No final de 2019, um ano marcado por intensas tempestades tropicais, fogos e cheias catastróficas, a China reportou à Organização Mundial da Saúde a existência de um novo vírus preocupante na cidade de Wuhan. Meses mais tarde, a Covid-19 espalhar-se-ia pelo mundo, tornando-se numa pandemia responsável por milhões de mortes e catalisadora da maior crise económica desde a Grande Depressão.

Os meios de comunicação burgueses têm retratado esta pandemia de duas maneiras: como um fenómeno da natureza, divorciado da influência humana e impossível de evitar, ou como sendo da responsabilidade da China, dando origem a inúmeras teorias da conspiração e a uma onda de racismo contra pessoas asiáticas por todo o mundo.

No entanto múltiplas publicações científicas relatam claramente qual o principal fator por detrás do surgimento de novas pandemias: o ritmo crescente de desflorestação, o comércio em grande escala de animais selvagens vivos e as práticas inseguras de criação de gado que facilitam a transmissão de novos patógenos de animais para pessoas e o surgimento de doenças infeciosas. Numa dessas publicações lê-se: “Por causa da nossa má relação com a natureza, estes eventos já estão a acontecer com mais frequência: mais de 335 surtos de doenças infeciosas emergentes foram notificados em todo o mundo entre 1940 e 2004 — mais de 50 por década”1. Uma relação decidida por um punhado de capitalistas que controlam os meios de produção. A exploração insustentável do planeta em busca de lucro fará com que um fenómeno como esta pandemia — que em pouco mais de ano e meio matou mais de 4,6 milhões de pessoas — surja outra vez, possivelmente mais transmissível e mortal.

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A exploração insustentável do planeta fará com que um fenómeno semelhante à pandemia da Covid-19 surja outra vez, provavelmente mais transmissível e mortal.

O capitalismo mata o planeta

Mas o surgimento da Covid-19 está longe de ser a única catástrofe relacionada com os efeitos ambientais da exploração capitalista.

No último verão, uma onda de calor com temperaturas recorde de 49,6ºC assolou a América do Norte, causando quase 800 mortos no Canadá e mais de 200 nos Estados Unidos. É resultado do aumento da temperatura mundial que reduz a diferença de temperatura entre as correntes de jato polar, enfraquecendo-as e possibilitando a ocorrência de eventos cada vez mais extremos. De acordo com os dados históricos, um fenómeno destes deveria ocorrer apenas uma vez de alguns em alguns milhares de anos. No entanto, alguns modelos climáticos prevêem que possa voltar a ocorrer já no final desta década.

Na Europa assistimos a cheias catastróficas que fizeram mais de 180 mortos na Alemanha e 41 na Bélgica, cidades inteiras completamente inundadas, incontáveis casas destruídas assim como estradas e pontes, e dezenas de desaparecidos. Na Turquia, lutou-se simultaneamente contra os terríveis incêndios que queimaram aproximadamente 1.700 Km2 e contra as cheias que mataram 81 pessoas, forçaram a evacuação de mais 1800 e causaram danos imensuráveis nas infraestruturas da região norte do país. Também estes fenómenos extremos deveriam acontecer uma vez por geração, mas irão ocorrer com cada vez maior frequência e intensidade.

“Capitalismo Verde” e outras mentiras da burguesia...

Estes terríveis acontecimentos aumentam as preocupações da população mundial sobre como impedir o aquecimento do nosso planeta, e as suas consequências.

A burguesia tenta empurrar a culpa deste fenómeno para a classe trabalhadora criando conceitos como o “consumo ético” ou “responsabilidade individual”. “São os trabalhadores que comem demasiada carne, utilizam roupas de marcas de fast-fashion e demasiados artigos de plástico”. No entanto sabemos que a pegada ecológica das grandes multinacionais e dos bilionários — especialmente agora que procuram levar o capitalismo ao espaço — está várias escalas de magnitude acima da da classe trabalhadora. O Carbon Majors Report2 revelou que desde 1988, apenas 100 empresas são responsáveis por 71% das emissões de gases com efeito de estufa para a atmosfera e apenas 25 empresas de combustíveis fósseis são responsáveis por 51% dessas mesmas emissões. O problema reside principalmente no modo de produção, não no consumo.

