Hoje, 19 de Março, há mais de 244.000 casos diagnosticados de coronavírus e mais de 10.000 mortes registadas em todo o mundo.1

Por toda a Europa, a comunicação social burguesa assume um discurso de culpabilização individual, espalha o pânico e apresenta esta gigantesca crise de saúde como uma catástrofe natural, imprevisível e inevitável. Cada uma das burguesias nacionais faz tudo o que pode para esconder as verdadeiras causas da colossal crise de saúde que vivemos: as políticas de cortes e privatizações na saúde e em todos os serviços públicos que foram seguidas nas últimas décadas, e com especial agressividade depois de 2008. E sob a cortina de fumo da comunicação social, os governos tomam medidas de protecção não das vidas em risco, mas antes dos lucros do capital.

Contudo, a pandemia de coronavírus revelou a catástrofe social do capitalismo de uma forma impossível de disfarçar. O mundo estava à beira da recessão mundial antes desta pandemia. Agora, a recessão não só estourou como se mostra infinitamente mais violenta. Todas as contradições do sistema estão a ser levadas à sua máxima tensão, e isto é o que verdadeiramente preocupa as burguesias e os seus governos: a perspectiva de grandes movimentos de massas e de crises revolucionárias.

Em Portugal, é exactamente isto que vemos com cada dia que passa. A prioridade do presidente e do governo são os lucros do grande capital, e é unicamente nesse sentido que têm sido tomadas medidas e que foi decretado o Estado de Emergência.

As consequências dos cortes e das privatizações na saúde

Segundo os dados do INE, já em 2017 havia mais hospitais privados do que públicos em Portugal. Eram, em todo o território, 114 hospitais privados para 111 hospitais públicos (sendo 4 destes, na verdade, “parcerias público-privadas”). No entanto, era o sector público a garantir mais de 80% dos atendimentos em urgências, mais de 70% dos internamentos e cirurgias, mais de 65% das consultas. O número de camas para internamento imediato era 35.000 em todo o país — 24.000 no sector público e nas PPP, 11.000 nos hospitais privados. Nos últimos 3 anos, o sector privado cresceu ainda mais, mas a situação mantém-se essencialmente a mesma: os hospitais privados servem clientes com dinheiro para pagar os seus serviços; enquanto isso, os hospitais públicos, crescentemente degradados pelo subinvestimento crónico, cuidam da esmagadora maioria da população. A tudo isto é ainda importante acrescentar que Portugal é um dos países da Europa com menos ventiladores respiratórios — os aparelhos médicos que são indispensáveis ao tratamento de casos graves de coronavírus. Segundo Costa, são 1.142 ventiladores no total, e, como não podia deixar de ser num país onde a pneumonia comum mata, em média, 16 pessoas por dia, estes ventiladores “não estão todos disponíveis”.

A tudo isto somam-se a falta de profissionais, a falta de equipamentos, condições de trabalho extenuantes e perigosas para trabalhadores e pacientes. Em 2019, os médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) fizeram um total de 6 milhões de horas extraordinárias. Segundo o Bastonário da Ordem dos Médicos, há a necessidade de contratar mais de 5.000 médicos. No caso dos enfermeiros, a Ordem dos Enfermeiros estima que sejam 30.000 em falta. Assim está o SNS depois dos anos de cortes e privatizações selvagens. Hoje, é incapaz de fazer frente às necessidades da maioria da população até durante períodos normais.

Tudo isto, claro está, foi necessário para alimentar a banca e o sector privado da saúde, que suga dinheiro público com todo o tipo de esquemas patrocinados pelos sucessivos governos — por exemplo, estabelecer os preços e receber pagamentos do Estado para fazer diagnósticos ou cirurgias que o SNS não tem condições para fazer, receber pagamentos da ADSE para prestar cuidados a funcionários públicos que poderiam ser prestados pelo SNS, etc.

Todos os anos, mais de 50% das despesas dos hospitais privados são pagas pelo Estado. Em suma, nos últimos 10 anos, a saúde em Portugal transformou-se num dos negócios mais lucrativos para os maiores grupos económicos, como a CUF ou o Grupo Mello, com empresas privadas a viver à custa do SNS e a prestar serviços de saúde a quem puder pagar.

Agora, e depois de quatro anos de um governo PS, com apoio do PCP e do BE, reprimiu e caluniou os trabalhadores dos hospitais a cada greve e protesto que faziam em defesa do SNS, chega uma pandemia que mostra da forma mais explícita o resultado genocida das políticas seguidas pelos sucessivos governos e pela própria “geringonça”. O SNS está saturado e prestes a ser atingido por um autêntico tsunami de pacientes. A pressão que será colocada sobre os trabalhadores hospitalares é inenarrável, e os efeitos na saúde destes trabalhadores — os que protegem a saúde de toda a classe trabalhadora — são outra faceta desta catástrofe social.

