Hoje, 21 de agosto de 2025, cumpre-se o 85º aniversário do assassinato de Leon Trotsky. Para comemorar o legado inabalável deste grande revolucionário, dirigente bolchevique da Revolução Russa e da Internacional Comunista e líder do Exército Vermelho na guerra civil, publicamos hoje O marxismo no nosso tempo, um dos seus textos mais importantes sobre a teoria económica marxista. Escrito em abril de 1939 — uma década depois da eclosão da crise capitalista de 1929 e um ano antes do seu assassinato — como introdução ao resumo que Otto Rühle fez do primeiro livro d’O Capital, é marcante pelo seu rigor, atualidade e utilidade para compreender a nossa época.
De modo a conhecer a vida e obra desta figura incontornável do marxismo, aconselhamos ainda a leitura do magnífico texto Em defesa de Leon Trotsky do camarada Juan Ignacio Ramos, dividido em três partes: primeira, segunda e terceira.
O marxismo no nosso tempo
Este livro de Otto Rühle expõe de forma condensada as doutrinas económicas fundamentais de Marx nas palavras do próprio Marx. Afinal, ninguém foi capaz de expor a teoria do valor do trabalho melhor do que o próprio Marx [1].
Alguns dos argumentos de Marx, especialmente no primeiro capítulo, o mais difícil, podem parecer ao leitor não iniciado demasiado discursivos, minuciosos ou "metafísicos". Na verdade, essa impressão é uma consequência da falta de hábito em abordar fenómenos habituais de forma científica. A mercadoria tornou-se uma parte tão omnipresente, habitual e familiar da nossa existência diária, que nem sequer nos questionamos por que razão as pessoas cedem objetos importantes, necessários para viver, em troca de pequenos discos de ouro ou prata que não servem para nada em nenhum lugar da Terra. A questão não se limita à mercadoria. Todas e cada uma das categorias da economia de mercado parecem ser aceites sem análise, como evidentes por si mesmas, como se constituíssem as bases naturais das relações humanas. No entanto, enquanto as realidades do processo económico são o trabalho humano, as matérias-primas, as ferramentas, as máquinas, a divisão do trabalho, a necessidade de distribuir os produtos acabados entre os participantes no processo de trabalho, etc., categorias como "mercadoria", "dinheiro", "salário", "capital", "lucro", "imposto" e similares são apenas reflexos semi-místicos nas mentes dos seres humanos dos diversos aspectos de um processo económico que eles não compreendem nem controlam. Para decifrá-los, é indispensável uma análise científica aprofundada.
Nos Estados Unidos, onde um homem que possua um milhão de dólares é considerado "valer" um milhão de dólares, os conceitos mercantis afundaram-se muito mais do que em qualquer outro lugar. Até muito recentemente, os estado-unidenses preocupavam-se muito pouco com a natureza das relações económicas. Na terra do sistema económico mais poderoso, a teoria económica continuou a ser extremamente estéril. Só a atual crise da economia estado-unidense, que continua a agravar-se, fez com que a opinião pública se deparasse abruptamente com os problemas fundamentais da sociedade capitalista. De qualquer forma, quem não superou o hábito de aceitar acriticamente as reflexões ideológicas pré-fabricadas sobre o desenvolvimento económico, quem não pensou, seguindo os passos de Marx, sobre a natureza essencial da mercadoria como célula básica do organismo capitalista, nunca poderá compreender cientificamente as manifestações mais importantes e mais agudas da nossa época.
O método de Marx
Tendo estabelecido a ciência como método de conhecimento dos recursos objetivos da natureza, o homem tentou teimosamente e persistentemente excluir-se da ciência, reservando para si privilégios especiais na forma de uma suposta troca com forças suprassensoriais (religião) ou com preceitos morais intemporais (idealismo). Marx libertou para sempre a humanidade de tais privilégios odiosos, considerando-a como um elo natural no processo evolutivo da natureza material; considerando a sociedade humana como a organização da produção e da distribuição; considerando o capitalismo como uma etapa do desenvolvimento da sociedade humana.
O objetivo de Marx não era descobrir as "leis eternas" da economia. Marx negava a existência de tais leis. A história do desenvolvimento da sociedade humana é a história da sucessão de diversos sistemas económicos, cada um dos quais age de acordo com as suas próprias leis. A transição de um sistema para outro sempre foi determinada pelo desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, da técnica e da organização do trabalho. Até certo ponto, as mudanças sociais são de natureza quantitativa e não alteram as bases da sociedade, ou seja, as formas de propriedade prevalentes. Mas chega-se a um ponto em que as forças produtivas maduras não podem mais ser contidas dentro das antigas formas de propriedade; então ocorre uma mudança radical na ordem social, acompanhada de convulsões. A comuna primitiva foi substituída ou complementada pela escravidão; à escravidão seguiu-se a servidão, com a sua superestrutura feudal; no século XVI, o desenvolvimento comercial das cidades levou a Europa à ordem capitalista, que imediatamente passou por várias fases. Em O Capital, Marx não estuda a economia em geral, mas a economia capitalista, que tem as suas próprias leis específicas. Marx refere-se apenas de passagem a outros sistemas económicos, a fim de explicar as características do capitalismo.
A economia autossuficiente da família camponesa primitiva não precisava de uma "economia política", uma vez que era dominada, por um lado, pelas forças da natureza e, por outro, pelas forças da tradição. A economia natural autossuficiente dos gregos ou dos romanos, baseada no trabalho escravizado, era regida pela vontade do proprietário de escravos, cujo "plano" era, por sua vez, determinado diretamente pelas leis da natureza e da rotina. O mesmo poderia ser dito da fazenda medieval, com os seus servos camponeses. Em todos estes exemplos, as relações económicas eram claras e transparentes na sua crueza primitiva. Mas o caso da sociedade contemporânea é completamente diferente. Esta destruiu as antigas conexões autossuficientes e os modos de trabalho herdados. As novas relações económicas ligaram a cidade ao campo, as províncias às nações. A divisão do trabalho abrange todo o planeta, tendo destruído a tradição e a rotina, estes laços não foram estabelecidos de acordo com um plano definido, mas sim à margem da consciência e da previsão humanas, e parece que à margem da própria humanidade. A interdependência dos seres humanos, dos grupos, das classes, das nações, que é consequência da divisão do trabalho, não é dirigida nem gerida por ninguém. Estes trabalham uns para os outros sem se conhecerem, sem perguntar pelas necessidades dos outros, com a esperança e até com a certeza de que as suas relações se regularizarão de alguma forma por si mesmas. E, em geral, é assim, ou melhor, costumava ser assim.
É completamente impossível procurar as causas dos fenómenos recorrentes da sociedade capitalista na consciência subjetiva — as intenções ou os planos — dos seus membros. Os fenómenos recorrentes objetivos do capitalismo foram formulados antes que a ciência começasse a pensar seriamente sobre eles. Até hoje, a grande maioria dos homens não sabe nada sobre as leis que regem a economia capitalista. Toda a força do método de Marx reside na sua abordagem dos fenómenos económicos não do ponto de vista subjetivo de certas pessoas, mas do ponto de vista objetivo da sociedade como um todo, da mesma forma que um cientista naturalista aborda o estudo de uma colmeia ou de um formigueiro.
Para a ciência económica, o que é decisivo é o que e como as pessoas fazem, não o que pensam dos seus próprios atos. Na base da sociedade não se encontram a religião e a moral, mas a natureza e o trabalho. O método de Marx é materialista porque vai da existência à consciência, e não o contrário. O método de Marx é dialético porque considera a natureza e a sociedade na sua evolução, e a evolução como uma luta constante entre forças em conflito.
O marxismo e a ciência oficial
Marx teve os seus antecessores. A economia política clássica (Adam Smith, David Ricardo) floresceu antes que o capitalismo envelhecesse, antes que começasse a temer o futuro. Marx prestou aos dois grandes clássicos uma homenagem perfeita de profunda gratidão. No entanto, o erro básico dos economistas clássicos foi considerar o capitalismo como a existência normal da humanidade em todas as épocas, em vez de considerá-lo simplesmente como uma etapa histórica no desenvolvimento da sociedade. Marx iniciou a crítica dessa economia política, expôs os seus erros e também as contradições do próprio capitalismo, e demonstrou que o colapso deste é inevitável. Como Rosa Luxemburgo observou, muito acertadamente, a doutrina económica de Marx é filha da economia clássica, uma filha cujo nascimento custou a vida à sua mãe.
A ciência não atinge o seu objetivo no estudo hermeticamente fechado, mas na sociedade real. Todos os interesses e paixões que dividem a sociedade exercem a sua influência no desenvolvimento da ciência, especialmente na economia política, a ciência da riqueza e da pobreza. A luta dos trabalhadores contra os capitalistas obrigou os teóricos da burguesia a voltarem as costas à análise científica do sistema de exploração e a ocuparem-se com a descrição vazia dos factos económicos, com o estudo do passado económico e, o que é imensamente pior, com a falsificação absoluta da realidade, a fim de justificar o regime capitalista. A doutrina económica ensinada nas instituições oficiais de ensino e pregada na imprensa burguesa oferece uma grande quantidade de dados objectivos, mas é totalmente incapaz de, e não tem qualquer intenção de, abraçar o processo económico como um todo e descobrir as suas leis e perspectivas. A economia política oficial está morta. O conhecimento autêntico da sociedade capitalista só pode ser obtido a partir d’O Capital de Marx.
A lei do valor do trabalho
Na sociedade contemporânea, o elo fundamental entre as pessoas é a troca. Todo o produto do trabalho que entra no processo de troca torna-se uma mercadoria. A investigação de Marx partiu da mercadoria e, a partir desta célula fundamental da sociedade capitalista, deduziu as relações sociais que se constituíram objetivamente como a base da troca, independentemente da vontade do homem. Só seguindo este caminho é possível resolver o enigma fundamental: como é que na sociedade capitalista, em que cada homem pensa em si próprio e ninguém pensa em todos, se criam as proporções relativas dos vários ramos económicos indispensáveis à vida.
