Em poucas semanas ficámos a saber que Montenegro usava a mulher e filhos como testas-de-ferro da empresa Spinumviva para receber avenças de milhares de euros de várias grandes empresas. Entre estas encontra-se a Solverde, empresa de turismo e casinos que Montenegro já havia representado enquanto advogado nas negociações com o governo anterior para a prorrogação das suas concessões, o que lhes garantiu milhões de euros. Um Primeiro-Ministro descaradamente no bolso dos mesmos cartéis que nos empobrecem com o vício do jogo e álcool, a especulação imobiliária, a destruição do SNS e a concertação de preços inflacionados de bens de primeira necessidade.
Quando há um ano Marcelo empossou um governo minoritário da AD não contava que o “rural” Montenegro fizesse às claras aquilo que todos os parlamentares burgueses fazem nas sombras: receber dinheiro do grande capital para defender os seus interesses. Em vez de renunciar ao cargo, Montenegro teve esperanças de conseguir sair ileso do caso Spinumviva, submetendo-se a duas moções de censura e uma moção de confiança, contando com o apoio da maioria do seu partido e a cumplicidade do PS. O PS, garante da estabilidade burguesa, viu-se na posição de ter de salvar por duas vezes o governo, votando contra as moções de censura. Ameaçou uma comissão de inquérito a Montenegro com o objectivo de ir desgastando o PSD e ganhar eleitorado à direita, mas garantindo que a legislatura continuava. Percebendo que o desgaste de uma comissão de inquérito seria demasiado, o PSD fez all in numa moção de confiança.
Na sua votação, o PSD fez uso de todos os truques e malabarismos parlamentares — desde telefonemas durante o debate entre os dirigentes dos dois partidos a pedir uma pausa de meia hora para se reunir com o PS — para convencer o PS a apoiar novamente o governo. Tentou colocar a culpa de uma crise política e novas eleições nos ombros do PS, mas para este votar a favor seria levar a cúmplicidade para com um governo com um líder abertamente corrupto longe demais até para o partido que na última década foi o maior defensor dos grandes monopólios e da estabilidade do parlamentarismo burguês. Teve de chumbar a moção de confiança.
Marcelo podia ter tentado encontrar uma solução alternativa dentro da AD para continuar a governar, mas considerou preferível arriscar eleições que resultassem numa solução mais estável do que descredibilizar ainda mais o PSD e as instituições burguesas aos olhos da classe trabalhadora. Na altura da demissão de António Costa, Marcelo decidiu-se por eleições 124 dias depois com a intenção de dar tempo aos partidos da burguesia de se recomporem e prepararem a campanha. Desta vez não se pode dar ao mesmo luxo: uma situação internacional muito instável, a perda do poder de dissolução a partir de julho (último semestre do seu mandato) e o facto do PS ter uma direção consolidada instou-o a dar apenas 68 dias até às eleições, a 18 de Maio.

Os EUA, foco da instabilidade internacional, viram-se contra a Europa
O segundo mandato de Trump nos EUA está a ter consequências severas para a Europa. A máscara de aliado "amigável", que já apresentava frestas no tempo de Biden — por exemplo com a imposição, reforçada com a destruição do gasoduto Nord Stream, da compra de gás a preço quatro vezes superior ao russo —, caiu agora por completo. Para combater o avanço do bloco imperialista em ascensão liderado pela China, a burguesia estado-unidense vira-se contra supostos aliados e utiliza todas as armas à sua disposição, como as tarifas. A aplicação de tarifas ao mercado europeu seria particularmente catastrófico para a burguesia portuguesa: os EUA são o quarto principal destino das exportações de Portugal, com um peso de quase 7% do total. O Banco de Portugal prevê que com tarifas de 25% sobre importações de produtos europeus como Trump ameaça, a economia portuguesa cresça menos 1,1% nos próximos 3 anos. Especialmente afetado seria o mercado das bebidas alcóolicas que Trump ameaça taxar a 200%, sendo os EUA o segundo maior mercado dos vinhos portugueses.