Fica também claro, em tudo isto, que empresas privadas funcionam unicamente para gerar lucro, pouco importa se tomam a forma de hospitais ou de chapelarias. E de facto, para fazer frente a uma crise de saúde destas proporções, os vendedores de saúde estão a provar ser tão úteis quanto os vendedores de chapéus. Tendo-se recusado a atender qualquer doente com coronavírus, os hospitais privados mostram-se agora disponíveis não se sabe para quê nem em que termos. Tudo o que podemos esperar destes capitalistas é que suguem mais dinheiro público a troco de qualquer cuidado prestado. É mais claro do que nunca que, para a defesa da sua saúde, a classe trabalhadora conta unicamente com aquilo que conseguiu conquistar na Revolução e com toda a sua luta organizada: o SNS.

O governo descarrega o peso da crise sobre os trabalhadores

À data da escrita deste artigo, Portugal tem 785 casos confirmados de coronavírus e quatro mortes já declaradas. Estes eram aproximadamente os números de Itália — o país mais gravemente afectado — há pouco menos de três semanas. À data da escrita deste artigo, Itália tem 41.035 casos confirmados e mais mortes do que a China. São 3.405 mortes, tendo 427 ocorrido nas últimas 24 horas. Os números são tenebrosos e não há absolutamente nada que indique que a situação portuguesa terá uma evolução distinta caso se mantenham as políticas que vimos até aqui. Na verdade, a evolução pode ser ainda pior do que a italiana, como já está a ser a do Estado espanhol.

Não foi tomada uma única medida séria para travar esta pandemia em Portugal — não se fecharam as empresas não-fundamentais nem se anunciou nenhuma medida significativa de reforço do SNS, por exemplo.

Sem dúvida, a incompetência e a tacanhez dos representantes políticos da burguesia jogou o seu papel no desastre que se está a desenrolar, mas o factor decisivo não é esse. Aquilo que determina a política deste governo é o seu carácter de classe. Porque, se em relação aos trabalhadores nenhuma medida de protecção foi tomada, em relação aos empresários as medidas foram rápidas e decisivas. Ao todo, o governo já garantiu 9.200 milhões de euros de apoio ao capital, entre as quais se conta a abertura de linhas de crédito no valor de 3.200 milhões de euros. E adivinham-se injecções ainda mais robustas de apoio ao capital para muito breve, enquanto o SNS é mantido em degradação.

O governo tem-se humilhado da forma mais patética perante os grandes capitalistas. As atrozes contradições e a óbvia estupidez das medidas que tomaram só são ultrapassadas pelos discursos que nos forçam a ouvir. Marta Temido, ministra da saúde, fantasiando-se um Winston Churchill, chegou ao ponto de exigir “disciplina” dos “portugueses” — leia-se docilidade dos trabalhadores — lembrando-nos como (e citamos!) “quando a Inglaterra sofreu ataques aéreos na Segunda Guerra Mundial, os ingleses mantiveram-se a trabalhar. Mesmo durante o blitz,2 os ingleses mantiveram-se a trabalhar!”.

Esta tem sido a única preocupação do governo: manter os trabalhadores a produzir, o que significa manter a pandemia em crescimento. Nos transportes públicos, nos centros comerciais e numa quantidade incontável de empresas e locais de trabalho completamente irrelevantes para combater a pandemia, mantêm-se focos de contágio. À classe trabalhadora é exigido que continue a enriquecer os capitalistas durante este blitz viral, ignorando o perigo mortal da doença para os milhares e milhares de pessoas que constituem os grupos de risco — idosos, diabéticos, doentes cardiovasculares, asmáticos, etc.

Mas por debaixo do pavor do contágio e da terrível ansiedade que causa cada dia de trabalho, cresce uma tremenda raiva social. A nova geração de trabalhadores pode ver como nunca o desprezo completo da burguesia pelas vidas dos explorados, e em vários pontos e momentos esta raiva profunda e crescente já se mostrou à superfície. Nos centros comerciais, pequenos protestos cada vez menos espontâneos repetem-se desde domingo. As fábricas de automóveis encerraram a produção por temer o pior caso a continuassem sem o governo garantir a repressão dos operários. Nos call-centers chovem reclamações e queixas. Por todo o território, os trabalhadores falam, discutem, enfrentam de forma crescentemente colectiva toda a hierarquia de supervisores, coordenadores, administradores, enfim, capatazes ao serviço do capital. E a grande burguesia compreende isto perfeitamente. É por isso, e de maneira alguma por questões de saúde, que foi declarado o Estado de Emergência.

