Às 14h43 do dia 17 de Junho, um sábado, era dado o alerta de incêndio em Pedrógão Grande. Antes de ser travado, consumiria 53 mil hectares de floresta e faria mais de seis dezenas de vítimas mortais.

Colunistas de todos os jornais fizeram correr rios de tinta em análises e avaliações de todos os aspectos da tragédia. Opiniões e sentenças foram incessantemente reproduzidas. Entretanto, as redes sociais foram tomadas pelo tema e os trabalhadores de todo o país procuram entender o ocorrido em incontáveis conversas e discussões. O que não foi dito, nem pela direita, nem pelo governo, nem pelas direcções da esquerda, é que estes incêndios florestais são o subproduto do capitalismo.

A comunicação social, naquilo que já se tornou uma rotina de Verão, procurou imediatamente conquistar recordes de audiência explorando a tragédia com o máximo de sensacionalismo e o mínimo de conteúdo realmente informativo. A propriedade privada dos jornais, rádio e televisão não serve senão para gerar lucro, e perante as maiores calamidades, os capitalistas são capazes apenas de perguntar-se como será possível fazer algum dinheiro.

Mas o capital que faz da informação um negócio vai mais longe, bate-se pela defesa dos interesses da burguesia enquanto classe, pela sacralização do direito à propriedade privada e ao lucro. Assim se explica como o mais mortal incêndio florestal da história do país tenha sido inicialmente retratado como um “acidente” com “causas naturais”, resultante estritamente de “condições climatéricas hostis” e de uma grande “imprevisibilidade”.

As condições climatéricas extremas — consequência do aquecimento global — são apenas uma pequena parte da questão. Fundamentalmente, este é um problema de economia política e, por isso mesmo, além de responsáveis de carne e osso, o próprio sistema é responsável. Assim se explica que António Costa tenha insistido em falar na “unidade nacional” face à “tragédia” e Marcelo Rebelo de Sousa, chorando tão bem quanto pode as suas lágrimas de crocodilo, se tenha atrevido a dizer, menos de 24 horas após o início do incêndio, que “não era possível fazer mais.”

Na verdade, ficou quase tudo por fazer. O Primeiro Ministro e o Presidente da República sabem-no e mentem para defender o capital.

Gestão capitalista da segurança pública

O Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP) é uma parceria público-privada com um consórcio de empresas (PT, Motorolla, Esegur do Grupo Espírito Santo e liderado pela Sociedade Lusa de Negócios), assinada em 2005, pelo ministro da Administração Interna Daniel Sanches, que saiu directamente da administração da SLN para o governo de Santana Lopes (PSD-CDS), que acabava de perder as eleições legislativas e, portanto, se encontrava em gestão, com um custo total de 540 milhões de euros. Este consórcio foi o único concorrente ao concurso “público”.

Já em 2006, depois de toda a burocracia estatal dar a luz verde, é o então novo ministro da Administração Interna, António Costa, que negoceia, com o mesmo consórcio, um contrato que, segundo a própria Inspecção Geral das Finanças, não tinha validade legal tal como assinado por Sanches. Disse Costa na altura: “O SIRESP assegura comunicações móveis de elevada qualidade a estes operadores, bem como a possibilidade de todos comunicarem entre si, o que é decisivo em termos operacionais e não é assegurado pelos actuais sistemas de rádio”. Seria “uma pequena revolução na segurança interna”. O custo total “baixou” para os 485,5 milhões de euros mas, um estudo de 2001 liderado por Almiro de Oliveira, especialista em sistemas de tecnologias da informação, projectou um SIRESP que, segundo o próprio, não difere fundamentalmente do actual, a não ser no facto de custar apenas um quinto do valor negociado por Costa. Portanto, não se trata de “falha de gestão”. Tudo faz sentido de um ponto de vista burguês, como provam os 10.875 milhões de euros de dividendos distribuídos em 2016 aos accionistas do SIRESP, um dia após a falência do seu maior accionista à data, a sociedade Galilei.

Claramente, a segurança pública era a última preocupação dos vários governos capitalistas que pariram este negócio de milhões. Pior, as mesmíssimas qualidades revolucionárias que António Costa gabava ao sistema foram aquelas que contribuíram para a morte de 64 pessoas.

Ao longo das últimas três décadas foi sendo dissolvida quase toda a estrutura pública de protecção das florestas, incluindo a supressão do Corpo Nacional de Guardas Florestais — novamente por António Costa. O investimento público nestas estruturas é marcadamente insuficiente, com os bombeiros mal equipados e mal-pagos, além de dependentes de um gigantesco corpo de voluntários por todo o país.

Mesmo depois da tragédia, o governo pretende manter o SIRESP sob controlo privado a todo o custo. A nacionalização e o controlo democrático de um sistema de emergência e segurança nacional é assunto tabu: não se questiona o capital!

O modo de produção

A principal força por detrás destes incêndios, portanto, é o modo de produção. A propriedade privada da terra correspondente a mais de 85% da floresta portuguesa, o que implica a ausência total de planificação da produção e da segurança, a negligência extrema de todos os aspectos do território que não sirvam o lucro. Os pequenos proprietários das terras (na sua esmagadora maioria propriedades com menos de 5 hectares) são forçados, pela legislação, e especialmente a Política Agrícola Comum (PAC) que é imposta pela União Europeia, a render-se à monocultura do eucalipto para vender a madeira, a baixo preço, aos grandes beneficiários de todo este processo: os capitalistas da indústria papeleira.

Assim se explica o processo de transformação de Portugal no país europeu com a maior área plantada de Eucalyptos globulus — 812 mil hectares —, apesar de este se tratar de um dos mais pequenos países da Europa. Em termos relativos, Portugal detém mesmo o recorde mundial de área plantada desta espécie, com 8,8% do território nacional completamente entupido por eucaliptos, ou seja, 26,6% da área florestal do país coberta de uma das espécies de árvore mais inflamáveis.

A isto vêm juntar-se os problema das condições climatéricas muito mais propícias a incêndios e do abandono das populações envelhecidas pelo processo de êxodo rural, sem acesso às mais elementares estruturas de serviços públicos de saúde, educação, transportes ou, como tão tragicamente ficou provado neste caso em particular, emergências e socorro. De facto, é isto que explica como uma grande parte das propriedades está hoje abandonada.

O que temos, em suma, é uma combinação mortal de fenómenos gerados pelo movimento do capitalismo: a propriedade privada da terra, a fragmentação dessa propriedade através do regime de herança, a divisão internacional do trabalho que atribui a Portugal o lugar de produtor de papel, a busca cega pela acumulação de capital através de monopólios garantidos pelo Estado, o aquecimento global e consequentes fenómenos climatéricos extremos, a austeridade, a pauperização e a desertificação das regiões rurais. Eis, sucintamente, as bases económicas e políticas dos incêndios anuais que sofremos.

Um programa socialista para a floresta

Novas tragédias são inevitáveis em capitalismo, não só nas zonas rurais e desprezadas pelo Estado, mas também nos centros urbanos. O recente incêndio de Grenfell Tower, a torre de apartamentos em Londres, é outra horrenda demonstração deste facto. Tudo o que o capitalismo tem para os trabalhadores, para os jovens e para os camponeses é a pobreza e a morte. Ainda em Abril deste ano o Ministério da Agricultura, pressionado pela indústria papeleira, garantia o apoio ao sector através de fundos públicos, nacionais e comunitários, destinados à exploração florestal.

Se considerarmos que, de acordo com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, o pinheiro bravo e o eucalipto representam, de longe, as espécies mais afectadas por incêndios florestais, 74% da floresta ardida entre 2006 e 2015, é impossível pensar numa solução sem uma transformação na indústria do papel. Este sector é o segundo maior exportador nacional, faturando mais de 1,5 mil milhões anualmente.

É urgente nacionalizar, sob gestão dos próprios trabalhadores, este sector-chave, colocando os seus recursos ao serviço da maioria através da planificação democrática da floresta. Sem esquecer os pequenos proprietários que devem ser plenamente indemnizados, e os pequenos produtores apoiados por uma banca nacionalizada que os livre do garrote da grande indústria e das restrições da UE.

Finalmente, é preciso acabar com a gestão privada dos serviços públicos e de emergência. O SIRESP deve ser nacionalizado e gerido democraticamente, o corpo nacional de bombeiros profissionalizado e o Corpo Nacional de Guardas Florestais reactivado sob controlo democrático.

 

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