Mas a pior facada para os vassalos europeus foi o fim do apoio militar dos EUA à Ucrânia e a negociação de paz entre os EUA e a Rússia, ignorando-os e a Zelensky. O declínio da UE — acelerado pela guerra na Ucrânia — e dos próprios EUA frente à China está a fazer com que a burguesia estado-unidense tenha deslocado as suas prioridades para o controlo de outras regiões, como as Américas. Assim, a perda de importância relativa da Ucrânia para os EUA e o facto de quererem recuperar rapidamente o investimento na guerra através da exploração de terras raras ou energia nuclear ucranianas fez com que os EUA tenham decidido acabar a guerra. Culparam a EU por não contribuir o suficiente para o esforço de guerra, para assim evitar assumir mais uma derrota.
Os dirigentes europeus resolveram pegar onde os EUA largaram, anunciando um plano de despesa pública de mais de 800 mil milhões de euros para rearmamento europeu de forma a continuar a guerra. Os mesmos governos que cortaram nos apoios sociais e no investimento público em saúde e educação levantam agora os tetos da dívida para poder esbanjar em armamento! A desculpa oficial seria o perigo de uma “invasão russa” que avançasse para lá da Ucrânia e o abandono dos EUA como parceiro de defesa fiável. Mas o seu verdadeiro interesse é a reindustrialização como forma de travar o declínio da UE. Na verdade a reindustrialização demorará vários anos e até lá a UE terá de continuar a comprar armas aos EUA — principal parceiro com dois terços do mercado — e a endividar-se — pelo menos 150.000 milhões serão conseguidos com recurso a dívida pública — o que a afundará ainda mais enquanto bloco imperialista. Este armamento será ainda usado para combater o "inimigo interno”, ou seja, a classe trabalhadora, e potencia o crescimento do nacionalismo e da extrema-direita.
A burguesia sem opção política fiável perante a crise do parlamentarismo e dos partidos tradicionais
Este governo demissionário tomará medidas urgentes para a burguesia como a “via verde” de trabalhadores imigrantes para colmatar a falta de mão-de-obra de alguns sectores que ameaça a subida de salários ou, com o apoio do PS, o envio de uma tranche de milhões de euros para a Ucrânia. Mas outros processos, como a privatização da TAP, ficarão em lume brando. Neste contexto de instabilidade, a burguesia quer diminuir ao máximo o tempo de um governo de gestão sem autoridade para tomar certas medidas. A Confederação Empresarial de Portugal pediu uma solução rápida, e Marcelo acatou. Mas falta-lhe uma opção política que lhe garanta estabilidade.
A crise dos partidos tradicionais já se havia expressado nas eleições legislativas do ano passado, onde apenas 54 mil votos e dois deputados separaram a AD do PS, ambos com minoria no parlamento. Marcelo decidiu arriscar um governo minoritário da AD, confiando que pudesse evitar instabilidade através do apoio parlamentar do PS ou mesmo do Chega. O plano foi resultando. O governo privatizou centros de saúde e preparava-se para privatizar hospitais para abrir o SNS aos privados, e foi adiando o aumento de salários e contratação dos exaustos profissionais de saúde, resultando no quádruplo de urgências encerradas em comparação com o ano anterior. Reverteu as políticas de habitação que protegiam inquilinos e alterou a lei dos solos, para aumentar os lucros do turismo e da especulação pelos bancos e grandes fundos imobiliários, expulsando a classe trabalhadora para cada vez mais longe do centro das cidades e aumentando o número de pessoas a morar em casas auto-construídas e nas ruas. Acabou com a manifestação de interesse, dificultando a legalização dos trabalhadores imigrantes para manter baixos os salários de toda a classe trabalhadora, e montou uma campanha de ataques policiais sob o pretexto duma “insegurança” imaginária para fazer deles o bode expiatório de todas estas crises que acentuou. Nem o governo nem a hoste de comentadores burgueses consegue envernizar os resultados destas políticas: estamos mais pobres e as crises do SNS, da educação e da habitação só aumentaram, assim como a nossa raiva para com a AD e este sistema.