O Estado de Emergência e a guerra contra os trabalhadores

Ontem, 18 de Março, Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República e mais alto mordomo da burguesia, decretou o Estado de Emergência num discurso de exaltação nacional após a reunião do Conselho de Estado.

Que este passo tenha recebido, na Assembleia da República, o voto favorável do BE e a abstenção do PCP só confirma a colaboração completa que se estabeleceu entre as direcções burocráticas destes partidos e o governo dos capitalistas. Da mesma forma, a direcção da CGTP tem reproduzido o discurso dos “interesses nacionais” que lhe é pedido pela burguesia, deixando as suas bases sem orientação de luta e abandonado os trabalhadores à sua sorte. A cobardia deste governo, que se diz “de esquerda”, e a capitulação das actuais direcções partidárias e sindicais da classe trabalhadora são totais. Não há qualquer acção perante os despedimentos em massa que já estão a ocorrer, os lay-offs e dispensas sem salário ou com salário reduzido, o trabalho sob ameaça de despedimento mesmo no caso de trabalhadores que fazem parte de um grupo de risco, a utilização dos dias de férias para quarentena e todas as formas de abusos e assédio que se multiplicaram sob esta crise de saúde com total conivência do governo.

Mas a crise de saúde do coronavírus fez explodir a crise capitalista e fará explodir num prazo incerto uma crise política sem precedentes. A política de conciliação de classes nestas circunstâncias é fatal. Os últimos anos já mostravam um reforço das medidas e dos órgãos repressivos do Estado, com várias requisições civis a ser accionadas (a última no dia 17, contra os estivadores do porto de Lisboa), a repressão de greves e protestos, o despejo de milhares de famílias pobres, a contratação de mais polícias e a colaboração de todo o aparelho de Estado no encobrimento de agressões racistas. A pandemia de coronavírus prepara uma situação de explosão social e de perda de controlo por parte do Estado burguês, e por isso mesmo a burguesia deixa cair a sua máscara democrática e mostra como este sistema é uma ditadura de classe. O Estado de Emergência é um passo na preparação de uma gigantesca ofensiva contra a classe trabalhadora. O que ele tem de fundamental é a supressão de direitos democráticos, ainda que disfarçada de necessidade para a saúde pública. Isto é por demais evidente quando o decreto se foca não na necessidade de forçar empresas a fechar, mas antes na necessidade de forçar trabalhadores a trabalhar. Não são proibidos os despedimentos e os lock-outs, mas sim as greves e o direito à resistência.

Este decreto não contribuirá de maneira nenhuma para travar a expansão da pandemia. Muito pelo contrário, ao garantir que as empresas se mantêm em funcionamento, garante a continuação do contágio. É uma sentença de morte para milhares de pessoas. Nas palavras do próprio presidente, o que lhes importa é evitar “a morte da economia” — e “economia”, já sabemos, é o nome que estes senhores dão aos seus lucros.

Um programa em defesa das famílias trabalhadoras!

Esta situação é inaceitável! Não é a classe trabalhadora quem tem de pagar por esta crise. Quem tem de pagar são os responsáveis por ela, aqueles que lucraram com os cortes e as privatizações na saúde, aqueles que enriqueceram à custa da destruição de todos os serviços públicos, das políticas de austeridade, dos baixos salários e das nossas condições de miséria. Que sejam os capitalistas a pagar a crise!

O PCP, o BE e a CGTP têm de romper imediatamente com a sua política de servilismo e conciliação de classes. A sua cumplicidade com as medidas do governo para oferecer dinheiro público aos capitalistas e até mesmo o apoio que deram ao Estado de Emergência estão a levar-nos para uma catástrofe completamente evitável. Há que passar à ofensiva e exigir um plano em defesa do SNS, dos trabalhadores e da população em risco.

É preciso avançar imediatamente com estas medidas:

1. Abaixo o Estado de Emergência! Nenhuma restrição à liberdade de greve, de manifestação e de organização. Formação de comités de profissionais de saúde, utentes e delegados sindicais nos centros hospitalares para controlar a qualidade do atendimento médico e poder reclamar pelos meios necessários.

2. Nacionalização de todos os hospitais e clínicas privadas, assim como de todo o sector farmacêutico, mantendo os recursos humanos e técnicos, sem indemnizações. Basta de tratar a saúde como um negócio! É necessário tratar de forma gratuita todos os casos de coronavírus garantindo todos os exames clínicos e meios para a sua hospitalização e tratamento.

