a vitória

Sem a direcção de Lenin — que estava ainda isolado no seu exílio suíço —, a organização bolchevique na Rússia estava dispersa, com muitos dos seus militantes nas trincheiras e os seus efectivos de Petrogrado, Moscovo e outras cidades actuando decididamente nas batalhas de rua, mas sem programa ou táctica acabada, sem palavras de ordem claras.

O comité bolchevique de Petrogrado, com Molotov à cabeça, foi tomado completamente de surpresa pelas jornadas revolucionárias de Fevereiro e dava apenas orientação. A chegada de Stalin e Kamenev para se encarregarem da direcção do partido na capital não melhorou as coisas; afastando a direcção anterior por "esquerdismo", deram à publicação do partido, Pravda, um viés conciliador, limitando-se a apoiar o Comité Executivo dos Sovietes, dominado por SRs e mencheviques.

Impaciente com o rumo dos acontecimentos e a atitude do partido, Lenin enviou em Março numerosos telegramas aos exilados que voltavam à Rússia, e várias cartas à redacção do Pravda, insistindo para que se mantivesse uma completa oposição ao governo provisório. O seu telegrama de dia 6 revela a sua inquietação: “Nossa táctica: desconfiança absoluta, nenhum apoio novo governo; Kerensky especialmente suspeito; armamento proletariado única garantia, eleição imediata duma de Petrogrado nenhuma aproximação outros partidos.”

Das quatro Cartas de Longe enviadas por Lenin ao Pravda, Stalin e Kamenev apenas publicaram, rasurada, a primeira; as restantes três foram totalmente censuradas e enfiadas numa gaveta; não seriam públicas até 1924, após a sua morte. Lenin preparava a sua retaliação contra o conciliacionismo e a colaboração de classes sem a menor vacilação, mas as suas propostas foram consideradas inadmissíveis por Stalin e Kamenev. A 27 de Março, Stalin escreve no Pravda: “o Governo Provisório assumiu efectivamente a missão de fortificar as conquistas do povo revolucionário. O soviete mobiliza as forças e controla [o Governo Provisório]. O Governo Provisório, tropeçando e confundindo-se, assume a tarefa de consolidar as conquistas do povo que este já conquistou efectivamente.”

Mas Lenin já tinha diagnosticado a natureza deste governo que Stalin considerava ser necessário para consolidar as conquistas do povo:

«Não é mais que o representante da empresa financeira Inglaterra-França (...) aquele que afirmar que os trabalhadores devem apoiar o novo Governo com o objetivo de combater a reacção czarista (...) trai os trabalhadores, trai a causa do proletariado, a causa da paz e da liberdade...»15

A entrada de Lenin na Rússia revolveu definitivamente este estado de coisas. Assim que chegou, deixou clara a sua oposição à redacção do Pravda e expôs as suas Teses de Abril. Foi implacável na sua crítica: “Até os nossos bolcheviques mostram confiança no governo. Isto só se pode explicar pela embriaguez da revolução. É a ruína do socialismo. (...) Se esta é a vossa posição, os nossos rumos separam-se. Prefiro ficar em minoria."

Fustigando Kamenev e Stalin pelas suas posições e declarações a favor da unificação com os mencheviques, pronunciadas em várias reuniões conjuntas de militantes de ambos os partidos, Lenin enfatizou: “O Pravda exige ao governo que renuncie às anexações. Exigir de um governo dos capitalistas a renúncia às anexações é um absurdo, é óbvio escárnio. (...) Dizem-me que na Rússia há uma tendência no sentido da consolidação, consolidação com os defensistas [social-patriotas] — ou seja, traição do socialismo. Julgo que será melhor ficar sozinho, como Liebknecht — um contra cento e dez!”16

Na conferência dos bolcheviques de toda a Rússia, celebrada em Petrogrado no final de Abril, Lenin consegue o apoio tanto para a sua posição de não dar nenhum apoio ao governo provisório como para os pontos essenciais das suas teses de Abril. Apesar de a desconfiança de vários dirigentes — os chamados "velhos bolcheviques" — persistir, Lenin triunfou graças aos trabalhadores do partido que viam nesta política a resposta às suas próprias intuições e temores, assim como um plano para resolver de maneira positiva os seus anseios após a amarga experiência de fazer uma revolução para ver a burguesia e os social-patriotas ascender ao poder.