Ao avançar com Montenegro como candidato, o PSD comprometeu uma possível união do voto da direita em si para travar o PS. Pelo contrário, num contexto de ascenção da extrema-direita a nível internacional, galvanizada por Trump, haverá muito provavelmente uma transferência de votos do PSD para o Chega. Uma camada recuada da classe trabalhadora que votou no Chega o ano passado como voto de protesto está enojada com o antro de pedófilos, corruptos e ladrões que esse partido revelou ser. Mas o grosso do voto no Chega vem da pequena-burguesia arruinada e alguma burguesia a quem isso nada importa — o essencial é que ataquem os imigrantes e a esquerda de forma a garantirem os seus lucros. Montenegro tem mantido que uma coligação com o Chega está fora de questão, mas a sua derrota nestas eleições poderia catalisar um novo lider aberto a tal coligação, senão mesmo o regresso de Passos Coelho, construido como figura impoluta que podia trazer novamente estabilidade ao PSD. É este o desejado de um sector da burguesia que acredita que neste próximo período seja necessária esta coligação ultra-reacionária para que, com punho férreo, garanta a estabilidade para avançar com cortes sociais e outros ataques à classe trabalhadora para custear o rearmamento europeu e repor a perda de lucros resultante da guerra comercial.
Se a AD pôde levar adiante todas estas políticas pró-capitalistas e de ataque à classe trabalhadora foi graças à cumplicidade do PS. Abdicou a fazer oposição mesmo quando o governo se acercou das posições da extrema-direita na imigração, pelo contrário adoptando um discurso reacionário contra a manifestação de interesse, juntando-se na prática aos ataques para com os trabalhadores imigrantes. O PS teve até a oportunidade de fazer cair o governo na votação do Orçamento de Estado para 2025 (OE25), mas também aqui a sua oposição se limitou a apenas duas medidas fiscais que em nada contribuíram para inverter a situação de pobreza da classe trabalhadora que se alastra a um quinto da população. Ao abster-se na votação, deixou passar o orçamento. O plano do PS parecia ser deixar o governo desgastar-se e esperar pelo fim da legislatura, mas não lhe correu como esperado. Ao abdicar de fazer oposição, em nome da estabilidade para a acumulação capitalista, deixou de ser visto pela classe trabalhadora como um partido capaz de fazer frente à direita — como havia acontecido nas legislativas de 2022 em que concentrou o voto útil e conseguiu a maioria absoluta. Assim, apesar de um ano de brutais ataques do governo de direita e da crise do PSD, o PS continua empatado com a AD nas intenções de voto.
A burguesia certamente quererá evitar um novo governo minoritário, como parece provável acontecer caso o PS ou a AD não se coliguem com outros partidos — ou mesmo com pequenos partidos como Livre e a IL, respectivamente. Não podemos descartar completamente a hipótese, ainda que remota, de um acordo do “centrão”, já pedido abertamente tanto por militantes históricos do PS — Eduardo Ferro Rodrigues — e do PSD — candidato presidencial Marques Mendes — como por sectores da própria burguesia — CEO da Sonae. Uma solução arriscada para esta última, pois implicaria o desgaste dos seus dois partidos tradicionais numa época que se prevê de ataques à classe trabalhadora. Perante a crise dos partidos, nunca houve tantos eleitores indecisos sobre em quem votar, e todos os cenários estão em aberto.
Contra o sistema capitalista e a extrema-direita, construir uma esquerda combativa
Quem viu a discussão da votação no parlamento não pôde deixar de sentir nojo desta instituição burguesa e destes partidos. O parlamento já se havia tornado num circo, ocupado em mais de um quinto por fascistas do Chega e tendo como presidente Aguiar-Branco que, fazendo juz ao nome, não só branqueou os seus urros machistas e racistas em nome da “liberdade de expressão”, como frequentemente se juntou aos seus ataques à esquerda. Com a decadência do sistema capitalista é cada vez mais dificíl vender a ideia de que as instituições burguesas, instrumentos de dominação da burguesia, são “neutras” ou estão “acima das classes”.
