Sentindo falir todas as promessas de prosperidade com a crise, a juventude irrompeu na política. Milhões de jovens iniciaram uma frenética experimentação de formas de luta, inclusivamente contra a opressão sexual. A marcha internacional de mulheres, em 2017, foi a maior demonstração popular de rejeição do machismo e LGBTfobia de que há memória, tendo apelado a uma greve internacional e sido inquestionavelmente dirigida por mulheres! Mais do que nunca, precisamos de uma explicação para a opressão sexual e de um programa para a sua abolição.

Um avanço da consciência

A primeira onda de luta foi marcada pelas correntes da política identitária, fundadas na academia sob o neoliberalismo, que acusam o marxismo de reduzir toda a realidade à luta de classes e desenvolvem teorias sobre formas de opressão abstraindo-as da exploração económica.

No período de derrotas históricas do movimento operário, estas ideias foram as mais progressistas com visibilidade dentro das universidades. Entre os filhos de trabalhadores que acediam à universidade, as camadas mais avançadas eram precisamente os sectores sexualmente oprimidos. Isto explica como muitos dos jovens que encheram as ruas nos EUA e na Europa tinham como referência a política identitária. Mas a luta é um teste para quaisquer ideias.

Os jovens proletários de todas as “identidades”, nos protestos, viam-se juntos e reprimidos como um todo pelo Estado. Além disto, a juventude que iniciou a primeira onda de luta foi brutalmente empobrecida. Deparou-se não só com machismo, LGBTfobia e racismo (que se agigantaram), mas igualmente com desemprego, precariedade, baixos salários, a crise da habitação, o difícil acesso a serviços de saúde, em suma, com aquilo que caracteriza a condição da classe trabalhadora: a insegurança. Uma trabalhadora precária vê-se na escolha entre sofrer assédio sexual ou cair no desemprego. Um trabalhador gay pode ser despedido sem qualquer justificação por um patrão homofóbico. Não é espantoso, desta forma, que muitos jovens tenham ultrapassado as formas de política identitária mais simplistas e associado diferentes formas de opressão.

As organizações marxistas, no entanto, ainda são demasiado marginais para participar determinantemente neste processo. No caleidoscópio de políticas identitárias, só as teorias da interseccionalidade puderam fazê-lo. A explosão de popularidade destas teorias deve-se exactamente ao facto de responderem a estas transformações materiais.

Segundo estas teorias, uma forma de opressão só pode ser entendida se forem tidas em conta todas as outras, porque — como o nome indica — todas elas são interseccionais, i.e., cruzam-se e relacionam-se. Apesar deste avanço, a fraqueza fundamental permanece: a fetichização da opressão. As bases materiais das várias formas de opressão são ignoradas e, assim, essas opressões são elevadas a entidades exteriores à história. O resultado é um programa limitado aos discursos e à representatividade, que propõe uma transformação cultural e se limita a exigir ao Estado capitalista que a realize — ocultando tanto a génese da opressão sexual como o sujeito histórico capaz de a abolir.

Para os trabalhadores sexualmente oprimidos, a política identitária tem a utilidade de um embrulho barato: existe para se rasgar na desocultação do que realmente importa.

Nem desde sempre, nem para sempre

O marxismo já demonstrou que o patriarcado — a dominação do homem sobre a mulher —, longe de existir “desde sempre”, surgiu com o desenvolvimento da propriedade privada, com as primeiras sociedades capazes de produzir um excedente que permitiu a formação de uma classe de proprietários de gado e escravos, criando o interesse na transmissão da propriedade de homens para filhos. Toda a classe dominada foi escravizada, e mesmo a mulher da classe dominante foi rebaixada a um meio para a acumulação de riqueza, aprisionada na economia doméstica com a sua sexualidade tiranicamente controlada. Daqui em diante, o sexo feminino e tudo o que a cada momento histórico constituiu a “feminilidade”, foi considerado inferior, vil, perigoso.

Ora, da mesma forma que o patriarcado só pode ser compreendido partindo das contradições inerentes ao surgimento da propriedade privada, as suas ramificações, como a LGBTfobia, só podem ser compreendidas a partir das contradições do modo de produção moderno, o capitalismo, e acima de tudo através da sua contradição fundamental: a que existe entre capital e trabalho, entre quem é dono dos meios de produção e quem não tem senão a sua força de trabalho.

Na sua aurora, o capitalismo mergulhou os pobres no caos social e moral. Centenas de milhares de humanos foram, em poucas décadas, arrancados do campo e das relações de produção feudais para ser lançados nas cidades industriais. A transformação violenta de servos em proletários fez estilhaçar as relações familiares. Cólera, tifo, varíola e outras epidemias ceifavam as vidas de bebés, crianças e jovens a uma velocidade que chegou a fixar a esperança média de vida dos operários em menos de 20 anos. A própria reprodução da força de trabalho ficou comprometida, ou seja, o proletariado tornou-se incapaz de produzir uma nova geração de proletários.

A burguesia descobria que os operários mortos não podem ser explorados. A solução que encontrou foi, como sempre tem sido, esculpir ao tiro e à coronhada uma sociedade que a servisse. Mas, sendo classe dominante, a burguesia é narcisista: sabe esculpir somente a sua própria forma. A produção de proletários seria feita sob o modelo burguês de família.

Em poucas décadas do séc. XIX, a Inglaterra mostrou a todas as burguesias nascentes da Europa como organizar a família proletária estável e dócil para a produção capitalista. O moralismo burguês teve o seu pico durante este período — em Inglaterra conhecido como Era Vitoriana (por coincidir com o reinado da rainha Victoria).

As práticas sexuais, que se tornaram muito variadas com a separação das esferas da produção e da reprodução social — a separação entre a vida doméstica e o trabalho — pela primeira vez na História, foram febrilmente legisladas com o ideal burguês em mente. O primeiro objectivo foi agrilhoar a mulher proletária ao trabalho reprodutivo. Para este fim, é muitas vezes mencionada a criação do “salário familiar” — um salário que permitiria a um único operário sustentar uma família nuclear (marido, esposa e filhos). Mas além de notar que o “salário familiar” nunca se realizou de facto — as mulheres continuavam a precisar de emprego —, é necessário mencionar igualmente que este “salário familiar” era pago exclusivamente a homens. A desigualdade salarial foi fundamental para conferir ao matrimónio e à família proletários a estabilidade necessária à reprodução da força de trabalho. A condenação da mulher proletária à dependência económica perante o seu companheiro de classe masculino serviu um propósito puramente económico: ao proletário, a burguesia atribuiu o trabalho produtivo; à proletária, o reprodutivo. Ambos os géneros estavam reduzidos a uma parte da unidade económica família.

Dada a posição de dependência da mulher, o lesbianismo não foi legislado nem mesmo classificado inicialmente. Mas a repressão violenta de todas as relações sexuais entre homens era indispensável ao projecto vitoriano. A própria palavra “homossexual” surgiu neste período. Sexo entre homens era punido com prisão e trabalhos forçados.

No final do século, em Inglaterra como na Europa, o proletariado seguia o mesmo modelo familiar de monogamia (para as mulheres) e heterossexualidade que servia tão bem à burguesia para garantir a acumulação de capital. A irracionalidade deste modelo é óbvia: o proletário não deixava para herança mais do que a sua miséria. Esta inconveniente verdade cobriu-a a burguesia, tão bem quanto pôde, com os farrapos ensanguentados da religião — outrora um véu que ela própria arrancou à aristocracia. A dominação de uma classe sobre outra nunca se mantém sem pelo menos duas vezes mais mentiras do que tareias.

As mentiras, no entanto, não vivem “para sempre”, e nenhum órgão repressivo do Estado pode fazer frente à força da grande maioria.

O socialismo é a liberdade sexual

Pelas vias mais cruéis, o capitalismo deu à humanidade os instrumentos para produzir em abundância. Finalmente, temos as condições para livrar a sexualidade e o amor de todos os grilhões económicos. Mas este modo de produção em crise mantém a nova geração bloqueada na contradição entre um desenvolvimento cada vez maior das práticas sexuais e amorosas e, ao mesmo tempo, uma dependência crescente da família nuclear enquanto unidade conservadora e reprodutora do capitalismo. A destruição do Estado Social significa que as suas funções passam a recair sobre a família, e a mulher vê-se cada vez mais, novamente, confinada à esfera da reprodução social.

As conquistas dos grupos sexualmente oprimidos são inseparáveis das conquistas históricas do proletariado. Em capitalismo, quando não são apagadas, estas conquistas são transformadas em privilégios dos ricos. Sem o Serviço Nacional de Saúde, público e gratuito, de que nos serve o direito ao aborto ou o direito à auto-determinação de género? Sem direitos laborais e contratação colectiva, de que nos serve o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo? Sem um sistema público e gratuito de ensino, assim como de creches e jardins de infância, de que nos serve o direito à coadopção de crianças por casais do mesmo sexo? No desemprego, na precariedade e na miséria crescente, de que nos serve um direito tão elementar como o direito ao divórcio?

A sociedade de classes não só gerou a opressão sexual como é a garantia da sua manutenção. É por compreender isto que nós, marxistas, somos intransigentes na defesa de um movimento de libertação sexual de classe — completamente separado e independente da burguesia e dos seus partidos. Não defendemos que a luta pela liberdade sexual é paralela à luta pelo socialismo ou que simplesmente se articula com ela. Para nós, marxistas, a luta pela liberdade sexual é a própria luta pelo socialismo, e uma organização só pode considerar-se socialista se combate contra o machismo e a LGBTfobia também dentro do movimento operário.

Sem a compreensão científica da opressão sexual e sem uma acção revolucionária contra ela, é impossível criar a unidade e a organização necessárias para alcançar o socialismo, para colocar todos meios de produção e todos os meios de reprodução social — todas as empresas, mas também os hospitais, escolas e o trabalho doméstico socializado — sob o controlo democrático dos trabalhadores.

Da mesma forma, sem alcançar o socialismo, todos os direitos sexuais, todas as conquistas dos sectores sexualmente oprimidos da classe trabalhadora são, como hoje é por demais evidente, temporários. A cada crise, como a cada recuo da nossa classe, o inimigo ataca por todos os meios os nossos salários, os nossos direitos, a nossa liberdade.

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