Também a narrativa de superpopulação se torna cada vez mais utilizada, colocando a culpa nas camadas mais pobres dos países neocoloniais e aumentando o número de ataques por parte de ecofascistas — como se descreviam os autores dos tiroteios em Christchurch na Nova Zelândia ou em El Paso nos Estados Unidos. Esta perigosa narrativa lança a ideia que o aumento do número de pessoas no planeta é responsável pela escassez de recursos. Na realidade produzem-se alimentos suficientes para alimentar mais de 10 mil milhões de pessoas. O problema está no caráter anárquico do modo de produção capitalista que impede um planeamento centralizado da produção e da distribuição de alimentos. Como resultado existem largas camadas da população dos países neocoloniais a sofrer de fome enquanto que nos países mais ricos toneladas de comida são propositadamente destruídas devido a crises de sobreprodução. A fome não é um fenómeno natural, mas sim resultado do sistema vigente.

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Cheias catastróficas fizeram mais de 180 mortos na Alemanha, 41 na Bélgica e dezenas de desaparecidos - podes ler aqui o artigo Inundações na Alemanha e Bélgica: As políticas de austeridade e o capitalismo são os responsáveis pela tragédia.

Não surpreendentemente, muitas empresas tentam lavar a sua imagem e apresentar-se como aliadas da luta climática. É o caso da Coca-Cola, que diz produzir “bebidas ecológicas” enquanto permanece uma das 20 empresas que mais polui os oceanos, ou de marcas de roupa como a H&M que apresentam coleções feitas de material reciclável enquanto que a poluição resultante das suas práticas de produção continua a fazer terríveis estragos ao meio ambiente, principalmente em países asiáticos para onde deslocalizou a produção em busca de mão-de-obra mais barata e com menos direitos laborais.

Governos capitalistas de todo o mundo tentam apresentar os protocolos ambientais e as cimeiras climáticas como forma de garantir um futuro mais sustentável. No entanto, num sistema em que os Estados competem por melhor se posicionarem no mercado mundial face à concorrência, as suas necessidades, especialmente num período de crise económica, sobrepor-se-ão sempre à questão ecológica, o que faz com que as metas sejam sistematicamente desrespeitadas.

Num período marcado pela competição entre os Estados Unidos e a China isso é particularmente óbvio. Após a sua eleição, Joe Biden anunciou com grande pompa e circunstância que os Estados Unidos iriam regressar ao Acordo de Paris. Enquanto isso aponta como seu intermediário com o movimento climático Cedric Richmond, congressista democrata que ao longo da sua carreira recebeu chorudos montantes da indústria de combustíveis fósseis a troco de votos que favorecessem os seus negócios. As grandes petrolíferas — conhecidas como as “Big Five”: ExxonMobil, Shell, Chevron, BP e Total — destinaram desde o Acordo de Paris mais de mil milhões de dólares para atrasar e combater qualquer iniciativa desenhada para combater as alterações climáticas e assim prosseguir com a exploração de combustíveis fósseis. Já a China, que tinha no seu programa quinquenal de 2015-2020 a intenção de reduzir a utilização de petróleo e carvão, não só não o fez como ultrapassou os Estados Unidos em 2017 como principal importador de petróleo.

...em que o governo português também alinha

Em Portugal, o governo de Costa faz de tudo para proteger os interesses do capital à custa do nosso meio ambiente. A exploração do lítio, que traz preocupações legítimas às populações locais devido à terrível poluição, foi apresentada como um grande passo em direção à transição energética, apesar da extração deste mineral, a sua refinação, e a geração da eletricidade que alimentará as baterias serem altamente poluentes. As próprias baterias de lítio têm uma vida útil de apenas 7 a 10 anos, tornando-se elas próprias um grave problema ambiental caso não sejam recicladas.

Um percurso semelhante se vê com a produção do chamado hidrogénio “verde”. A Comissão Europeia apresentou em julho do ano passado uma visão para promover o hidrogénio renovável, estimando que os investimentos poderiam vir a atingir “entre 180 e 470 mil milhões de euros até 2050”! O governo português, tomou como boa referência o cenário máximo, algo que atraiu a atenção de imensos investidores privados, que se vêm interessados num potencial negócio financiável em boa parte com dinheiro público.O hidrogénio é um gás muito reativo e com elevada fugacidade, que quase não existe no seu estado livre na natureza e a sua utilização para a produção de energia tem diversas desvantagens: exige enormes cuidados na sua manipulação por ser perigoso, armazena muito pouca energia num dado volume e tem que ser produzido através de processos que implicam consumo de diversos recursos minerais, hidrológicos e um elevado consumo energético.

Nestes casos, como em muitos outros, vemos o governo PS a utilizar o pretexto da transição energética apenas para mostrar uma total subserviência aos interesses do grande capital na sua busca pelo lucro máximo, ignorando as reais consequências climáticas destes projetos e evitar ao máximo qualquer projeto que possa vir efetivamente a auxiliar os esforços na luta contra as alterações climáticas, como uma rede extensa, pública e de boa qualidade de transportes públicos, e a nacionalização da indústria energética.

É urgente a transformação completa de toda a produção!

Mudar de carros a gasóleo para carros elétricos não vai evitar a catástrofe climática, tal como comprar menos artigos de plástico, comer menos carne ou comprar menos roupa de fast-fashion. A culpa das alterações climáticas não pode ser colocada em cima da classe trabalhadora, pois esta não é a responsável. E por isso mesmo não é o “consumo ético” que irá evitar as consequências do aumento das temperaturas globais.

Sob o capitalismo existe uma lei, e uma lei apenas: a maximização dos lucros a todo o custo. Combustíveis fósseis são explorados porque o mercado o exige, a indústria agropecuária cresce a proporções insustentáveis porque o mercado o exige, e como consequência assistimos à destruição do nosso planeta a um ritmo que nunca vimos antes, juntamente com a destruição de milhares de espécies e milhões de vidas humanas.

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Incêndios na Turquia queimaram aproximadamente 1.700 Km2. Fenómenos extremos como este deveriam acontecer uma vez por geração, mas se não houver uma redução drástica das emissões de gase de efeitos de estufa irão ocorrer com cada vez maior frequência e intensidade.

As conclusões do recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas não deixam espaço para dúvidas: se as emissões de gases com efeito de estufa não forem reduzidas até muito próximo de 0 nos próximos anos, a catástrofe climática é inevitável3. O tipo de mudanças necessárias para o conseguirmos são impossíveis de concretizar através de mecanismos de mercado. Esperar que os responsáveis pela catástrofe atual renunciem voluntariamente aos seus lucros é uma utopia reaccionária que nunca se irá concretizar. Enfrentar a crise climática exige um choque direto com os interesses dos capitalistas que nenhum governo burguês irá colocar em causa. A solução é uma economia planificada de acordo com os interesses da classe trabalhadora e sob o controlo desta.

Nos últimos anos, testemunhámos grandes mobilizações da juventude em torno da justiça climática. Manifestações e greves às aulas tiveram a adesão de milhões de jovens em quase todo o mundo. Estas mobilizações, apesar de serem muitas vezes lideradas por elementos da pequeno-burguesia e da burguesia, têm o enorme envolvimento da juventude proletária, fazendo destas autênticos movimentos de massas na luta contra a destruição do nosso planeta.

A classe trabalhadora é aquela que mais sofre, e irá sofrer cada vez mais, com as consequências das alterações climáticas. É, portanto, o papel da nossa classe de nos mobilizarmos, e cabe aos marxistas trazer um programa ecologista revolucionário, que mobilize cada vez mais juventude em nome da justiça climática, que encare o problema diretamente, indo até às suas raízes, e que enfrente aqueles que pretendem esconder os verdadeiros motivos e os verdadeiros responsáveis por esta crise. Que esta luta sirva não só como uma luta contra as alterações climáticas, mas como uma luta contra o próprio capital!

Notas:

1. O grupo Preventing Pandemics at the Source apresenta um enorme conjunto de artigos e publicações científicas sobre as origens deste vírus e de muitos outros como o ébola e o VIH.

2.  CDP Carbon Majors Report 2017

3.  Climate change widespread, rapid, and intensifying – IPCC

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