Sabemos que nenhuma transformação social profunda será possível através de instituições burguesas ou de governos que se deixem reger pelas regras do capitalismo. Esta é uma ilusão que tem sido semeada pelas direções do PCP e do BE por décadas e que se torna cada vez mais perigosa à medida que a burguesia coloca de novo a hipótese de recorrer ao fascismo. Ouvimos os seus dirigentes continuar a defender a Gerigonça como algo positivo e voltarão a apelar por ela com cada vez maior convicção à medida que cresce a extrema-direita. Não aprenderam nada com o abraço de urso do PS e colocam-se novamente à disposição de um partido burguês que desde então só virou mais à direita e que neste período vai ter de atacar mais ferozmente a classe trabalhadora. A construção de frentes populares em união com sectores da burguesia “democrática” como resposta ao avanço da extrema-direita está condenada ao fracasso, pelo contrário dando-lhe mais força.
O PCP e o BE também estão em crise, precisamente devido à política de conciliação de classes, do cretinismo parlamentar e da defesa das instituições burguesas, assim como da necessidade das burocracias, para manterem o controlo, asfixiarem a democracia interna e fazerem uso de práticas no próprio partido diametralmente opostas àquelas que defendem publicamente, quais patrões burgueses. Enquanto esta situação continuar de nada vale chamarem dirigentes históricos — a admissão de que não conseguem formar novos quadros — para concorrem às eleições: com maior ou menor expressão parlamentar, as suas crises continuarão a aprofundar-se.
Não devem legitimar ou “salvar” o parlamento, os partidos ou o sistema burguês, mas precisamente o contrário, aproveitar as suas crises para os denúnciar e para construir uma esquerda combativa que organize e mobilize a classe trabalhadora para manifestações e greves nas ruas e locais de trabalho, trazendo à sua atenção que são estes últimos os verdadeiros centros de poder, onde organizados em assembleias (sovietes) poderiam organizar democraticamente a produção, como aconteceu de forma embrionária durante a Revolução Portuguesa.
A classe trabalhadora está disposta a isso: muitas vezes contra a vontade destas direções fez greves em numerosos sectores, mobilizou-se em massa contra o assassinato de Odair Moniz e as operações nos bairros periféricos de Lisboa e na rua do Benformoso pela polícia racista, contra o genocídio sionista e mais recentemente contra os despejos e demolições de casas autoconstruidas. O pessimismo e falta de confiança destas direções e de alguns sectores da esquerda na classe trabalhadora são consistentemente refutados pela realidade.
Mas enquanto comunistas revolucionários tampouco somos esquerdistas que desprezam as eleições burguesas e pedem a abstenção. Se a classe trabalhadora não votar à esquerda, deixa o caminho aberto à direita e à extrema-direita. Tal como foi mais fácil para os bolcheviques organizar politicamente a classe trabalhadora no período de democracia burguesa depois da Revolução de Fevereiro do que durante a ditadura czarista, será hoje mais fácil aos revolucionários organizarem a classe trabalhadora sob governos de esquerda — e mesmo social-democratas, apesar do seu crescente autoritarismo — do que sob os ataques de governos da direita e extrema-direita — como os levados a cabo nos EUA pelos Republicanos sob a direção de Trump.
Será a classe trabalhadora na Europa a pagar o desespero da burguesia europeia em resistir à poderosa burguesia chinesa — que já lidera sectores tão importantes como o dos carros elétricos — e aos zigzags da burguesia estado-unidense. Sem dúvida que se voltará a erguer em manifestações multitudinárias em defesa dos seus direitos. A nossa tarefa é construir a organização revolucionária que, dotada de um programa socialista, indique então o caminho da revolução à sua classe: expropriar os grandes monopólios e bancos para podermos ter salários dignos, casas para viver, saúde e educação públicas, gratuitas e de qualidade, inverter o desastre ecológico e varrer a corja burguesa e fascista para podermos viver com dignidade e em paz.
Junta-te à Esquerda Revolucionária para construirmos essa organização!