Trotsky analisou assim os factos descritos:

«Contra os velhos bolcheviques, Lenin encontrou um ponto de apoio noutra camada já temperada do partido, mas mais fresca e mais estreitamente unida com as massas. Na Revolução de Fevereiro, como sabemos, os trabalhadores bolcheviques desempenharam um papel decisivo. Consideraram evidente que deveria ser a classe que alcançara a vitória a tomar o poder. (...) Estes trabalhadores revolucionários só careciam dos recursos teóricos para defender a sua posição. Mas estavam prontos para responder ao primeiro apelo claro. Era sobre este estrato de trabalhadores, decididamente madurado durante os anos de ascenso do movimento de 1912-1914, que Lenin agora se firmava. Já no começo da guerra, quando o governo desferiu um duro golpe sobre o partido ao aprisionar a fração bolchevique da Duma, Lenin, falando sobre o vindouro trabalho revolucionário, exigia que o partido educasse os "milhares de trabalhadores com consciência de classe", dentre os quais surgirão, a despeito de todas as dificuldades, novos quadros dirigentes".

Apesar de estar separado destes trabalhadores por duas frentes de guerra, e quase sem comunicação, Lenin nunca perdeu os perdeu de vista. "Que a guerra, as prisões, a Sibéria e trabalhos forçados os quebrem duas e até mesmo dez vezes, não há como destruir este estrato. Está vivo. Está imbuído de espírito revolucionário e anti-chauvinismo." Na sua mente, Lenin estava a viver os acontecimentos lado-a-lado com estes trabalhadores bolcheviques, chegando com eles às necessárias conclusões — tão-somente de forma mais ampla e arrojada. Na sua luta contra a indecisão dos quadros e da ampla camada de oficiais do partido, Lenin, com confiança, fazia-se valer da camada de suboficiais que melhor reflectia o trabalhador bolchevique da base.»17

Na opinião de Lenin, a única razão pela qual se deixara escapar o poder em Fevereiro de 1917 era que “o proletariado não estava suficientemente consciente nem suficientemente organizado. Isto, temos de reconhecer. A força material estava nas mãos do proletariado, mas a burguesia estava consciente e preparada. Isto é um monstruoso facto. Mas há que reconhecê-lo francamente, e dizer sem rodeios ao povo que não tomámos o poder porque estávamos desorganizados e não conscientes.”18

Lenin não idealizava a espontaneidade das massas. A história das revoluções socialistas deixou claro que o que comummente é conhecido como espontaneidade, intrinsicamente ligada à irrupção das massas na luta, deve transformar-se numa acção consciente orientada à tomada do poder, à expulsão da burguesia da sua posição dirigente na sociedade. E essa orientação só pode vir de uma direcção forjada na teoria e na prática da luta de classes; que intervenha nos acontecimentos decisivos de maneira coerente, não dispersa, sob os mesmos pressupostos políticos; que saiba transmitir em cada fase as palavras de ordem necessárias, elevando o nível de consciência e compreensão da vanguarda para ganhar através desta a maioria dos oprimidos.

Em Abril de 1917, as ideias de Trotsky e o programa Leninista da revolução confluíram plenamente. Lenin expôs as suas já famosas Teses de Abril em várias reuniões de militantes bolcheviques e mencheviques, fazendo sensação entre os militantes de base e bastante hostilidade entre os dirigentes dos sovietes e muitos dos chamados "velhos bolcheviques".

As ideias essenciais das Teses podem resumir-se nos seguintes pontos: A) A guerra é imperialista, de rapina. É impossível acabar com ela e estabelecer uma paz democrática sem derrubar o capitalismo. B) A tarefa da revolução é colocar o poder nas mãos da classe trabalhadora e dos camponeses pobres. Nenhum apoio ao Governo Provisório. Não à república parlamentar, voltar a ela a partir dos sovietes seria dar um passo para trás. Por uma república dos sovietes de deputados operários, soldados e camponeses. C) Supressão da burocracia, do exército e da polícia. Armamento geral do povo. D) Nacionalização de todas as terras e colocação destas à disposição dos sovietes locais de jornaleiros e camponeses. E) Nacionalização da banca sob controlo operário. F) A Revolução Russa é um elo da revolução socialista mundial. Há que construir imediatamente uma nova internacional revolucionária, rompendo com a Segunda Internacional.

Não só as Teses como todos os folhetos e escritos de Lenin desde Fevereiro a Outubro de 1917 são uma consistente resposta às teorias etapistas e frente-populistas dos partidos conciliadores. É sabido que Lenin reorientou energicamente as fileiras bolcheviques para a tomada do poder, defendendo o carácter socialista da Revolução Russa. Apenas rompendo com as relações de propriedade capitalista e expropriando o capital financeiro, derrubando o Estado burguês e substituindo-o por um Estado operário de transição, seria possível instaurar um regime realmente democrático.

A semanas anteriores a Outubro tornaram clara a importância do factor subjectivo, ou seja, do partido e da sua direcção. A compreensão da dinâmica revolucionária, a avaliação sóbria da correlação de forças entre as classes e a confiança nas massas trabalhadoras tornaram possível o triunfo.

«No ano de 1917, a Rússia atravessava a maior das crises sociais.» — escreveu Trotsky — «No entanto, podemos dizer com certeza, com base em todas as lições da história, que sem o partido bolchevique a imensurável energia revolucionária das massas teria sido desperdiçada em explosões esporádicas, e que os grandes levantamentos teriam culminado na mais severa ditadura contra-revolucionária. A luta de classes é o primeiro motor da história. Necessita de um programa correcto, um partido firme, uma direcção corajosa e de confiança — não de heróis de salão e declarações parlamentares, mas de revolucionários dispostos a ir até às últimas consequências. Esta é a principal lição da Revolução de Outubro.»19

Uma vez que a maioria dos sovietes de operários, soldados e camponeses da Rússia, juntamente com os regimentos e os quartéis de Petrogrado, se pronunciaram activamente a favor do poder soviético e contra o governo capitalista, concedendo aos bolcheviques o seu apoio após passar pelas duras provas das Jornadas de Julho, da prisão dos seus principais dirigentes (entre os quais Trotsky, além da passagem à clandestinidade de Lenin), da luta armada contra o golpe de Estado do general Kornilov, etc., as condições para a insurreição estavam maduras. Nas palavras de Lenin, a história não perdoaria os revolucionários que, podendo vencer hoje, correm o risco de perder tudo e esperam por amanhã.

A decisão final do comité central bolchevique, após semanas de árduas discussões, com a activa oposição de Kamenev e Zinoviev, foi de transcendental importância. O Comité Militar Revolucionário (CMR), organismo militar criado pelos bolcheviques, dirigido por Trotsky e que agrupava 200.000 soldados, 40.000 guardas vermelhos e dezenas de milhares de marinheiros, foi posto em marcha. A 7 de Novembro (24 de Outubro segundo o calendário vigente na Rússia à altura), as tropas do CMR, coordenadas a partir do Instituto Smolny, trabalharam durante todo o dia e toda a noite ocupando pontes, estações, centros de comunicação, edifícios… Vinte e quatro horas depois, o Palácio de Inverno estava tomado e os ministros do governo de coligação detidos. Nesse mesmo dia, o Segundo Congresso dos Sovietes, com maioria bolchevique e dos SR de esquerda, tomava o poder nas suas mãos e dava à luz o primeiro governo proletário da história. O internacionalismo proletário foi inscrito na primeira resolução aprovada pelo Congresso: um apelo a todos os povos em guerra para que lutassem por uma paz democrática e sem anexações.

O triunfo dos bolcheviques fez estremecer o mundo capitalista. Desde então, a maquinaria de propaganda da burguesia empregou todos os seus meios para desqualificar a revolução de Outubro. Entre a montanha de calúnias e distorções aspergidas ao longo de um século, a mais persistente e difundida converteu o Outubro soviético num golpe de Estado que truncou o suposto florescimento de um regime democrático e parlamentar. Mas a dinâmica dos acontecimentos de 1917 era muito diferente: se os bolcheviques não tivessem tomado o poder, não teria sido estabelecida nenhuma democracia parlamentar, mas uma ditadura militar bonapartista ao estilo do que pretendia Kornilov, um regime de horror e repressão ainda mais sangrento, se isso é possível, que o czarismo.

Constantemente condenam a revolução de Outubro como uma orgia de sangue e violência, esta é outra distorção absolutamente contrária à realidade. A insurreição de Petrogrado, a capital revolucionária, foi essencialmente pacífica e realizou-se de forma democrática: a esmagadora maioria da classe trabalhadora, dos camponeses e dos soldados, representados nos sovietes de toda a Rússia apoiavam os bolcheviques e o seu programa de "paz, pão e terra" e de "todo poder aos sovietes". O carácter popular desta revolução foi confirmado pela grande maioria das testemunhas dos acontecimentos, inclusive por aqueles que, discordando dos fins da revolução, não estavam toldados por ódio de classe. Evidentemente, a resposta armada da contra-revolução deu-se logo a partir do momento em que a revolução foi coroada de êxito. Não houve tréguas para o governo soviético, que foi combatido a ferro e fogo pelas potências imperialistas e pelos seus lacaios russos.

Os bolcheviques não tinham dúvidas das bases políticas sobre as quais era necessário cimentar a nova ordem revolucionária. Ou a revolução se apoiava na participação consciente e democrática das massas na tomada de decisões, no controlo e na gestão da nova sociedade que estava por construir, ou estaria destinada ao fracasso. Em Dezembro de 1917, Lenin afirmava:

«Uma das tarefas mais importantes, se não a mais importante, do presente momento consiste em desenvolver com a maior amplitude essa livre iniciativa dos operários, e de todos os trabalhadores e explorados em geral, na sua criadora obra de organização. Há que dissipar a todo custo o velho preconceito absurdo, selvagem, infame, odioso de que apenas as chamadas "classes superiores", somente os ricos ou os que cursaram nas escolas das classes ricas podem administrar o Estado, dirigir a estrutura orgânica da sociedade capitalista.»20

O Terceiro Congresso dos Sovietes de toda a Rússia (Janeiro de 1918) aprovou uma directiva que transferiu todos os poderes da velha administração czarista para os novos sovietes locais: “Todo o país tem de estar coberto por uma rede de novos sovietes”. Neste congresso, Lenin insistiu que as massas deviam tomar a iniciativa: “(…) enviam-se com muita frequência ao governo delegações de operários e camponeses que perguntam como devem proceder, por exemplo, com esta ou aquela terra. E eu mesmo me encontrei com situações embaraçosas ao ver que não tinham um ponto de vista muito definido. E dizia-lhes: vocês são o poder, façam o que desejarem fazer, tomem tudo que vos fizer falta, apoiar-vos-emos”. Poucos meses depois, o congresso do Partido Bolchevique declararia que “uma minoria, o partido, não pode implantar o socialismo. Poderão implantá-lo dezenas de milhões de seres humanos quando aprenderem a fazê-lo por si mesmos”.

Outubro deu à luz o regime mais democrático da história. Os partidos burgueses desfrutaram de completa liberdade de acção e de propaganda nos meses posteriores. Mas os capitalistas russos e os seus aliados imperialistas não podiam tolerar uma revolução que os expulsara do poder e ameaçava transformar-se num íman para as massas do ocidente.

A ofensiva dos bandos armadas da contra-revolução, disposta a ajustar contas com aqueles ousaram tocar na propriedade sagrada dos milionários e latifundiários russos, dos banqueiros e especuladores imperialistas, durou cinco anos. Até 1921, exércitos imperialistas agrediram militarmente a Rússia revolucionária para acabar com o jovem Estado operário. Porém, os trabalhadores e camponeses, sob a direcção política dos bolcheviques, organizaram uma espantosa resistência e triunfaram. A chave deste êxito não foi a superioridade do armamento nem a ajuda de uma potência exterior, mas antes a vontade e a moral de milhões de combatentes que se batiam pela terra e pelas fábricas, pelo futuro das suas famílias. O programa revolucionário do bolchevismo transformou-se na arma mais poderosa, capaz de erguer das ruínas de uma sociedade descomposta por três anos de guerra mundial um poderoso Exército Vermelho de mais de cinco milhões de combatentes.

[Esta é a primeira parte de um artigo escrito em três partes. Podes ler aqui a segunda parte e aqui a terceira.]


Notas:

1. The Russian Revolution, Rosa Luxemburg. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/luxemburg/1918/russian-revolution/ch01.htm

2. Os SRs eram os membros do Partido Socialista-Revolucionário, um partido pequeno-burguês surgido da unificação de diferentes grupos populistas cujas concepções eram uma amálgama ecléctica de reformismo e anarquismo. Já os mencheviques eram a tendência reformista da social-democracia russa. Receberam o seu nome no II Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), em 1903, uma vez que, nas votações para eleger o Comité Central, ficaram em minoria (menshinstvó), enquanto os social-democratas revolucionários, encabeçados por Lenin, obtiveram a maioria (bolshinstvó) e passaram a ser chamados de bolcheviques.

3. Parlamento tutelado pelo regime czarista e que não tinha competências constitucionais.

4. History of the Russian Revolution, Trotsky. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1930/hrr/ch00.htm

5. What next?, Trotsky. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/trotsky/germany/1932-ger/next02.htm#s5

6. History of the Russian Revolution, Trotsky. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1930/hrr/ch43.htm

7. Ibidem. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1930/hrr/ch16.htm

8. "A burguesia e a contra-revolução", Obras Escolhidas, Marx e Engels. Ed. Progresso, Moscovo 1981, Volume I, p.144. Disponível online: https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/12/11.htm

9. "Mensagem do Comité Central à Liga dos Comunistas", Obras Escolhidas, Marx e Engels. Ed. Progresso, Moscovo 1981, Volume I, p.183.

10. 80% da população russa vivia no campo. Milhões de jornaleiros sem terra trabalhavam em grandes latifúndios e, periodicamente, protagonizavam revoltas que eram reprimidas pela autocracia czarista. A classe trabalhadora russa nutriu-se dos milhões de camponeses expulsos das aldeias após o fim formal da servidão. A industrialização criou um proletariado muito concentrado: em 1914, 41,4% dos operários russos trabalhavam em fábricas de mais de 1.000 trabalhadores, enquanto nos EUA somente 17,8% dos operários trabalhava em fábricas de igual ou superior dimensão.

11. The Permanent Revolution, Trotsky. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1931/tpr/prre.htm

Para aprofundar o entendimento da teoria da revolução permanente é indispensável o livro de Trotsky sobre a Revolução Russa de 1905, Balanço e Perspectivas. Disponível online: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1906/balanco/index.htm

12. The Mass Strike, the Political Party and the Trade Unions, Luxemburg. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/luxemburg/1906/mass-strike/ch07.htm

13. La revolución bolchevique 1917-1923, E. H. Carr. Alianza Editorial, Madrid 1979, Tomo I, pp.58-59, 72. Tradução nossa a partir do castelhano.

14. Social-Democracy’s Attitude Towards the Peasant Movement, Lenin. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1905/sep/05e.htm

15. As três citações encontram-se em Lenin, Jean Jacques Marie. Ed. POSI, Madrid 2008, p.141. Tradução nossa a partir do castelhano. Disponível online: http://elsoca.org/pdf/libreria/lenin-jjmarie.pdf

16. History of the Russian Revolution, Trotsky. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1930/hrr/ch15.htm

Liebknecht foi o único dos 110 deputados do SPD que votou contra os créditos de guerra.

17. Ibidem. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1930/hrr/ch16.htm

18. Ibidem. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1930/hrr/ch15.htm

19. Lessons of October, Trotsky. Tradução nossa a partir do inglês. Disponível online: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1935/11/october.htm

20. Citado no capítulo “De la insurrección de octubre a la formación de la Tercera Internacional”, En defensa de la revolución de octubre, vários autores, Fundación Federico Engels, Madrid 2007, p. 95.

 
 
 
 
 
 
 

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