3. Investimento massivo no SNS! Contratação imediata dos milhares de profissionais de saúde em falta no SNS (médicos, enfermeiros, investigadores, técnicos, auxiliares, etc.). Reforço e ampliação dos cuidados intensivos e compra de material médico e cirúrgico necessário. Coordenação dos recursos à escala nacional com um plano centralizado. Assegurar os descansos necessários para que os profissionais de saúde possam realizar as suas tarefas em condições dignas e seguras. Garantir que as cirurgias programadas e restantes especialidades são reforçadas também com mais investimento e melhores condições.

4.Um plano de emergência para garantir as cirurgias programadas e continuar a atender a população doente e em risco. Há que pôr fim às listas de espera e garantir a continuação do funcionamento do SNS para todos os pacientes.

5. Paralisação imediata de toda a actividade produtiva que não seja essencial para lutar contra a pandemia. O governo do PS deve garantir por lei que todas as trabalhadoras e trabalhadores de fábricas e empresas que não sejam essenciais devem estar em casa com pagamento a 100%, que todos os seus empregos sejam garantidos e que não se perca mais nenhum direito laboral. Para os trabalhadores das empresas essenciais o governo deve proporcionar todos os meios de protecção sanitária necessários, impondo punição severa aos empresários que não cumpram estas medidas.

6. Os lay-offs, as reduções de horários ou a flexibilização laboral não resolvem nada e carregam sobre a classe trabalhadora as consequências desta crise, implicando brutais reduções salariais. Todos os trabalhadores e trabalhadoras devem ter os seus salários garantidos a 100%.

7. Nenhum despedimento, dispensa ou lay-off sob o pretexto do coronavírus. Nenhuma redução salarial, nem um direito a menos! Que o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social estabeleça um serviço gratuito de assistência legal para todas e todos os trabalhadores, de forma a evitar o desamparo completo — que já começa a ocorrer — frente às decisões patronais e aos seus grandes gabinetes de advogados. Que os empresários contribuam com os lucros acumulados nos últimos anos! Que se devolva o dinheiro dos resgates financeiros!

8. Controlo dos preços dos produtos essenciais para a vida diária das famílias trabalhadoras e penalização contundente de todos os especuladores. É inaceitável que as grandes superfícies comerciais e multinacionais do sector alimentar enriqueçam com a crise!

9. Anulação por lei de todos os despejos e garantia da suspensão do pagamento das rendas, eletricidade, água e serviços de telecomunicações para as famílias trabalhadoras. Mobilização dos recursos públicos para assegurar a alimentação e uma vida digna para toda a população em risco: cantinas públicas gratuitas, aumento drástico do material e do número de trabalhadores nos serviços sociais.

10. Nacionalização imediata de toda a banca de forma a colocar os recursos gigantescos do sector financeiro ao serviço das necessidades de saúde e sociais de toda a população. Esta é a única forma efectiva de lutar contra o desemprego e a pobreza para as quais nos empurram o capitalismo e os governos ao seu serviço.

Devemos preparar-nos para impulsionar acções de massas dos trabalhadores, jovens, pacientes e suas famílias, para defender as reivindicações que podem enfrentar esta crise.

O que os trabalhadores e a juventude estão prestes a enfrentar em Portugal, no Estado espanhol, em Itália e por toda a Europa é uma catástrofe social de proporções enormes que está apenas a começar e não terminará com o fim desta pandemia. A comunicação social burguesa à escala internacional já fala da “economia pós-covid”, e os dirigentes das mais importantes instituições do capitalismo admitem já que este sistema está numa situação pior do que esteve em 2008. A solução da classe dominante para esta crise será a mesma: despedimentos em massa, cortes nos serviços públicos, rebaixamento de salários, ataques aos direitos laborais e sociais, acompanhados de uma ofensiva ideológica chauvinista, machista, racista e homofóbica.

A burguesia está preparada, e como já demonstrou a sua actuação nesta pandemia, tem um desprezo absoluto pelas nossas vidas e não hesita em ir até às últimas consequências para salvar o seu sistema. À nossa classe cabe responder com a mesma clareza e determinação. Não ficaremos de braços cruzados enquanto nos entregam à barbárie! É preciso organizar a resposta e a mobilização das massas o quanto antes, construir uma esquerda revolucionária combativa e que não ceda um milímetro às pressões da classe inimiga, dessa minoria de multimilionários que julga ser dona do mundo.


Notas:

1. Dados disponíveis e em constante actualização aqui.

2. "Blitz" é a palavra alemã para relâmpago e foi o nome dado à campanha de bombardeamentos levada a cabo pela força aérea nazi contra a Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial.