O Médio Oriente oferece um exemplo vivo da natureza da época em que vivemos. Antes da chegada da covid-19, esta região do mundo já tinha sofrido uma completa ruptura da ordem que se estabeleceu após a queda do stalinismo.

Tensões e guerras interimperialistas, divisões na classe dominante e tendências bonapartistas, etc, combinaram-se de tal forma que deram lugar a levantamentos revolucionários na Argélia, Sudão, Iraque, Líbano ou Irão. A pandemia não fez mais do que exacerbar as contradições que levaram a esta situação, na economia, nas relações internacionais e na luta de classes.

Da arrogância à impotência: os problemas de Washington acumulam-se

Se olharmos para trás, o barril de pólvora que é o Médio Oriente não deixou de ser uma das grandes encruzilhadas da política mundial e o palco de um "grande jogo" para onde todas as potências imperialistas têm mobilizado recursos económicos, políticos e militares na tentativa de conquistar uma influência decisiva. As riquezas de petróleo e gás, o seu caráter estratégico como pólo comercial, conferem à zona um valor superlativo sobre o qual não nos iremos deter.

Desde a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 1991, e especialmente em 2003, o frágil equilíbrio regional foi perturbado para sempre. Posteriormente, a grande recessão de 2008 acentuou ainda mais a instabilidade e a desigualdade crónica, incitando uma população subjugada e humilhada a expressar a sua fúria no final de 2010 durante a Primavera Árabe. A derrota daquela revolução, apesar do heroísmo demonstrado pelas massas em luta, causou todo tipo de distorções: fortaleceram-se regimes reacionários no Egito, Arábia Saudita, Israel, Irão e Turquia, surgiu o Estado Islâmico e a guerra arrasou a Síria, a Líbia e o Iémen. Mas estes acontecimentos não resultaram no fortalecimento do imperialismo ocidental, nem tampouco cessou a irrupção de novas revoluções e levantamentos populares. 

Na última década, um acontecimento de enorme importância para as relações mundiais moldou de forma decisiva o cenário atual do Médio Oriente: o declínio dos Estados Unidos e a ascensão da China.

O imperialismo estado-unidense, embora continue a ser a maior potência militar do mundo, foi incapaz de manter a sua estratégia de longo prazo. A ideia de que poderia intervir e manter a sua presença armada em qualquer lugar, que se tinha tornado palpável após o colapso da URSS, deu lugar a uma realidade muito mais complexa e difícil para Washington e que está diretamente relacionada com a crise do capitalismo global. Por exemplo, depois de 18 anos de guerra no Afeganistão, o reconhecimento da sua incapacidade para governar o país forçou-os a chegar a um acordo com os Talibãs, que dominam mais de metade do território. No Iraque, apesar de levar a cabo ações altamente mediáticas, como o assassinato do general iraniano Soleimani há um ano, o resultado da invasão foi fazer do Irão a potência estrangeira com maior influência na política iraquiana e no seu governo.

Os EUA têm tentado "sair do Médio Oriente" desde a chegada da administração Obama. Depois de superar temporariamente a sua dependência do petróleo saudita e de se converterem no maior produtor mundial de petróleo — graças à tecnologia selvagem do fracking — mudou a sua política externa para se concentrar no Pacífico e fazer frente ao avanço imparável da China. Há quatro anos Trump prometeu acabar “com as intermináveis ​​guerras estrangeiras". Na prática, isso significava evitar a todo custo a deslocação de tropas dos EUA para os cenários de maior conflito e não alimentar o descontentamento dentro dos EUA, ao mesmo tempo que dava carta branca aos seus aliados mais reacionários: Israel, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (EAU). Mas quatro anos depois, a administração Trump apenas aprofundou a situação de caos.

Pelo seu lado, a China está a tecer uma extensa rede económica, militar e política para salvaguardar os seus interesses na região. Está a negociar com o Irão um acordo de 400 mil milhões de dólares focado nos setores da energia e das infraestruturas para os próximos 25 anos. Nesses mesmos setores, mantém projetos estratégicos com os principais aliados de Washington — Israel, Egito, Arábia Saudita, EAU e Qatar — e com os demais países da região. A China tornou-se o primeiro parceiro comercial dos países do Golfo, acumulando 15% das exportações e das importações desses países. Já Israel quadruplicou os seus investimentos em poucos anos e é já o seu terceiro parceiro comercial. Esta é a razão pela qual os EUA não podem simplesmente abandonar a principal arena de confronto pela supremacia mundial.

Mudanças e rupturas de alianças

É neste contexto que devemos analisar os chamados Acordos de Abraão, promovidos por Israel e EAU em agosto passado, sob a bênção de Trump. Diversos motivos explicam este pacto. Em primeiro lugar, os seus mentores estão a utilizá-los para tentar reforçar a sua posição doméstica. Netanyahu e Trump passavam por uma gestão desastrosa da pandemia e enfrentavam repercussões sociais nas ruas. O presidente estado-unidense estava à procura de algo para oferecer que encobrisse o fiasco da sua política externa com a aproximação das eleições de novembro. Por sua vez, Mohamed bin Zayed — príncipe herdeiro e governante de facto dos EAU — tenta posicionar-se num ambiente regional turbulento, luta para assumir a liderança do bloco sunita na região e enfrentar os seus dois concorrentes mais poderosos: o Irão e, acima de tudo, a Turquia.

A Arábia Saudita tem sido o principal aliado de Washington no Golfo durante décadas, mas nos últimos anos começou a desenvolver uma política mais independente. Um processo que se acelerou com a chegada de Trump e se cristalizou com Mohamed bin Salman, que alcançou a sua posição de príncipe herdeiro ao travar uma autêntica guerra civil contra os seus opositores na família real saudita. Por trás dessa operação, muitos também viram a mão de bin Zayed.

Mas no Médio Oriente, a rede de interesses das oligarquias dominantes, das suas fações e subfações, alimenta todo tipo de conspirações e rápidas mudanças de alianças. Esta é a norma quando a economia e a política internacional estão submetidas a convulsões extremas. Os desentendimentos dos EAU com a Arábia Saudita sucedem-se em crescendo no último período. No Iémen, os EAU têm desenvolvido as suas ambições imperialistas ao estimular a divisão do sul do país. Em relação à Turquia, a beligerância dos EAU para com Erdogan é total — como se viu na guerra da Líbia. No entanto, a posição da Arábia Saudita tem-se suavizado nas últimas semanas, suspendendo o boicote à economia turca duramente atingida. 

O último episódio foi o fim do bloqueio ao Qatar. A Arábia Saudita mudou de posição, após três anos sem resultados, e arrastou o resto dos países do Golfo, incluindo os EAU. Essas diferenças também se manifestam na relutância da Arábia Saudita em aderir aos Acordos de Abraão. Apesar da posição de Bin Salman, a velha guarda saudita está cautelosa, e ainda mais agora que se prepara para a chegada de Biden após a lua de mel que desfrutou com Trump.

Estes acordos não podem ser explicados sem ter em conta duas outras características fundamentais da época: as divisões internas do imperialismo e as crescentes tendências bonapartistas. O facto de Netanyahu e Trump terem promovido estes acordos não significa que a burguesia e o aparelho do Estado de Israel e dos Estados Unidos tenham uma posição homogénea. Por exemplo, após a derrota eleitoral de Trump e perante a delicada situação de Netanyahu, ambos conspiraram para realizar algum tipo de provocação contra o Irão, um movimento típico para desviar a atenção, recorrendo ao chauvinismo. Essa foi uma das causas da demissão do secretário de Defesa dos EUA e motivou o desacordo público da Arábia Saudita com Israel, depois do próprio Netanyahu ter revelado a sua participação num encontro secreto com bin Salman, em solo saudita, na véspera do assassinato do cientista nuclear iraniano Mohsen Fakhrizadeh.

O capítulo mais recente deste grande jogo foi o reconhecimento por parte de Trump da soberania marroquina sobre o Saara Ocidental e a adesão de Marrocos aos Acordos de Abraão. É evidente que a quebra do cessar-fogo da Frente Polisário respondeu a uma movimentação de fundo orquestrado não só por Marrocos. Dias antes, os Estados Unidos tinham assinado um novo acordo de colaboração militar com a ditadura alauí para os próximos dez anos, e pouco depois os EAU, Bahrein e Jordânia anunciaram a abertura de consulados no Saara ocupado. Esta movimentação no Saara é um passo decisivo para proteger o controlo do imperialismo ocidental sobre uma área geoestratégica chave e rica em matérias-primas. 

Crise política sem precedentes em Israel

Israel enfrenta, a 23 de março, a quarta eleição em menos de dois anos. O principal baluarte do imperialismo na região, construído ao longo de décadas de opressão contra o povo palestiniano, impunidade e fundamentalismo religioso, enfrenta a mais profunda crise económica, social e política da sua história. Num processo muito semelhante ao ocorrido nos Estados Unidos com Trump, o equilíbrio interno da sociedade foi rompido, com impacto direto na legitimidade das instituições do Estado, agora mais questionadas do que em qualquer outro momento da história do país.

A gestão desastrosa da pandemia e a grave crise económica traduziram-se num aumento terrível do desemprego, que passou de 4% para 21% em 2020. A figura de Netanyahu como a face visível de um regime cada vez mais reacionário e corrupto é odiada por uma nova geração de jovens e trabalhadores. Israel vive as maiores e mais extensas mobilizações desde o movimento dos indignados em 2011. Enquanto o primeiro-ministro israelita pensava em como reconhecer a derrota eleitoral de Trump, o seu maior aliado, milhares de manifestantes gritaram à porta da sua residência: “Hoje Trump, amanhã Netanyahu”. 

Como Trump, este encarna as tendências bonapartistas e de extrema direita que surgem da crise geral do sistema e mostra como estas desenvolvem a sua própria dinâmica. As suas manobras para permanecer no cargo a todo custo estão a exacerbar a crise política e a favorecer uma polarização em linhas de classe nunca antes vista. Embora um setor da burguesia israelita esteja a tentar livrar-se dele há anos, Netanyahu tem conseguido fazer-lhe frente graças ao apoio dos setores mais reacionários do sionismo e dos colonos. E continuará a fazê-lo, como mostra a autorização de 850 novas casas em assentamentos na Cisjordânia poucos dias antes da posse de Biden. O primeiro-ministro tenta manter as suas fileiras cerradas, num momento em que muitas sondagens dão o segundo lugar à coligação Yamina, também de extrema direita e fortemente baseada nos colonos.

Outro aspecto que revela a profundidade da crise política do regime sionista é a incapacidade do setor da burguesia oposto a Netanyahu para encontrar uma saída. Agrupado na coligação Azul e Branco, não o conseguiu derrotar depois de três eleições em pouco mais de um ano. Para além disso, viu-se forçado a formar um governo com Netanyahu, com o resultado óbvio de sair enfraquecido com a experiência: as sondagens preveem uma dura queda e as deserções da coligação são diárias.

As divisões da classe dominante israelita são um teste à crise geral do regime. Não lhe é possível governar como tem feito até agora, porque a população não o aceita. O descrédito da política oficial, uma crise sem precedentes das instituições burguesas e o colapso da economia pressagiam uma nova eclosão da luta de classes. Neste processo, o sionismo perdeu algumas peças importantes.

Por um lado, muitos dos antigos comandantes do Estado-Maior do Exército e dos serviços de inteligência — historicamente peças chave de sucessivos governos como forma de normalizar o militarismo do regime, e muitos dos quais todavia ainda mantêm os seus assentos parlamentares — estão queimados politicamente, marcados pela fúria dos manifestantes ou desacreditados por participarem nos esquemas corruptos de Netanyahu. Por outro lado, um pilar do regime sionista desde a sua fundação, o Partido Trabalhista, é uma memória do passado, com uma representação ridícula de três deputados num total de 120. Embora muitos lamentem a "crise da esquerda" é precisamente o contrário: o que está em crise é o regime como um todo, incluindo esta “esquerda” reformista e colaboracionista com os crimes do sionismo.

Nos últimos meses, a ação direta das massas israelitas rompeu com a demagogia e os preconceitos que a burguesia sionista utilizou durante décadas para obscurecer a luta de classes e fomentar todos os tipos de divisões sectárias. Este tem sido o único factor capaz de encostar Netanyahu à parede e não as manobras parlamentares burguesas, mostrando o enorme potencial da classe trabalhadora e da juventude para derrubar o capitalismo e um regime extremamente reacionário e violento.

Em relação à ocupação da Palestina, observamos a mesma contradição que permeia a luta de classes em todo o mundo. A situação em Gaza e na Cisjordânia está pior do que nunca, mas as políticas do Hamas e da Autoridade Nacional Palestina (Fatah) têm demonstrado uma incapacidade orgânica de liderar com sucesso a luta do povo palestiniano. Agora, a crise do estado sionista revela que a única forma de acabar com a opressão da população palestiniana e garantir o seu direito a uma vida digna sem as privações desumanas que sofrem, é derrubar o capitalismo em Israel. Uma tarefa que só pode ser bem sucedida levantando uma alternativa revolucionária internacionalista, baseada num programa marxista.

Irão, uma potência regional em crise

Os EUA foram forçados a chegar a um acordo com o Irão para poderem controlar a situação no Iraque no momento em que a ofensiva do Estado Islâmico se intensificou. Nascia assim o pacto nuclear, um acordo em relação ao qual as potências europeias há muito aspiravam para ter acesso ao petróleo iraniano e conseguir um corte nos preços.

O alívio temporário do boicote ocidental não impediu que as contradições de fundo se desenvolvessem. O regime dos mulás reforçou as suas posições na região — no Líbano, na Síria e no Iraque — mas internamente não deixou de ser posto em causa. Para superar as dificuldades internas, empregou uma repressão implacável, e recorreu ao oxigénio militar e económico que lhe ofereciam aliados como a Rússia de Putin e a China.

O capitalismo iraniano encontra-se numa situação desesperada, agravada pelos efeitos devastadores do coronavírus. A ruptura do acordo nuclear em 2018 por Trump e as subsequentes sanções exacerbaram a crise económica. A classe trabalhadora enfrenta uma crise sem precedentes. Estima-se que dos 82 milhões de habitantes do país, cerca de 57 milhões vivam abaixo do limiar da pobreza, aos quais há que somar os milhões demitidos no calor da pandemia, que eleva a taxa de desemprego para os 37%. A inflação oficial disparou para mais de 40% desde março — a real é bem mais alta — e, juntamente com o não pagamento de salários, está a impulsionar greves dos trabalhadores.

Em novembro de 2019, o regime dos aiatolas enfrentou um dos maiores levantamentos da sua história, durante os protestos de massas que se davam no Iraque e no Líbano, protagonizados pelas camadas mais jovens e oprimidas da classe trabalhadora. Só conseguiram controlar a situação exercendo a máxima repressão, com centenas de mortos e milhares de feridos e detidos. Mas a luta não parou.

Desde o início de julho de 2020, vive-se a maior onda de greves em 40 anos, iniciada no setor petrolífero. As greves e manifestações continuaram e estenderam-se até atingir o pico em outubro, o mais importante desde a revolução de 1979, afetando todos os setores da economia: agroindústria, setor do petróleo e do gás, ferrovias, municípios, agricultores... No início daquele mês, os trabalhadores do petróleo e gás organizaram a greve mais impressionante desde 1953, reunindo mais de 25.000 trabalhadores em todo o Irão. A 25 de novembro, outras cinco novas greves estouraram no setor de petróleo, exigindo os salários não pagos e que o Governo cumprisse as suas promessas.

Apesar da repressão brutal, amplas camadas da classe trabalhadora estão a radicalizar-se, um reflexo evidente das debilidades do regime criminoso dos aiatolas. A outra cara destas debilidades são as crescentes divisões na elite dirigente, entre os chamados “reformistas”, liderados pelo presidente Rohani, o aparelho religioso ultraconservador e setores ligados ao aparelho militar, um setor muito importante da burguesia iraniana que controla, calcula-se, 30% da economia.

As eleições legislativas de fevereiro de 2020 já indicavam uma tendência: com 43% de participação — a mais baixa desde 1979 — os "reformistas" alcançaram apenas 19 assentos em 290. Toda a demagogia reformista de Rohani foi desmascarada pelos ataques às condições de vida da classe trabalhadora, a corrupção, a gestão da pandemia e a repressão, que aplicou sem a menor hesitação. Em junho de 2021 serão as eleições para a presidência. Não apenas a vitória de qualquer "reformista" está praticamente descartada, como pela primeira vez um militar da Guarda Revolucionária iraniana poderia chegar à presidência.

Em relação ao "inimigo americano", a vitória de Biden e as suas declarações sobre um possível regresso ao pacto nuclear expõem mais uma vez toda a conversa fiada dos aiatolas sobre o "imperialismo". Não apenas Rohani, mas também o líder supremo Khamenei foi explícito sobre a possibilidade de se sentar de novo à mesa incondicionalmente e assinar de imediato um novo acordo.

O regime iraniano está profundamente preocupado com um levantamento social decisivo. É por isso que procuram desesperadamente uma mitigação da catastrófica crise do país. A sua prioridade é retirar as sanções, chegar a um entendimento com o imperialismo estado-unidense para que lhe dê uma pausa para poder enfrentar a situação interna e voltar a fazer negócios com tranquilidade. Os seus sucessos militares na guerra da Síria não podem esconder a dimensão e a natureza crítica do problema que enfrentam.

As aspirações imperialistas de Erdogan

A Turquia e o seu presidente ilustram perfeitamente as características da situação atual na região. A política externa turca está cada vez mais agressiva. Os seus acordos comerciais e militares, juntamente com a expansão das suas bases e intervenções armadas, multiplicam-se do Paquistão a África, entrando em conflito com numerosas potências imperialistas anteriormente aliadas como a França ou mesmo os Estados Unidos, ou com potências regionais como a Arábia Saudita e os EAU, com quem disputa a hegemonia no bloco sunita.

Erdogan explorou com sucesso e habilidade as contradições do bloco ocidental: na Síria, com o povo curdo, face à crise dos refugiados ou na luta pelos recursos de gás do Mediterrâneo. Apoiando-se nuns contra os outros dependendo do momento, tem atuado como um agente de interesses em mudança com o objetivo de se perpetuar no poder e fazer avançar os interesses capitalistas nos setores do aparelho militar e estatal que o apoiam.

O aprofundamento do caráter bonapartista do regime de Erdogan responde a uma multiplicidade de fatores, mas essencialmente à profunda crise económica pela qual a Turquia está a passar e ao recrudescimento da luta de classes. A covid-19 piorou dramaticamente a situação. O único ás que resta na manga a este aprendiz de Bonaparte é explorar ainda mais o chauvinismo grão-turco, em busca de “sucessos” no exterior que possam desviar a atenção dos gravíssimos problemas da sociedade turca, atingida pela crise e aumento brutal do desemprego — que alguns analistas já colocam acima dos 30%.

Para evitar um aumento da oposição interna, Erdogan abriu a torneira do crédito com a ideia de que ajudaria a conter a inflação. Os empréstimos aumentaram 40% desde o final de 2019 e a inflação atingiu os 12%. A lira turca perdeu 30% do seu valor em relação ao dólar em 2020 e o Banco Central desperdiçou mais de 100 mil milhões de dólares em poucos meses a tentar sustê-la.

Em novembro, mudou de direção, demitiu o ministro da Economia — o seu próprio genro — e "reorientou" a política económica. Conseguiu deter parcialmente a queda da lira e recuperar alguns investimentos de curto prazo, atraídos por taxas de juros mais lucrativas e salários muito baixos. Mas isto não muda em nada a situação geral da economia turca, muito menos a realidade diária das massas. Todas as contradições que introduz na situação irão expressar-se mais cedo que tarde na luta de classes nas ruas, como já aconteceu nas últimas eleições, quando Erdogan registou a sua maior derrota em 20 anos.

Erdogan está a preparar-se para a chegada de Biden, tal como Bin Salman e Bin Zayed, ou Netanyahu à sua maneira. A saída de Trump afeta-os a todos e têm que estabelecer as condições em que continuarão a jogar o seu grande jogo, agora com outro setor do imperialismo norte-americano que, no essencial, manterá um rumo semelhante na política externa: sem intervenções militares diretas, mas a resistir a todo o custo ao imperialismo chinês e à sua expansão no quadro da crise mais selvagem do capitalismo mundial em noventa anos. Não é de esperar, portanto, mudanças substanciais numas relações internacionais caóticas.

Erdogan diminuiu a tensão com a Arábia Saudita e com a União Europeia (UE) e enviou uma série de piscadelas a Israel. Neste último caso, até ao momento não encontrou muito mais do que um aviso de receção. Netanyahu investiu muitos esforços nas suas alianças — com os Emirados, mas também com a Grécia, Chipre, Egito, Itália e Jordânia sobre a questão do gás do Mediterrâneo Oriental —  e não tem pressa em dar nenhum presente a Erdogan.

A questão é até que ponto podem confiar uns nos outros. Erdogan guarda bem na memória o golpe de Estado de julho de 2016, no qual esteve envolvido o governo dos Estados Unidos com Biden como vice-presidente. A partir desse momento, os desafios, provocações e manobras para com os seus supostos aliados imperialistas ocidentais aumentaram em progressão geométrica.

A outra característica que define o atuação de Erdogan é a sua relação com a Rússia de Putin, cujo último marco foi a guerra de Nagorno-Karabakh, onde a Turquia apoiou e empurrou o Azerbaijão para a guerra contra a Arménia, desafiando a Rússia no seu quintal. A vitória azeri deu asas a Erdogan, tal como aconteceu antes na Síria e na Líbia. No entanto, como já acontecera nesses dois cenários, Putin foi quem mais lucrou: posicionou-se como garante do cessar-fogo após a derrota da Arménia, colocando tropas russas onde antes não as havia, incluindo em território azeri, e estabeleceu relações com o bando capitalista corrupto governante no Azerbaijão, com quem quer continuar a fazer bons negócios.

Erdogan utiliza a Rússia como contrapeso nas suas tensas relações com o Ocidente, como ficou claro na sua intervenção militar na Síria, a qual aproveitou para lançar uma ofensiva brutal contra as milícias curdas. Erdogan e Putin não são aliados, mas sim parceiros de conveniência, e isso não impede Moscovo e Ancara de competir em quase todos os lugares: Síria, Líbia e agora no Cáucaso; mas também no Sudão, no Mediterrâneo ou na Ucrânia, para onde Erdogan tem olhado ultimamente.

Os laços económicos, históricos, culturais, etc. da Turquia inclinam-na muito mais para a Europa do que para a Rússia. Pelo seu lado, com a sua associação com Erdogan, Putin introduziu um elemento importante de instabilidade na NATO e deseja continuar a aprofundá-lo ainda mais. Tudo indica que Putin e Erdogan continuarão a manter o equilíbrio como antes, mesmo que frágil. Putin precisa que a Turquia controle a última província síria nas mãos das milícias jihadistas e a Erdogan não restam muitos aliados. Por outro lado, Putin também navega entre muitas frentes numa situação muito volátil: tem mantido o controlo na Bielorrússia, mas está perdê-lo no Quirguistão e na Moldávia, onde os candidatos pró-Moscovo fracassaram. Tudo isto no contexto de uma economia russa que está a ser atingida pela queda dos preços do petróleo e pelos efeitos da pandemia.

O segundo ato da revolução árabe

Cumpre-se agora o décimo aniversário da Primavera Árabe, o movimento revolucionário imponente que varreu país após país derrubando ditaduras com décadas de existência. Nos últimos dois anos o fio foi reatado com levantes no Sudão, Argélia, Iraque e Líbano, e movimentos sociais muito importantes no Irão e em Israel, nos quais temos visto como se estão a expressar mudanças profundas na consciência das massas.

O movimento de massas no Iraque e no Líbano colocou em cheque da noite para o dia os seus regimes corruptos e décadas de divisão sectária alimentada pelo imperialismo e pela oligarquia. Conseguiu-o com os métodos clássicos da classe trabalhadora — greves gerais, assembleias, manifestações de massas... — e com uma determinação exemplar.

No Líbano, as massas derrubaram dois governos em dez meses e deram uma resposta contundente à explosão do porto de Beirute no meio da pandemia. No Iraque, o levantamento foi seguido por uma resistência heróica das massas — com mais de 600 mortos e mais de 25.000 feridos — com a sua maravilhosa juventude na linha da frente. No Sudão, embora a burguesia e o imperialismo tenham conseguido inviabilizar o movimento com a colaboração das direções reformistas, a classe trabalhadora ainda não disse a última palavra.

Este novo ato da revolução revelou a marginalização do fundamentalismo, e este é um ponto importante. O imperialismo enfrentou o jihadismo à sua própria maneira: quando, depois de o deixar fazer o seu trabalho, perdeu o seu controlo, arrasou cidades inteiras e matou milhares de inocentes para os "libertar" em Mosul, Raqa, Fallujah, Ramadi... Agora as massas fizeram-no à sua maneira, visando o regime social em que se baseia o fundamentalismo.

Embora a chegada da pandemia tenha paralisado amplamente as mobilizações, os fatores que levaram aos levantes sociais permanecem e aprofundaram-se. O capitalismo em todo o Médio Oriente está em apuros, agravado pelos efeitos devastadores do coronavírus. 

Assim podemos ver como, mesmo em países devastados pela guerra, no momento em que há um mínimo de trégua, a luta de classes emerge. Nos últimos meses, vimo-lo na Síria, na Líbia — em ambas as "capitais", Tripoli e Benghazi — e no Iémen, onde ocorreram manifestações contra as terríveis condições de vida. Ou no Curdistão iraquiano, onde no início de dezembro se desencadeou uma série de protestos sociais muito semelhantes aos de toda a região: contra o não pagamento de salários, contra a corrupção e a deterioração do nível de vida. Da mesma forma, as manifestações foram alimentadas pela juventude trabalhadora e desempregada, que não se intimidaram apesar da dura repressão que causou pelo menos nove mortes e dezenas de feridos e prisões.

No Médio Oriente vemos uma característica comum a outros processos que se estão a desenvolver no mundo: as massas encostam à parede a ordem burguesa, mas não se conseguem impor; por seu lado, a classe dominante é incapaz de desferir um golpe decisivo nos movimentos. Há um elemento chave para que esta situação se mantenha: a ausência de uma direção revolucionária. Quanto mais tempo levar para se construir, mais espaço de manobra terão os oponentes da revolução para a fazer descarrilar. 

Apesar da sua fraqueza objetiva e das suas divisões, a burguesia e o imperialismo têm uma direção e uma estratégia baseadas na experiência histórica. As massas em luta devem conquistar ainda esta direção. Há que construir partidos revolucionários de massas armados com o programa do marxismo e do internacionalismo, capazes de oferecer de forma clara e consequente um caminho para a tomada do poder e a derrota do capitalismo.

Uma vitória de qualquer país da região teria um efeito formidável em toda a região, unificando a luta dos oprimidos sob a bandeira vermelha da Federação Socialista do Médio Oriente.

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