O trabalhador vende a sua força de trabalho, o agricultor coloca a sua produção no mercado, o banqueiro concede empréstimos, o comerciante oferece um sortido de mercadorias, o industrial constrói uma fábrica, o especulador compra e vende acções e obrigações, e cada um deles pensa apenas na sua própria conveniência, nos seus interesses privados, nas suas próprias considerações sobre salários ou lucros. No entanto, deste caos de esforços e de acções individuais emerge um certo conjunto económico que, embora não sendo certamente harmonioso, mas sim contraditório, dá no entanto à sociedade a possibilidade não só de existir, mas também de se desenvolver. Isto significa que, apesar de tudo, o caos não é tão caótico, que, ainda que não conscientemente, se regula automaticamente de alguma forma. Compreender o mecanismo pelo qual os vários aspectos da economia atingem um estado de equilíbrio relativo é descobrir as leis objectivas do capitalismo.
É claro que as leis que regem as diferentes esferas da economia capitalista - salários, preços, rendas, lucros, juros, crédito, bolsa… - são numerosas e complexas. Mas, em última análise, todas elas derivam de uma única lei, descoberta e analisada exaustivamente por Marx: a lei do valor do trabalho, que é o verdadeiro regulador básico da economia capitalista. A essência desta lei é simples. A sociedade tem à sua disposição uma determinada reserva de força de trabalho viva. Aplicada à natureza, esta força de trabalho cria os produtos necessários à satisfação das necessidades humanas. Em resultado da divisão do trabalho entre produtores individuais, os produtos transformam-se em mercadorias. As mercadorias são trocadas entre si numa determinada proporção, primeiro diretamente e depois através do ouro ou da moeda. A propriedade essencial das mercadorias, que as equipara entre si numa determinada proporção, é o trabalho humano nelas investido ― o trabalho abstrato, o trabalho em geral ― a base e a medida do valor. A divisão do trabalho entre milhões de produtores dispersos não conduz à desintegração da sociedade, porque as mercadorias são trocadas de acordo com o tempo de trabalho socialmente necessário nelas investido. Através da aceitação e rejeição de mercadorias, o mercado, como base de troca, decide se elas contêm ou não trabalho socialmente necessário, e assim determina as proporções entre os vários tipos de mercadorias necessárias para a sociedade e, consequentemente, também a distribuição da força de trabalho entre os vários ramos da produção.
Os processos reais do mercado são imensamente mais complexos do que os que aqui se descrevem em poucas linhas. Assim, oscilando em torno do valor do trabalho, os preços flutuam acima e abaixo dos seus valores. O terceiro volume d’O Capital, onde Marx descreve “o processo de produção capitalista no seu conjunto”, explica muito bem as causas destas flutuações.
Por maiores que sejam as diferenças entre os preços e os valores das mercadorias em casos individuais, a soma de todos os preços é igual à soma de todos os valores, porque, em última análise, apenas os valores que foram criados pelo trabalho humano estão disponíveis para a sociedade, e os preços não podem ultrapassar esta limitação, nem mesmo os preços monopolistas dos trusts; onde o trabalho não criou novo valor, nem mesmo o próprio Rockefeller pode fazer alguma coisa.
Desigualdade e exploração
Mas se as mercadorias são trocadas umas pelas outras em função da quantidade de trabalho nelas investido, como é que a desigualdade nasce da igualdade? Marx resolveu este enigma expondo a natureza peculiar de uma mercadoria, que é a base de todas as outras: a força de trabalho. O proprietário dos meios de produção, o capitalista, compra a força de trabalho. Tal como todas as outras mercadorias, a força de trabalho é avaliada em função da quantidade de trabalho nela investida, ou seja, dos meios de subsistência necessários à vida e à reprodução do trabalhador. Mas o consumo desta mercadoria ― a força de trabalho ― é produzido pelo trabalho, ou seja, pela criação de novos valores. A quantidade desses novos valores é maior do que a quantidade de valores que o trabalhador recebe e consome para subsistir. O capitalista compra a força de trabalho para a explorar. Esta exploração é a fonte da desigualdade.
À parte do produto que se destina a cobrir as necessidades do trabalhador Marx chama produto necessário; e à parte que o trabalhador produz acima disto, produto excedente. O escravo tinha de gerar produto excedente, caso contrário o proprietário não teria escravos. O servo tinha de gerar produto excedente, caso contrário a servidão não teria tido qualquer utilidade para nobreza feudal. O trabalhador assalariado também gera produto excedente, mas numa escala consideravelmente maior, caso contrário o capitalista não teria necessidade de comprar força de trabalho. A luta de classes não é mais do que a luta pelo produto excedente. Aquele que detém o produto excedente é o senhor da situação: detém a riqueza, detém o Estado, detém a chave da igreja, dos tribunais, das ciências e das artes.
Concorrência e monopólio
As relações entre os capitalistas, que exploram os trabalhadores, são determinadas pela concorrência, que atua como a mola mestra do progresso capitalista. As grandes empresas têm mais vantagens técnicas, financeiras, organizacionais, económicas e, por último, mas não menos importante, políticas em relação às pequenas empresas. Inevitavelmente, o capital de maior dimensão, por poder explorar um maior número de trabalhadores, sai vencedor. Esta é a base inalterável do processo de concentração e centralização do capital.
Ao estimular o desenvolvimento progressivo da tecnologia, a concorrência não só consome gradualmente as camadas médias, como se consome a si própria. Sobre os cadáveres e semi-cadáveres dos pequenos e médios capitalistas, surge um número cada vez menor de magnatas capitalistas cada vez mais poderosos. Assim, a concorrência “honesta”, “democrática” e “progressista” gera irrevogavelmente o monopólio “nocivo”, “parasitário” e “reacionário”. O seu domínio começou a afirmar-se nos anos oitenta do século passado [XIX] e tomou a sua forma definitiva no início do século atual [XX]. A vitória do monopólio é agora abertamente reconhecida pelos mais proeminentes representantes da sociedade burguesa [2]. No entanto, no decurso do seu prognóstico, Marx foi o primeiro a deduzir que o monopólio é uma consequência das tendências inerentes ao próprio capitalismo, no entanto o mundo burguês continuou a considerar a concorrência como uma lei eterna da natureza.
A eliminação da concorrência através do monopólio marca o início da desintegração da sociedade capitalista. A concorrência era o principal mecanismo criativo do capitalismo e a justificação histórica do capitalismo. Por isso, a eliminação da concorrência marca a transformação dos acionistas em parasitas sociais. A concorrência exige certas liberdades, uma atmosfera liberal, um regime democrático, um cosmopolitismo comercial. O monopólio precisa de um governo tão autoritário quanto possível, de muros alfandegários, de fontes “próprias” de matérias-primas e de mercados (colónias). A última palavra na desintegração do capital monopolista é o fascismo.
Concentração da riqueza e aumento das contradições de classe
Os capitalistas e os seus defensores tentam por todos os meios esconder do povo, assim como do cobrador de impostos, a verdadeira extensão da concentração da riqueza. Contra a evidência, a imprensa burguesa continua a tentar manter a ilusão de uma distribuição “democrática” do investimento do capital. Para refutar os marxistas, o New York Times afirma que existem entre três e cinco milhões de empresários individuais. A verdade é que as sociedades anónimas, meio milhão nos Estados Unidos, representam uma maior concentração de capital do que estes milhões de empresários individuais. Esta forma de jogar com os números não tem por objetivo esclarecer a realidade, mas sim escondê-la.
Desde o início da [primeira] guerra [mundial] até 1923, o índice de fábricas existentes nos Estados Unidos baixou de 100 para 98,7, enquanto a produção industrial subiu de 100 para 156,3. Durante os anos de uma prosperidade sensacional (1923-29), quando parecia que toda a gente estava a enriquecer, o número de estabelecimentos passou de 100 para 93,8, enquanto a produção subiu de 100 para 113. No entanto, a concentração dos estabelecimentos industriais, limitada pelos seus pesados corpos materiais, fica muito aquém da concentração das suas almas, isto é, da propriedade. Em 1929, os Estados Unidos contavam com mais de 300.000 sociedades anónimas, como bem salienta o New York Times. Só falta acrescentar que duzentas delas (ou seja, 0,07% do total) controlavam diretamente 49,2% do capital de todas elas, que quatro anos mais tarde essa percentagem era já de 56% e que, sem dúvida, durante os anos da administração Roosevelt [3] subiu ainda mais. Dentro destas duzentas maiores empresas, o verdadeiro domínio está nas mãos de uma pequena minoria [4].
O mesmo processo pode ser observado nos sectores da banca e dos seguros. Cinco das maiores companhias de seguros dos EUA absorveram não só as outras companhias, mas também muitos bancos. O número total de bancos foi reduzido, principalmente através das chamadas “fusões”, essencialmente por aquisições. Este processo está a crescer rapidamente. Acima dos bancos ergue-se a oligarquia dos superbancos. O capital bancário combina-se com o capital industrial no supercapital financeiro. Assumindo que a concentração da indústria e dos bancos continua ao mesmo ritmo que durante o último quarto de século ― na verdade está a acelerar ― no próximo quarto de século os monopolistas terão toda a economia do país nas suas mãos, deixando pouco mais do que migalhas para os outros.
Recorremos às estatísticas estado-unidenses apenas porque são mais exactas e mais impressionantes, mas o processo de concentração é essencialmente de carácter internacional. Através das várias fases do capitalismo, através dos ciclos conjunturais, através de todos os regimes políticos, através de períodos de paz ou períodos de guerra, o processo de concentração de todas as grandes fortunas em cada vez menos mãos tem continuado e continuará sem fim. Durante os anos da Grande Guerra [5], quando as nações sangravam até à morte, quando os próprios organismos políticos da burguesia jaziam esmagados sob o peso das dívidas nacionais, quando os sistemas fiscais rolavam para o abismo, arrastando consigo as classes médias, os monopolistas acumulavam lucros inauditos com o sangue e a lama. Durante os anos de guerra, as empresas estado-unidenses mais poderosas multiplicaram os seus ativos por dois, três, quatro.... E multiplicaram os seus dividendos por 300%, 500%, 1000%...
Em 1840, oito anos antes de Marx e Engels publicarem O Manifesto Comunista, o famoso escritor francês Alexis de Tocqueville escreveu no seu livro A Democracia na América: “As grandes riquezas tendem a desaparecer; as pequenas fortunas tendem a aumentar”. Este pensamento foi repetido inúmeras vezes, primeiro em relação aos Estados Unidos e depois em relação às outras jovens democracias da Austrália e da Nova Zelândia. É claro que a visão de Tocqueville já estava errada no seu tempo. Em todo o caso, a verdadeira concentração da riqueza começou após a guerra civil dos EUA, em vésperas da qual Tocqueville morreu [6]. No início deste século, 2% da população estado-unidense já detinha mais de metade de toda a riqueza do país; em 1929, os mesmos 2% detinham três quintos da riqueza nacional. Ao mesmo tempo, 36.000 famílias ricas tinham tanto rendimento como onze milhões de famílias pobres e da classe média. Durante a crise de 1929-33, os monopolistas não tiveram necessidade de apelar à caridade pública; pelo contrário, no meio do declínio geral da economia nacional, eles subiram mais alto do que nunca. Durante a recuperação industrial subsequente e frágil, provocada pelo fermento do New Deal [7], os monopolistas acumularam enormes lucros. Na melhor das hipóteses, o número de desempregados passou de vinte milhões para dez; ao mesmo tempo, a camada superior da sociedade capitalista ― não mais de 6.000 adultos ― colheu dividendos fabulosos; foi o que demonstrou com números o procurador-geral Robert H. Jackson durante o seu mandato como procurador-geral adjunto para a defesa da concorrência [8].
Assim, o conceito abstrato de capital monopolista está, para nós, materializado em carne e osso num punhado de famílias, ligadas por interesses comuns e laços de parentesco numa oligarquia capitalista exclusiva, que traçam o destino económico e político de uma grande nação. Há que admitir que a lei marxista da concentração do capital funciona maravilhosamente!
Os ensinamentos de Marx foram ultrapassados?
As questões da concorrência, da concentração da riqueza e do monopólio conduzem naturalmente à questão de saber se a teoria económica de Marx tem um interesse meramente histórico para o nosso tempo ― como, por exemplo, a teoria de Adam Smith ― ou se continua a ter uma relevância real. O critério para responder a esta questão é simples: se a teoria de Marx estima corretamente o curso do desenvolvimento e prevê o futuro melhor do que outras teorias, continua a ser a teoria mais avançada do nosso tempo, por mais anos que tenha.
O famoso economista alemão Werner Sombart, que nos seus primeiros anos foi praticamente marxista, mas que depois reviu todos os aspectos mais revolucionários da doutrina de Marx, especialmente os mais desagradáveis para a burguesia, contradisse O Capital de Marx com o seu Capitalismo, traduzido em muitas línguas e provavelmente a mais conhecida exposição apologética da economia burguesa dos últimos tempos. Depois de prestar um tributo platónico de admiração aos princípios do autor d’O Capital, Sombart escreveu: “Karl Marx profetizou: primeiro, a miséria crescente dos trabalhadores assalariados; segundo, a ‘concentração’ geral, com o desaparecimento da classe dos artesãos e dos camponeses; terceiro, o colapso catastrófico do capitalismo. Nada disto aconteceu”. A estes prognósticos errados, Sombart contrapõe o seu próprio prognóstico “estritamente científico”. Segundo ele, “o capitalismo continuará a transformar-se internamente na mesma direção em que já começou a transformar-se na época do seu apogeu: à medida que envelhece, vai-se tornando cada vez mais calmo, tranquilo, razoável”. Tentemos verificar, ainda que apenas em linhas gerais, qual dos dois tem razão, se Marx, com o seu prognóstico de catástrofe, ou Sombart, que, em nome de toda a economia burguesa, prometeu que as coisas se resolveriam de uma forma “calma, tranquila e razoável”. O leitor concordará que o assunto é digno de atenção.
a) A “teoria da miséria crescente”
“A acumulação de riqueza num pólo”, escreveu Marx sessenta anos antes de Sombart, “é consequentemente, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, de sofrimento no trabalho, de escravatura, de ignorância, de brutalidade, de degradação mental no pólo oposto, isto é, do lado da classe que produz o seu produto sob a forma de capital. Esta tese de Marx, sob o nome de teoria da miséria crescente, tem sido constantemente atacada pelos reformadores democráticos e social-democratas, especialmente durante o período de 1896-1914, quando o capitalismo se desenvolveu rapidamente e fez certas concessões aos trabalhadores, especialmente à sua camada superior. Após a [Primeira] Guerra Mundial, quando a burguesia, assustada pelos seus próprios crimes e pela Revolução de Outubro, tomou o caminho das reformas sociais exigidas, cujo valor foi simultaneamente anulado pela inflação e pelo desemprego, pareceu aos reformistas e aos professores burgueses que a teoria da transformação progressiva da sociedade capitalista estava completamente assegurada. “O poder de compra do trabalho assalariado”, assegurava Sombart em 1928, “cresceu em proporção direta com a expansão da produção capitalista”.
De facto, a contradição económica entre o proletariado e a burguesia agravou-se durante os períodos mais prósperos do desenvolvimento capitalista, quando a subida do nível de vida de uma certa camada de trabalhadores, por vezes bastante extensa, escondia o declínio da parte do proletariado na riqueza nacional. Assim, entre 1920 e 1930, pouco antes de cair na prostração, a produção industrial estado-unidense aumentou 50%, enquanto o montante pago em salários aumentou apenas 30%, o que, apesar das convicções de Sombart, significa um tremendo declínio da parte do trabalho no rendimento nacional. Em 1930, começou um terrível aumento do desemprego e, em 1933, foi introduzida uma ajuda mais ou menos sistemática aos desempregados, que recebiam sob a forma de subsídios pouco mais de metade do que tinham perdido em salários. A ilusão de um “progresso” ininterrupto para todas as classes desapareceu sem deixar rasto. O declínio relativo das condições de vida das massas foi substituído por um declínio absoluto. Os trabalhadores começaram por economizar nos seus modestos divertimentos, depois no vestuário e, por fim, na alimentação. Os bens e produtos de qualidade média foram substituídos pelos de má qualidade, e os de má qualidade pelos de péssima qualidade. Os sindicatos começaram a assemelhar-se à pessoa que se tenta agarrar desesperadamente ao corrimão quando desce numa escada rolante a grande velocidade.
Com 6% da população mundial, os Estados Unidos possuem 40% da riqueza mundial. Além disso, como o próprio Roosevelt admitiu, um terço da nação está mal nutrida, mal vestida e vive em condições sub-humanas. O que dizer então dos países muito menos privilegiados? A história do mundo capitalista desde a última guerra confirma de forma irrefutável a teoria da miséria crescente. O aumento da polarização social é hoje reconhecido não só por qualquer estatístico competente, mas também por aqueles estadistas que se lembram das regras básicas da aritmética.
O regime fascista, que simplesmente reduziu ao máximo os limites da decadência e da reação inerentes a todo o capitalismo imperialista, tornou-se indispensável quando a degeneração do capitalismo eliminou a possibilidade de alimentar ilusões sobre a melhoria do nível de vida do proletariado. A ditadura fascista significa o reconhecimento aberto da tendência para o empobrecimento, que as democracias imperialistas mais ricas ainda tentam esconder. Mussolini e Hitler perseguem o marxismo com tanto ódio precisamente porque o seu próprio regime é a mais horrível confirmação das previsões marxistas. O mundo civilizado ficou escandalizado, ou fingiu estar escandalizado, quando Goering, com aquele tom de carrasco e bufão que lhe é peculiar, declarou que as armas são mais importantes do que a manteiga, ou quando Cagliostro-Casanova-Mussolini [9] aconselhou os trabalhadores italianos a aprenderem a apertar os cintos nas suas camisas negras [10]. Mas não está a acontecer essencialmente a mesma coisa nas democracias imperialistas? Por todo o lado as armas estão untadas com manteiga. Os trabalhadores em França, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos não usam camisas negras, mas também aprendem a apertar o cinto. No país mais rico do mundo, milhões de trabalhadores tornaram-se indigentes, vivendo da caridade, seja ela privada ou governamental, estatal ou local.
b) O exército de reserva e a nova subclasse dos desempregados
O exército industrial de reserva é uma componente tão indispensável do mecanismo social do capitalismo como as máquinas e as matérias-primas para as fábricas ou os produtos acabados para as lojas. Nem a expansão geral da produção nem a adaptação do capital aos fluxos e refluxos do ciclo industrial seriam possíveis sem uma reserva de força de trabalho. Da tendência geral do desenvolvimento capitalista ― o aumento do capital constante (máquinas e matérias-primas) em detrimento do capital variável (força de trabalho) ― Marx tirou a seguinte conclusão: "Quanto maior a riqueza social (...), maior o exército industrial de reserva (...) Quanto maior o exército industrial de reserva (...), maior o pauperismo oficial. Esta é a lei geral e absoluta da acumulação capitalista".
Esta tese ― indissociavelmente ligada à teoria da miséria crescente e denunciada durante muitos anos como “exagerada”, ‘tendenciosa” e “demagógica” ― tornou-se agora o quadro teórico irrepreensível da realidade atual. O atual exército de desempregados já não pode ser considerado como um “exército de reserva”, porque a sua massa básica já não pode ter qualquer esperança de voltar a encontrar trabalho; pelo contrário, está condenado a aumentar devido ao constante afluxo de novos desempregados. O capitalismo em desintegração criou uma geração inteira de jovens que nunca tiveram um emprego e não têm qualquer esperança de o conseguir. Esta nova subclasse do proletariado e do semi-proletariado é obrigada a viver à custa da sociedade. Calcula-se que o desemprego tenha privado a economia estado-unidense de mais de 43 milhões de anos de trabalho no decurso de nove anos (1930-38). Considerando que em 1929, no auge da prosperidade, havia dois milhões de desempregados e que durante esses nove anos o número de trabalhadores potenciais aumentou em cinco milhões, o número de anos de trabalho perdidos deve ser incomparavelmente maior. Um regime social assolado por uma tal praga está mortalmente doente. O diagnóstico exato desta doença foi feito há quase oitenta anos, quando a doença era um mero germe.
c) O declínio das classes médias
Os números da concentração do capital indicam, ao mesmo tempo, que o peso específico da classe média na produção e a sua parte no rendimento nacional estão em constante declínio, enquanto as pequenas explorações foram completamente absorvidas ou degradadas e privadas da sua independência, tornando-se um mero símbolo de um trabalho insuportável e de necessidade desesperada. Ao mesmo tempo, é verdade que o desenvolvimento do capitalismo estimulou um aumento considerável do exército de técnicos, gestores, militares, escriturários, advogados, médicos ― numa palavra, da chamada “nova classe média”. Mas esta camada, cujo crescimento não era um mistério nem mesmo para Marx, tem pouco a ver com a antiga classe média, que, sendo proprietária dos seus próprios meios de produção, tinha uma garantia tangível de independência económica. A “nova classe média” é mais diretamente dependente dos capitalistas do que os trabalhadores, muitos dos seus membros desempenham funções auxiliares para os capitalistas. Mas há também uma considerável sobreprodução da classe média, com as suas consequências de degradação social.
“Informações estatísticas fiáveis”, diz uma pessoa tão afastada do marxismo como o antigo Procurador-Geral Homer S. Cummings, “mostram que muitas unidades industriais desapareceram completamente e que o que ocorreu foi uma eliminação progressiva dos pequenos empresários como fator da vida estado-unidense”. Mas, objeta Sombart e muitos dos seus antecessores e sucessores, apesar de Marx, “a concentração geral, com o desaparecimento da classe dos artesãos e dos agricultores” ainda não ocorreu. É difícil dizer o que tem mais peso neste argumento: a irresponsabilidade ou a má-fé. Como qualquer teórico, Marx começou por isolar as tendências fundamentais na sua forma pura; caso contrário, teria sido completamente impossível compreender o destino da sociedade capitalista. O próprio Marx era, no entanto, perfeitamente capaz de examinar o fenómeno da vida à luz da análise concreta, como produto da concatenação de vários factores históricos. Certamente, o facto da velocidade de queda dos corpos variar em diferentes condições ou das órbitas dos planetas estarem sujeitas a perturbações não invalida as leis de Newton.
Para compreender a chamada “tenacidade” das classes médias, é bom recordar que ambas as tendências ― a ruína das classes médias e a transformação destas classes arruinadas em proletários ― não se produzem a um ritmo uniforme nem na mesma medida. Da preponderância crescente da máquina sobre a força de trabalho resulta que o processo de ruína das classes médias se processa mais rapidamente do que o processo da sua proletarização; de facto, a certa altura, este processo de proletarização deve cessar completamente e até retroceder.
Tal como o funcionamento das leis fisiológicas têm resultados diferentes num organismo em crescimento e num organismo em decomposição, também as leis da economia marxista funcionam de forma diferente num capitalismo em desenvolvimento e num capitalismo em desintegração. Esta diferença é particularmente clara nas relações mútuas entre a cidade e o campo. A população rural estado-unidense, que cresceu comparativamente menos do que a população total, continuou a aumentar em números absolutos até 1910, altura em que ultrapassou os 32 milhões. Nos vinte anos seguintes, apesar do rápido aumento da população total, a população rural desceu para 30,4 milhões, ou seja, menos 1,6 milhões. Mas em 1935 voltou a subir para 32,8 milhões, um aumento de 2,4 milhões em relação a 1930. Esta inversão da roda, surpreendente à primeira vista, não refuta minimamente nem a tendência para o crescimento da população urbana em detrimento da população rural, nem a tendência para a atomização das classes médias e, ao mesmo tempo, demonstra, da forma mais categórica, a desintegração do sistema capitalista no seu conjunto. O aumento da população rural durante o período de crise aguda de 1930-35 explica-se simplesmente pelo facto de quase dois milhões de habitantes urbanos ― ou, para ser mais preciso, dois milhões de desempregados esfomeados ― se terem deslocado para o campo, para terras abandonadas ou para as quintas de familiares e amigos, a fim de empregarem a sua força de trabalho, rejeitada pela sociedade, na economia natural produtiva e, assim, levarem uma existência semi-esfomeada, em vez de morrerem à fome.
Por conseguinte, não se trata da estabilidade dos pequenos agricultores, artesãos e comerciantes, mas sim da sua situação desesperada. Longe de ser uma garantia de futuro, a classe média é uma relíquia infeliz e trágica do passado. Incapaz de a eliminar por completo, o capitalismo conseguiu reduzi-la ao mais alto grau de degradação e penúria. Ao agricultor é negada não só a renda que lhe é devida pela sua parcela de terra e o benefício do capital que investiu, mas também uma boa parte do seu salário. Do mesmo modo, os pobres da cidade desesperam no espaço exíguo entre a vida económica e a morte. A classe média não se proletariza apenas porque empobrece. A este respeito, é tão difícil encontrar um argumento contra Marx como a favor do capitalismo.
d) As crises industriais
O final do século passado e o início do século atual foram marcados por um progresso tão avassalador do capitalismo que as crises cíclicas pareciam não passar de meros aborrecimentos “acidentais”. Durante os anos de otimismo capitalista quase universal, os críticos de Marx garantiam que o desenvolvimento nacional e internacional dos trusts, dos consórcios e dos cartéis introduzia um controlo planificado do mercado e pressagiava o triunfo final sobre as crises. Segundo Sombart, as crises já tinham sido “abolidas” antes da guerra através do mecanismo do próprio capitalismo, pelo que “o problema das crises deixa-nos hoje praticamente indiferentes”. Agora, apenas dez anos mais tarde, estas palavras soam ridículas, enquanto o prognóstico de Marx nos aparece hoje em toda a medida da sua força trágica. Num organismo com sangue envenenado, qualquer pequena doença tende a tornar-se crónica; no organismo podre do capitalismo monopolista, as crises assumem uma forma particularmente maligna.
É digno de nota que a imprensa capitalista, que pretende negar a existência de monopólios, parta da afirmação desses mesmos monopólios para negar a anarquia capitalista. Se sessenta famílias dirigem a vida económica dos Estados Unidos, o New York Times observa ironicamente: “Isso mostraria que o capitalismo estado-unidense, longe de responder a qualquer plano, está organizado ao pormenor”. Este argumento erra o alvo.
O capitalismo não foi capaz de desenvolver uma única das suas tendências até ao fim. Tal como a concentração da riqueza não elimina a classe média, também o monopólio não elimina a concorrência, mas apenas a esmaga e destrói. Nem o “plano” de cada uma das sessenta famílias, nem as diferentes variantes desses planos estão interessados na coordenação dos diferentes ramos da economia, mas sim no aumento dos lucros da sua própria camarilha monopolista à custa das outras e de toda a nação. No fim de contas, o entrelaçamento de tais planos apenas aprofunda a anarquia da economia nacional. A ditadura monopolista e o caos não se excluem mutuamente; pelo contrário, complementam-se e alimentam-se mutuamente.
A crise de 1929 eclodiu nos Estados Unidos um ano depois de Sombart ter proclamado a total indiferença da sua “ciência” pelo problema das crises. Do auge de uma prosperidade sem precedentes, a economia estado-unidense foi atirada para o abismo de uma prostração monstruosa; ninguém no tempo de Marx poderia ter concebido convulsões de tal magnitude! O rendimento nacional dos EUA atingiu pela primeira vez 69 mil milhões de dólares em 1920, para cair no ano seguinte para 50 mil milhões de dólares, um declínio de 27%. Como resultado da prosperidade dos anos seguintes, em 1929 o rendimento nacional tinha subido novamente para o seu pico de 81 mil milhões de dólares, apenas para cair em 1932 para 40 mil milhões de dólares, menos de metade desse valor! Durante os nove anos que decorreram entre 1930 e 1938, perderam-se cerca de 43 milhões de anos de trabalho e 133 mil milhões de dólares de rendimento nacional, tendo em conta as normas laborais e os rendimentos de 1929, quando havia “apenas” dois milhões de desempregados. Se tudo isto não é anarquia, o que pode significar esta palavra?
e) A “teoria do colapso”
As mentes e os corações dos intelectuais da classe média e dos burocratas sindicais ficaram quase totalmente extasiados com as conquistas do capitalismo entre a época da morte de Marx e a eclosão da [Primeira] Guerra Mundial. A ideia de progresso gradual (“evolução”) parecia estar assegurada para sempre, enquanto a ideia de revolução era vista como uma mera relíquia bárbara. O prognóstico de Marx sobre a crescente concentração do capital, o agravamento das contradições de classe, o aprofundamento das crises e o colapso catastrófico do capitalismo não foi revisto para o corrigir parcialmente e o tornar mais preciso, mas para o refutar com o prognóstico qualitativamente oposto de uma distribuição mais justa da riqueza nacional, um abrandamento das contradições de classe e uma reforma gradual da sociedade capitalista. Jean Jaurès [11], o mais talentoso social-democrata dessa época clássica, esperava preencher progressivamente a democracia política com a satisfação social. Esta é a essência do reformismo. Tal era o prognóstico alternativo, o que resta dele?
A vida do capitalismo monopolista atual é uma cadeia de crises. Cada crise é uma catástrofe. A necessidade de se salvar dessas catástrofes parciais por meio de barreiras alfandegárias, inflação, aumento das despesas públicas e mais dívidas prepara o terreno para novas crises, mais profundas e mais extensas. A luta pelos mercados, pelas matérias-primas, pelas colónias... torna inevitáveis as catástrofes militares, que geralmente preparam as catástrofes revolucionárias. Não é certamente fácil concordar com Sombart quando diz que o capitalismo envelhecido está a tornar-se cada vez mais “calmo, tranquilo e razoável”. Seria mais correto dizer que está a perder os seus últimos vestígios de razão. Em todo o caso, não há dúvida de que a teoria do colapso derrotou a teoria do desenvolvimento pacífico.
A decadência do capitalismo
Por muito oneroso que o domínio do mercado tenha sido para a sociedade, até uma certa fase, até cerca da [Primeira] Guerra Mundial, a humanidade cresceu, desenvolveu-se e enriqueceu através de crises parciais e gerais. Nessa altura, a propriedade privada dos meios de produção permaneceu um fator relativamente progressivo. Mas agora o domínio cego da lei do valor recusa-se a prestar mais serviços. O progresso humano está num beco sem saída. Apesar dos últimos avanços tecnológicos, as forças produtivas materiais já não estão a aumentar. O sintoma mais evidente do declínio é a estagnação mundial do sector da construção, em consequência da paralisação de novos investimentos nos ramos básicos da economia. Os capitalistas simplesmente já não conseguem acreditar no futuro do seu próprio sistema. Para o governo, estimular a construção significa um aumento dos impostos e a contração do rendimento nacional disponível, especialmente porque a maior parte das novas construções governamentais se destina diretamente a fins bélicos.
O marasmo adquiriu um carácter particularmente maligno e degradante na esfera mais antiga da atividade humana, a que está mais intimamente ligada às necessidades vitais do homem: a agricultura. Insatisfeitos com os obstáculos que a propriedade privada na sua forma mais reacionária, a dos pequenos terrenos, coloca ao desenvolvimento da agricultura, os governos capitalistas são muitas vezes obrigados a limitar artificialmente a produção através de medidas jurídicas e administrativas que teriam assustado os artesãos das corporações na época da sua decadência. Passará à história o facto dos governos dos países capitalistas mais poderosos terem concedido prémios aos agricultores para que estes reduzissem as suas sementeiras, ou seja, para que reduzissem artificialmente o rendimento nacional, já de si em declínio. Os resultados falam por si: enquanto o número de pessoas com fome, a grande maioria da humanidade, continua a crescer mais depressa do que a população do planeta, a economia agrícola não sai de uma crise podre, apesar das enormes possibilidades produtivas asseguradas pela experiência e pela ciência. Os conservadores consideram uma boa política defender uma ordem social atolada na loucura destrutiva e condenam a luta do socialismo contra essa loucura como uma utopia destrutiva.
Fascismo e o New Deal
No mundo atual, há dois sistemas que competem entre si para salvar um capitalismo historicamente condenado à morte: o fascismo e o New Deal, em todas as suas manifestações. O fascismo baseia o seu programa na demolição das organizações dos trabalhadores, na destruição das reformas sociais e na aniquilação total dos direitos democráticos, a fim de impedir o ressurgimento da luta de classes do proletariado. Em nome da salvação da “nação” e da “raça”, designações presunçosas do capitalismo em decadência, o Estado fascista legaliza oficialmente a degradação dos trabalhadores e o empobrecimento das classes médias.
A política do New Deal, que procura salvar a democracia imperialista através de concessões à aristocracia laboral e à aristocracia agrária, só pode ser suportada, no seu âmbito alargado, pelas nações muito ricas e, neste sentido, é a política estado-unidense por excelência. O governo tentou fazer recair uma parte dos custos desta política sobre os monopolistas, exortando-os a aumentar os salários e a reduzir o tempo de trabalho para aumentar o poder de compra da população e alargar a produção. Léon Blum [12] tentou traduzir este sermão para francês. Tudo em vão! O capitalista francês, como o estado-unidense, não produz por produzir, mas pelo lucro. Ele está sempre pronto a limitar a produção, e até mesmo a destruir produtos acabados, se isso aumentar a sua parte do rendimento nacional.
O mais incoerente do programa New Deal é que, ao mesmo tempo que prega sermões aos magnatas do capital sobre as vantagens da abundância sobre a escassez, o governo concede bónus para reduzir a produção. Será possível maior confusão? O Governo responde aos seus críticos com o seguinte desafio: podem fazer melhor? Tudo isto significa que, com base no capitalismo, não há esperança.
Desde 1933, ou seja, nos últimos seis anos, o governo federal dos EUA, os estados e os municípios distribuíram quase 15 mil milhões de dólares em ajuda aos desempregados, uma soma totalmente inadequada, que representa apenas uma pequena fração dos salários perdidos, mas ao mesmo tempo uma soma colossal, tendo em conta a diminuição do rendimento nacional. Durante 1938, um ano de relativa recuperação económica, a dívida nacional aumentou em 2 mil milhões de dólares, ultrapassando a marca dos 38 mil milhões de dólares, mais 12 mil milhões do que o seu nível mais elevado no final da [Primeira] Guerra Mundial. Em 1939, ultrapassou rapidamente os 40 mil milhões de dólares. E então? É claro que a crescente dívida nacional é um fardo para a posteridade. Mas o New Deal só foi possível graças à enorme riqueza acumulada pelas gerações passadas. Só uma nação muito rica poderia permitir-se uma política económica tão extravagante. Mas mesmo uma nação assim não pode viver para sempre à custa das gerações anteriores. A política do New Deal, com as suas realizações fictícias e o seu aumento muito real da dívida nacional, conduz inevitavelmente a uma reação capitalista feroz e a uma explosão devastadora do imperialismo. Por outras palavras, segue as mesmas linhas da política do fascismo.
Anomalia ou norma?
O secretário do Interior, Harold L. Ickes, considera “uma das mais estranhas anomalias de toda a história” o facto dos EUA, democráticos na forma, serem autocráticos na substância: “América, a terra da regra da maioria, mas pelo menos até 1933 [!] controlada por monopólios, que por sua vez são controlados por um número insignificante de acionistas”. O diagnóstico está correto, exceto no que se refere à implicação de que o domínio dos monopólios cessou ou enfraqueceu com a chegada de Roosevelt. No entanto, aquilo a que Ickes chama “uma das mais estranhas anomalias de toda a história” é, de facto, a norma inquestionável do capitalismo. A dominação dos fracos pelos fortes, da maioria pela minoria, dos trabalhadores pelos exploradores, é uma lei básica da democracia burguesa. O que distingue os Estados Unidos dos outros países é simplesmente o maior alcance e a maior atrocidade das contradições do seu capitalismo. A ausência de um passado feudal, a riqueza dos recursos naturais, um povo enérgico e empreendedor, em suma, todas as condições que faziam prever um desenvolvimento ininterrupto da democracia, conduziram na realidade a uma fantástica concentração da riqueza.
Com a promessa de triunfo, desta vez na luta contra os monopólios, Ickes traça imprudentemente Thomas Jefferson, Andrew Jackson, Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt e Woodrow Wilson como os antecessores de Franklin D. Roosevelt [13]. “Praticamente todas as nossas maiores figuras históricas”, disse ele a 30 de dezembro de 1937, “são famosas pela sua luta corajosa e persistente para impedir a superconcentração da riqueza e do poder num pequeno número de mãos”. Mas dessas mesmas palavras resulta que o fruto dessa “luta corajosa e persistente” é o domínio completo da democracia pela plutocracia.
Por alguma razão inexplicável, Ickes pensa que, desta vez, a vitória está assegurada desde que o povo compreenda que a luta não é “entre o New Deal e o empresário médio esclarecido, mas entre o New Deal e os ‘Bourbons’ das sessenta famílias que colocaram o resto dos empresários estado-unidenses sob o terror do seu domínio”. Este porta-voz autorizado não explica como é que os “Bourbons” conseguiram subjugar todos os homens de negócios esclarecidos, apesar da democracia e dos esforços das “maiores figuras históricas”. Os Rockefellers, os Morgans, os Mellons, os Vanderbilts, os Guggenheims, os Fords e companhia não invadiram os EUA de fora, como Cortez invadiu o México, mas vieram do “povo”, ou, para ser mais exato, da classe dos “industriais e homens de negócios esclarecidos” e, de acordo com o prognóstico de Marx, atingiram o apogeu natural do capitalismo. Uma vez que uma democracia jovem e forte no seu apogeu foi incapaz de travar a concentração da riqueza quando o processo ainda estava a dar os primeiros passos, será possível acreditar, nem que seja por um minuto, que uma democracia em declínio é capaz de enfraquecer os antagonismos de classe, que atingiram o seu limite máximo? Em todo o caso, a experiência do New Deal não é motivo para tal otimismo. Ao refutar as acusações do grande capital contra o governo, Robert H. Jackson, um alto funcionário da administração, demonstrou com números que, durante o mandato de Roosevelt, os lucros dos magnatas do capital atingiram níveis com que eles próprios não tinham sonhado durante a última fase da presidência de Hoover [14], do qual se conclui, em todo o caso, que a luta de Roosevelt contra os monopólios não foi coroada de maior sucesso do que a de todos os seus antecessores.
Apesar de se sentirem chamados a defender os fundamentos do capitalismo, na prática, os reformadores são impotentes para vincular as suas leis através de medidas de política económica. Que mais podem fazer, então, senão moralizar? Ickes, tal como os outros membros do gabinete e publicistas do New Deal, termina apelando aos monopolistas para que não esqueçam a decência e os princípios da democracia. Em que é que isto é diferente de pedir chuva? É certo que a visão marxista do proprietário dos meios de produção é muito mais científica: “Como capitalista”, lê-se em O Capital, "ele é simplesmente o capital personificado. A sua alma é a alma do capital. Mas o capital tem apenas um objetivo na vida: criar mais-valia". Se o comportamento do capitalista fosse determinado pelos atributos da sua alma ou pelas efusões líricas do secretário de Estado, nem os preços médios, nem os salários médios, nem a contabilidade, nem toda a economia capitalista seriam possíveis. No entanto, a contabilidade continua a florescer e é um forte argumento a favor da concepção materialista da história.
Charlatanismo judicial e o regresso ao passado
“A menos que destruamos o monopólio”, disse o antigo procurador-geral dos Estados Unidos, Homer S. Cummings, em novembro de 1937, ”o monopólio encontrará uma forma de destruir a maior parte das nossas reformas e, finalmente, baixar o nosso nível de vida". Citando números espantosos para mostrar que “a tendência para a concentração excessiva da riqueza e do controlo económico é inegável”, Cummings foi ao mesmo tempo forçado a admitir que, até agora, a luta legislativa e judicial contra os trusts não tinha levado a lado nenhum. É difícil estabelecer“, lamenta, ”uma intenção sinistra“ quando se trata de ”resultados económicos". É esse o objetivo! Pior ainda: a luta judicial contra os trusts trouxe a “mais confusa confusão” [15]. Este feliz pleonasmo exprime muito bem a impotência da justiça democrática na sua luta contra a lei marxista do valor. Não há razão para esperar que o sucessor de Cummings, Frank Murphy, seja mais afortunado na resolução destas tarefas, cuja abordagem demonstra o charlatanismo desesperado na esfera do pensamento económico.
Não podemos deixar de concordar com o professor Lewis W. Douglas, antigo diretor do orçamento da administração Roosevelt, quando condena o governo por “atacar o monopólio num domínio e encorajá-lo em muitos outros”. Mas, dada a natureza das coisas, não pode ser de outra forma. Segundo Marx, o Governo é o comité executivo da classe dominante.
Atualmente, os monopolistas constituem o seu sector mais poderoso. O Governo não está em posição de lutar contra o monopólio em geral, isto é, contra a classe por cuja vontade ele governa. Ao atacar uma fase do monopólio, é forçado a procurar um aliado noutras fases do monopólio. Juntamente com os bancos e a indústria ligeira, pode desferir golpes ocasionais contra os trusts da indústria pesada, que, aliás, não deixam de colher lucros fantásticos.
Lewis Douglas não opõe a ciência ao charlatanismo oficial, mas sim a outro tipo de charlatanismo. Vê a fonte do monopólio não no capitalismo, mas no protecionismo e, de acordo com isso, descobre a salvação da sociedade não na abolição da propriedade privada dos meios de produção, mas na redução das tarifas aduaneiras. "A menos que se restaure a liberdade dos mercados — prediz —, é duvidoso que as liberdades (empresarial, de expressão, educativa, religiosa) possam sobreviver." Por outras palavras, sem a restauração da liberdade de comércio internacional, a democracia, em qualquer lugar e em qualquer grau que ainda sobreviva, terá que ceder o lugar ou bem que a uma ditadura revolucionária, ou bem que a uma ditadura fascista. Mas a liberdade de comércio internacional é inconcebível sem a liberdade de comércio nacional, ou seja, sem a concorrência. E a liberdade de concorrência é inconcebível sob o domínio do monopólio. Infelizmente, Douglas, como Ickes, como Jackson, como Cummings ou como o próprio Roosevelt, não se deu ao trabalho de nos dar a sua receita contra o capitalismo monopolístico nem, portanto, contra uma revolução ou um regime totalitário.
A liberdade de comércio, tal como a liberdade de concorrência, tal como a prosperidade da classe média, pertencem a um passado irrevogável. Trazer de volta o passado é agora a única receita dos reformadores democráticos do capitalismo: trazer de volta mais “liberdade” para os pequenos e médios empresários, mudar o sistema de crédito e monetário a seu favor, libertar o mercado do domínio dos trusts, eliminar os especuladores profissionais da bolsa, restaurar a liberdade do comércio internacional, e assim por diante ad infinitum [16]. Os reformadores chegam a sonhar em limitar o uso de máquinas e proibir a tecnologia, o que perturba o equilíbrio social e causa muita preocupação.
Millikan e o marxismo
A 7 de dezembro de 1937, o Dr. Robert A. Millikan, um dos mais importantes físicos estado-unidenses, defendia a ciência: “As estatísticas mostram que a percentagem da população com emprego remunerado aumentou de forma constante durante os últimos cinquenta anos, nos quais a ciência foi mais rapidamente aplicada”. Esta defesa do capitalismo sob o pretexto da defesa da ciência não pode ser qualificada de feliz. Foi precisamente durante o último meio século que o “elo do tempo” foi “quebrado” e a inter-relação entre economia e tecnologia foi fortemente alterada. O período a que Millikan se refere inclui tanto o início do declínio capitalista quanto o auge da prosperidade capitalista. Ocultar o início desse declínio, que afecta o mundo inteiro, é fazer apologia do capitalismo. Rejeitando o socialismo de forma precipitada, com argumentos que dificilmente honrariam até mesmo Henry Ford, o Dr. Millikan afirma que nenhum sistema de distribuição pode satisfazer as necessidades do homem sem aumentar a escala de produção. Sem dúvida! Mas é pena que este famoso físico não explique aos milhões de estado-unidenses desempregados como é que eles devem participar no aumento da riqueza nacional. A pregação abstrata sobre a virtude salvadora da iniciativa privada e da alta produtividade do trabalho não vai dar emprego aos desempregados, nem vai cobrir o défice orçamental ou tirar as empresas do país deste beco sem saída.
O que distingue Marx é a universalidade do seu génio, a sua capacidade de apreender os fenómenos e os processos de vários domínios na sua inerente conexão. Sem ser um especialista em ciências naturais, foi um dos primeiros a apreciar a importância das grandes descobertas nesse domínio, por exemplo, a teoria darwinista. Marx tinha a certeza da sua importância, não tanto em virtude do seu intelecto, mas em virtude do seu método. Os cientistas de mentalidade burguesa podem pensar que estão acima do socialismo, mas o caso de Robert Millikan é apenas mais uma confirmação de que ainda existem charlatães incuráveis no campo da sociologia. Deveriam aprender o pensamento científico com Marx.
Possibilidades produtivas e a propriedade privada
Na sua mensagem ao Congresso no início de 1937, o presidente Roosevelt expressou o desejo de elevar a renda nacional para noventa ou cem mil milhões de dólares, mas sem indicar como. Em si, esse programa era excessivamente modesto. Em 1929, quando havia cerca de dois milhões de desempregados, a renda nacional atingiu 81 bilhões de dólares. Colocar em ação as forças produtivas atuais não só deveria ser suficiente para realizar o programa de Roosevelt, mas também para superá-lo consideravelmente. As máquinas, as matérias-primas, os trabalhadores, tudo está disponível, sem falar na necessidade de produtos que a população tem. Se, apesar disso, o plano é irrealizável — o que é verdade —, a única razão é o antagonismo irreconciliável entre a propriedade capitalista e a necessidade social de expandir a produção. O famoso National Survey of Potential Production Capacity, patrocinado pelo governo, chegou à conclusão de que o custo da produção e dos serviços utilizados em 1929 chegou a quase 94 mil milhões de dólares, calculados com base nos preços de retalho. No entanto, se todas as possibilidades produtivas reais fossem utilizadas, o valor teria subido para 135 mil milhões, ou seja, a renda familiar média anual teria atingido 4.370 dólares, o suficiente para garantir uma vida decente e confortável. Deve-se acrescentar que os cálculos do National Survey baseiam-se na atual organização produtiva dos Estados Unidos, que é o resultado da história anárquica do capitalismo. Se o equipamento fosse reabastecido de acordo com um plano socialista unificado, os cálculos da produção poderiam ser superados consideravelmente e seria possível garantir a toda a população um nível de vida muito confortável e uma jornada de trabalho extremamente curta.
Portanto, para salvar a sociedade, não é necessário frear o desenvolvimento da tecnologia, fechar fábricas, dar subsídios aos agricultores para que sabotem a agricultura, empobrecer um terço dos trabalhadores, nem chamar maníacos para exercerem o papel de ditadores. Nenhuma dessas medidas, que constituem uma afronta terrível aos interesses da sociedade, é necessária. O que é indispensável e urgente é separar os meios de produção dos seus atuais proprietários parasitas e organizar a sociedade de acordo com um plano racional. Então, seria realmente possível, pela primeira vez, curar os males sociais. Quem fosse capaz de trabalhar encontraria um emprego. A jornada de trabalho diminuiria gradualmente. Todos os membros da sociedade teriam a satisfação das suas necessidades garantidas. Palavras como “pobreza”, “crise” ou “exploração” desapareceriam de circulação. A humanidade finalmente cruzaria o limiar para a verdadeira humanidade.
A inevitabilidade do socialismo
“Ao mesmo tempo que diminui constantemente o número de magnatas capitalistas — diz Marx —, cresce a quantidade de miséria, opressão, escravidão, degradação, exploração; mas com isso cresce também a revolta da classe trabalhadora, uma classe que aumenta sempre em número, disciplinada, unida, organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista (...) A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem finalmente um ponto em que se tornam incompatíveis com o seu invólucro capitalista. Este invólucro rebenta em pedaços. Soam os sinos pela propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados”. Esta é a revolução socialista. Para Marx, o problema de reconstruir a sociedade não surgiu de uma prescrição motivada pelos seus gostos pessoais; foi consequência de uma necessidade histórica imperativa, da maturidade das forças produtivas, por um lado, e da impossibilidade de desenvolver mais essas forças à mercê da lei do valor, por outro. As conclusões de certos intelectuais sobre o tema de que, apesar da teoria de Marx, o socialismo não é inevitável, mas meramente possível, carecem de todo o sentido. Evidentemente, Marx não quis dizer que o socialismo viria sem a vontade e a ação do homem; essa ideia é absurda. Marx previu que a partir do colapso económico a que o desenvolvimento do capitalismo inevitavelmente conduziria – e este colapso está diante dos nossos olhos – não pode haver outra saída excepto a socialização dos meios de produção. As forças produtivas precisam de um novo senhor que as organize e, dado que a existência determina a consciência, Marx não teve dúvidas de que a classe trabalhadora, à custa de erros e derrotas, chegaria a compreender a verdadeira situação e, mais cedo ou mais tarde, tiraria as conclusões práticas imperativas.
Que a socialização dos meios de produção criados pelos capitalistas represente uma enorme vantagem económica pode ser demonstrado hoje em dia não só teoricamente, mas também com a experiência da União Soviética, apesar das suas limitações. É verdade que os capitalistas reacionários, não sem astúcia, usam o regime de Stalin como um espantalho contra as ideias socialistas. Na verdade, Marx nunca disse que o socialismo poderia ser alcançado num único país, muito menos num país atrasado. As contínuas privações das massas na União Soviética, a omnipotência da casta privilegiada que se colocou acima da nação e da sua miséria e, finalmente, a lei do bastão dos burocratas não são consequências do método económico socialista, mas do isolamento e atraso da URSS, cercada pelos países capitalistas. O que é surpreendente é que, em circunstâncias tão desfavoráveis, a economia planificada tenha conseguido demonstrar as suas vantagens insuperáveis.
Todos os salvadores do capitalismo, tanto democratas como fascistas, pretendem limitar ou, pelo menos, dissimular o poder dos magnatas capitalistas, para assim impedir a “expropriação dos expropriadores”. Todos eles admitem, muitos abertamente, que o fracasso das suas tentativas reformistas conduzirá inevitavelmente à revolução socialista. Todos eles conseguiram demonstrar que os seus métodos para salvar o capitalismo não passam de curandeirismo reacionário e inútil. A previsão de Marx sobre a inevitabilidade do socialismo é assim plenamente confirmada por uma prova negativa.
A inevitabilidade da revolução socialista
O programa da tecnocracia que floresceu no período da grande crise de 1929-32 baseava-se na premissa correta de que a economia só pode ser racionalizada através da união entre a técnica no auge da ciência e uma governação ao serviço da sociedade. Tal união é possível, mas desde que a técnica e governo se libertem da escravidão da propriedade privada. É aqui que começa a grande tarefa revolucionária. Para libertar a técnica da conspiração dos interesses privados e colocar o governo ao serviço da sociedade, é necessário “expropriar os expropriadores”. Só uma classe poderosa, interessada na sua própria libertação e oposta aos expropriadores monopolistas, é capaz de realizar esta tarefa. Somente em uníssono com um governo proletário poderá a camada qualificada de técnicos construir uma economia verdadeiramente científica e verdadeiramente racional, ou seja, uma economia socialista.
É claro que seria melhor alcançar esse objetivo de forma pacífica, gradual e democrática. Mas uma ordem social que já não tem razão de ser nunca cede o lugar à sua sucessora sem oferecer resistência. Se, na sua época, a democracia jovem e forte se mostrou incapaz de impedir que a plutocracia se apoderasse da riqueza e do poder, será que podemos esperar que uma democracia senil e devastada seja capaz de transformar uma ordem social baseada no domínio irrestrito de sessenta famílias? A teoria e a história ensinam que uma mudança de regime social pressupõe a expressão mais elevada da luta de classes, ou seja, a revolução. Nos Estados Unidos, nem mesmo a escravidão pôde ser abolida sem uma guerra civil. “A violência é a parteira de toda a velha sociedade grávida de uma nova”. Ninguém foi capaz até agora de refutar Marx em relação a este princípio básico da sociologia da sociedade de classes. Só uma revolução socialista pode abrir caminho para o socialismo.
O marxismo no Estados Unidos
A república estado-unidense foi mais longe do que outras na esfera da técnica e da organização da produção. Não só os estado-unidenses, mas toda a humanidade construirá sobre esses alicerces. No entanto, as diversas fases do processo social numa mesma nação têm ritmos diferentes, dependendo das condições históricas específicas. Enquanto os Estados Unidos gozam de uma enorme superioridade tecnológica, o seu pensamento económico está extremamente atrasado, tanto na ala direita como na ala esquerda. John L. Lewis tem mais ou menos as mesmas opiniões que Franklin D. Roosevelt. Dada a natureza do seu papel, a função social de Lewis é incomparavelmente mais conservadora, para não dizer reacionária, do que a de Roosevelt. Em certos círculos estado-unidenses, há uma tendência para repudiar esta ou aquela teoria radical sem o menor traço de crítica científica, simplesmente declarando-a “antiamericana”. Mas onde se pode encontrar o critério para tal declaração?
O cristianismo foi importado para os Estados Unidos, tal como os logaritmos, a poesia de Shakespeare, as noções dos direitos do homem e do cidadão e outros produtos não menos importantes do pensamento humano. O marxismo encontra-se hoje na mesma categoria.
O secretário da Agricultura, Henry A. Wallace, acusou o autor destas linhas de “uma estreiteza dogmática que é tremendamente antiamericana” e contrapôs ao dogmatismo russo o espírito oportunista de Jefferson, que sabia como se dar bem com os seus oponentes. Ao que parece, nunca ocorreu ao senhor Wallace que uma política de consenso não é produto de algum espírito nacional imaterial, mas sim das condições materiais. Uma nação que se enriquece rapidamente tem reservas suficientes para conciliar partidos e classes hostis. Por outro lado, quando as contradições sociais se agravam, desaparece o terreno para compromissos. Os EUA estavam livres de “estreiteza dogmática” apenas porque tinham uma infinidade de áreas virgens, fontes inesgotáveis de riqueza natural e, ao que parece, oportunidades ilimitadas para enriquecer. Mas mesmo com essas condições, o espírito de consenso não impediu a guerra civil quando chegou a sua hora. De qualquer forma, hoje em dia, as condições materiais que constituem a base do “americanismo” são cada vez mais coisa do passado. Daí a profunda crise da ideologia tradicional estado-unidense.
Tanto nos círculos operários como nos círculos burgueses, o pensamento empírico, limitado à resolução de tarefas imediatas de vez em quando, parecia suficiente enquanto a lei do valor de Marx moldava o pensamento de todo o mundo. Mas atualmente essa lei produz os efeitos opostos. Em vez de impulsionar a economia para a frente, ela mina os seus alicerces. O pensamento eclético conciliador, com o seu apogeu filosófico, o pragmatismo, torna-se completamente inadequado, enquanto a atitude desfavorável ou desdenhosa em relação ao marxismo por ser “dogmático” é cada vez mais insubstancial, reacionária e absolutamente ridícula. Pelo contrário, foi a ideia tradicional do “americanismo” que se tornou um dogma petrificado, sem vida, que só dá origem a erros e confusão. Ao mesmo tempo, os ensinamentos económicos de Marx adquiriram uma viabilidade e perspicácia peculiares em relação aos Estados Unidos. Embora os seus fundamentos teóricos se baseiem em material internacional, predominantemente inglês, O Capital oferece uma análise do capitalismo em geral, do capitalismo puro, do capitalismo em si. Indubitavelmente, o capitalismo desenvolvido nas terras virgens e ahistóricas dos EUA é o que mais se aproxima desse modelo ideal de capitalismo.
Com exceção da presença de Wallace, os Estados Unidos não se desenvolveram economicamente de acordo com os princípios de Jefferson, mas sim com as ideias de Marx. Reconhecer isto ofende tão pouco a autoestima nacional quanto reconhecer que a América gira em torno do Sol de acordo com as leis de Newton. Quanto mais Marx é ignorado nos EUA, mais atrativos são os seus ensinamentos. O Capital oferece um diagnóstico impecável da doença e um prognóstico insubstituível. Neste sentido, a teoria de Marx está muito mais impregnada do novo “americanismo” do que as ideias de Hoover e Roosevelt, de Green e Lewis.
É verdade que nos Estados Unidos existe uma vasta e original literatura dedicada à crise da economia norte-americana. Na medida em que os economistas sérios oferecem uma descrição objetiva das tendências destrutivas do capitalismo estado-unidense, as suas investigações, deixando de lado as suas premissas teóricas, geralmente ausentes, parecem ilustrações diretas da teoria de Marx. No entanto, a tradição conservadora manifesta-se quando estes autores se empenham teimosamente em não tirar conclusões definitivas, limitando-se a previsões tristes ou a banalidades tão edificantes como "o país deve compreender", "a opinião pública deve considerar seriamente", etc. Estes livros assemelham-se a uma faca sem lâmina ou a uma bússola sem agulha.
Existiram marxistas nos Estados Unidos no passado, é verdade, mas eram de um tipo estranho, ou melhor, de três tipos estranhos. Em primeiro lugar, havia a casta de imigrantes europeus, que fizeram o que puderam mas não obtiveram resposta; em segundo lugar, grupos estado-unidenses isolados, como os de-leonistas [17], que no decorrer dos acontecimentos e em consequência dos seus próprios erros se tornaram seitas [18]; em terceiro lugar, os diletantes atraídos pela Revolução de Outubro e que simpatizavam com o marxismo como uma teoria exótica que pouco tinha a ver com os Estados Unidos. O seu tempo já passou. Agora amanhece uma nova era de um movimento de classe independente orientado para o proletariado e, ao mesmo tempo, genuinamente marxista. Nisto também os Estados Unidos alcançarão a Europa em poucos saltos e a deixarão para trás. A técnica e a estrutura social progressistas preparam o caminho na esfera da doutrina. Os melhores teóricos do marxismo surgirão em solo americano. Marx será o mentor dos trabalhadores estado-unidenses avançados. Para eles, esta exposição resumida do primeiro volume [d’O Capital] será apenas um primeiro passo em direção ao Marx completo.
O modelo ideal de capitalismo
Na época em que o primeiro volume d’O Capital foi publicado, o domínio mundial da burguesia britânica ainda não tinha rival. As leis abstratas da economia mercantil encontraram naturalmente a sua plena encarnação, ou seja, a menos dependente das influências do passado, no país onde o capitalismo tinha atingido o seu maior desenvolvimento. Ao basear a sua análise principalmente na Inglaterra, Marx não tinha em mente apenas este país, mas todo o mundo capitalista. Ele utilizou a Inglaterra da sua época como o melhor modelo contemporâneo de capitalismo.
A hegemonia britânica é agora apenas uma lembrança. As vantagens da primogenitura capitalista tornaram-se desvantagens. A estrutura técnica e económica da Inglaterra tornou-se obsoleta. A sua posição mundial depende mais do império colonial, herança do passado, do que do seu potencial económico ativo. A propósito, isto explica a caridade cristã de Chamberlain para com o gangsterismo internacional dos fascistas, que tanto surpreendeu a todos. [19] A burguesia inglesa não pode deixar de perceber que a sua decadência económica se tornou completamente incompatível com a sua posição no mundo e que uma nova guerra ameaça o colapso do Império Britânico. A base económica do "pacifismo" francês é essencialmente semelhante.
A Alemanha, pelo contrário, aproveitou as vantagens do atraso histórico na sua rápida ascensão capitalista, armando-se com a tecnologia mais avançada da Europa. Com uma base nacional limitada e escassez de recursos naturais, o dinâmico capitalismo alemão tornou-se necessariamente o fator mais explosivo do chamado equilíbrio entre as potências mundiais. A ideologia epiléptica de Hitler é apenas o reflexo da epilepsia do capitalismo alemão.
Além das inúmeras e inestimáveis vantagens do seu caráter histórico, o desenvolvimento dos Estados Unidos beneficiou da preeminência de um território imensamente maior e de uma riqueza natural incomparavelmente superior à da Alemanha. Tendo superado consideravelmente a Grã-Bretanha, no início do século atual a república estado-unidense ergueu-se como bastião da burguesia mundial. Todas as potencialidades do capitalismo encontraram ali a sua máxima expressão. Em nenhum outro lugar do planeta a burguesia pode obter maiores sucessos do que na república do dólar, que se tornou o modelo mais perfeito de capitalismo do século XX.
Na nossa modesta introdução, recorremos à experiência económica e política dos Estados Unidos pelas mesmas razões que levaram Marx a basear a sua exposição nas estatísticas inglesas, nos relatórios parlamentares ingleses, nos livros azuis [20] ingleses, etc. Não é necessário acrescentar que não seria difícil citar factos e números análogos de qualquer outro país capitalista. Mas eles não acrescentariam nada de essencial. As conclusões continuariam a ser as mesmas; apenas os exemplos seriam menos chamativos.
A política económica da Frente Popular francesa era, como observou perspicazmente um dos seus financiadores, uma adaptação do New Deal "para liliputianos”. É muito óbvio que, numa análise teórica, é muito melhor lidar com magnitudes ciclópicas do que com magnitudes liliputianas. A própria imensidão da experiência de Roosevelt mostra-nos que só um milagre pode salvar o sistema capitalista mundial. Mas acontece que o desenvolvimento da produção capitalista pôs fim aos milagres. Abundam os encantamentos e as orações, mas os milagres não aparecem. No entanto, é evidente que, se o capitalismo rejuvenescesse milagrosamente, tal milagre só poderia ocorrer nos Estados Unidos. Mas esse rejuvenescimento não ocorreu. E o que os ciclopes não conseguem, muito menos os liliputianos conseguirão. Estabelecer as bases desta conclusão simples é o objetivo da nossa excursão ao campo da economia estado-unidense.
Metrópolis e colónias
“O país mais desenvolvido industrialmente — escreveu Marx no prefácio da primeira edição d’O Capital — mostra ao menos desenvolvido a imagem do seu próprio futuro”. Este pensamento não pode ser interpretado literalmente em nenhuma circunstância. O crescimento das forças produtivas e o aprofundamento das contradições sociais são, sem dúvida, o destino de todos os países que seguiram o caminho do desenvolvimento burguês. No entanto, a desproporção nos ritmos e padrões, que atravessa todo o desenvolvimento da humanidade e tem razões tanto históricas como naturais, não só se torna especialmente aguda sob o capitalismo, como também deu origem à complexa interdependência de subordinação, exploração e opressão entre países de diferentes tipos económicos.
Apenas uma minoria de países passou por esse desenvolvimento lógico e sistemático, analisado em detalhe por Marx, desde o trabalho artesanal à manufatura e desta à fábrica. O capital comercial, industrial e financeiro invadiu os países atrasados a partir do exterior, destruindo em parte as formas primitivas da economia nativa e submetendo-os parcialmente ao sistema industrial e bancário do Ocidente. Sob o chicote do imperialismo, as colónias e semicolónias foram obrigadas a ignorar as etapas intermediárias, permanecendo, no entanto, artificialmente presas a um nível ou outro. O desenvolvimento da Índia não duplicou o desenvolvimento da Inglaterra; foi apenas um complemento a este. No entanto, para compreender o tipo combinado de desenvolvimento dos países atrasados e dependentes, como a Índia, é necessário ter sempre em mente o esquema clássico que Marx derivou do desenvolvimento da Inglaterra. A teoria do valor do trabalho orienta igualmente os cálculos dos especuladores da City de Londres e as trocas de moeda nos cantos mais remotos de Hyderabad [21], exceto que, neste caso, ela assume formas mais simples e menos astutas.
A desproporção no desenvolvimento trouxe benefícios tremendos para os países avançados, os quais, embora em graus diversos, continuaram a desenvolver-se às custas dos atrasados, explorando-os, colonizando-os ou, pelo menos, tornando-lhes impossível figurar entre a aristocracia capitalista. As fortunas da Espanha, Holanda, Inglaterra ou França foram obtidas não apenas com a mais-valia do seu próprio proletariado, não apenas esmagando a sua pequena-burguesia, mas também através da pilhagem sistemática das suas possessões ultramarinas. A exploração de classes foi complementada, e o seu potencial aumentado, com a exploração de nações. A burguesia das metrópoles foi capaz de garantir ao seu próprio proletariado, especialmente às camadas superiores, uma posição privilegiada, financiando-a com parte dos superlucros obtidos nas colónias. Sem isso, qualquer tipo de regime democrático estável teria sido completamente impossível. Na sua manifestação mais desenvolvida, a democracia burguesa tornou-se uma forma de governo acessível apenas às nações mais aristocráticas e mais exploradoras, e continua a sê-lo. A antiga democracia baseava-se na escravatura; a democracia imperialista baseia-se na pilhagem das colónias.
Os Estados Unidos, que formalmente quase não têm colónias, são, no entanto, a nação mais privilegiada da história. Imigrantes ativos vindos da Europa tomaram posse de um continente extremamente rico, exterminaram a população nativa, apropriaram-se da melhor parte do México e embolsaram a maior parte da riqueza mundial. Os depósitos de gordura assim acumulados continuam a ser úteis, mesmo agora, na era da decadência, para lubrificar as engrenagens e as rodas da democracia.
Tanto a experiência histórica recente como a análise teórica atestam que o grau de desenvolvimento de uma democracia e a sua estabilidade são inversamente proporcionais à tensão das contradições de classe. Nos países capitalistas menos privilegiados (Rússia, por um lado; Alemanha, Itália e similares, por outro), que foram incapazes de gerar uma aristocracia operária numerosa e estável, a democracia nunca se desenvolveu em toda a sua extensão e sucumbiu à ditadura com relativa facilidade. No entanto, a paralisia progressiva do capitalismo está a preparar o mesmo destino para as democracias das nações mais ricas e privilegiadas; a única diferença são as datas. A deterioração incontrolável das condições de vida dos trabalhadores torna cada vez menos possível para a burguesia conceder às massas o direito de participar na vida política, mesmo dentro do quadro limitado do parlamentarismo burguês. Qualquer outra explicação para o processo manifesto de substituição da democracia pelo fascismo é uma falsificação idealista da realidade das coisas, seja engano ou autoengano.
Ao mesmo tempo que destrói a democracia nas antigas metrópoles do capital, o imperialismo impede o avanço da democracia nos países atrasados. O facto de, na nova era, nenhuma das colónias ou semicolónias ter consumado a sua revolução democrática — sobretudo no domínio das relações agrárias — deve-se inteiramente ao imperialismo, que se tornou o principal obstáculo ao progresso económico e político. Explorando a riqueza natural dos países atrasados e restringindo deliberadamente o seu desenvolvimento industrial independente, os monopolistas e os seus governos dão, ao mesmo tempo, apoio financeiro, político e militar aos grupos semifeudais de exploradores nativos mais reacionários e parasitas. A barbárie agrária artificialmente preservada é a praga mais sinistra da economia mundial contemporânea. A luta dos povos coloniais pela sua libertação, saltando as etapas intermediárias, transforma-se forçosamente numa luta contra o imperialismo, alinhando-se assim com a luta do proletariado das metrópoles. Por sua vez, as revoltas e as guerras coloniais abalam mais do que nunca os alicerces do mundo capitalista, tornando menos possível do que nunca o milagre da sua regeneração.
A economia mundial planificada
O capitalismo alcançou o duplo mérito histórico de ter levado a tecnologia a um alto nível e de ter ligado economicamente todas as partes do mundo, proporcionando assim os pré-requisitos materiais para a utilização sistemática de todos os recursos do nosso planeta. No entanto, o capitalismo não está em condições de realizar esta tarefa urgente. A base da sua expansão continua a ser os Estados nacionais, com as suas alfândegas e os seus exércitos. No entanto, as forças produtivas há muito ultrapassaram as fronteiras do Estado nacional, transformando assim o que antes era um fator histórico progressista numa restrição insuportável. As guerras imperialistas não são mais do que explosões das forças produtivas contra as fronteiras nacionais, que se tornaram demasiado limitantes para elas. O programa da chamada Autarquia [auto-suficiência económica] não tem nada que ver com o regresso a uma economia auto-suficiente e limitada. Parece que estão a ser preparadas as bases nacionais para uma nova guerra.
Após a assinatura do Tratado de Versalhes, pensava-se em geral que o globo terrestre tinha ficado bem dividido. Mas os acontecimentos mais recentes serviram para nos lembrar que ainda existem terras virgens ou pouco exploradas no nosso planeta. A Itália escravizou a Abissínia [22] e invadiu a Albânia. O Japão está a tentar tomar a China. Cansada de esperar pela devolução de suas antigas possessões, a Alemanha transformou a Checoslováquia numa colónia. O destino da península balcânica está em jogo. Os Estados Unidos estão alarmados com as incursões de "intrusos" na América Latina. A luta pelas colónias continua a ser parte integrante da política do capitalismo imperialista. Por mais que o mundo se divida, o processo nunca termina, mas, uma e outra vez, coloca-se em pauta a questão de uma nova repartição, de acordo com uma nova correlação de forças entre as potências imperialistas. Esta é a verdadeira razão dos rearmamentos, das convulsões diplomáticas e dos alinhamentos bélicos atuais.
Todas as tentativas de apresentar a guerra iminente como um choque entre a democracia e o fascismo pertencem ao reino da charlatanice ou da estupidez. As formas políticas mudam, mas os apetites capitalistas permanecem. Se amanhã fosse estabelecido um regime fascista em cada lado do Canal da Mancha — e quase ninguém ousaria negar tal possibilidade —, os ditadores de Paris e Londres seriam tão incapazes de renunciar às suas possessões coloniais quanto Mussolini e Hitler de renunciar às suas exigências a esse respeito. A luta furiosa e desesperada por uma nova divisão do mundo é uma consequência inevitável da crise mortal do sistema capitalista.
Reformas parciais e remendos não servirão de nada. O desenvolvimento histórico atingiu uma daquelas etapas decisivas em que somente a intervenção direta das massas é capaz de eliminar os obstáculos reacionários e estabelecer as bases de um novo regime. A abolição da propriedade privada dos meios de produção é o primeiro pré-requisito para a economia planificada, ou seja, para introduzir a razão na esfera das relações humanas, primeiro à escala nacional e, finalmente, à escala mundial. A revolução socialista, uma vez iniciada, espalhar-se-á de um país para outro com uma força imensamente maior do que a que hoje espalha o fascismo. Com o exemplo e a ajuda dos países avançados, as nações atrasadas também serão arrastadas pela corrente dominante do socialismo. As barreiras alfandegárias, totalmente corroídas, cairão. As contradições que dividem a Europa e o mundo inteiro encontrarão a sua solução natural e pacífica no âmbito dos Estados Unidos Socialistas da Europa e de outras partes do mundo. A humanidade libertada elevar-se-á ao seu auge mais alto.
Coyoacan, Mexico.
18 de Abril de 1939
Notas:
[1] O resumo do primeiro volume d'O Capital — a base de todo o sistema económico de Marx — foi feito por Otto Rühle com uma profunda compreensão da sua tarefa. Ele eliminou primeiro as ilustrações e os exemplos antiquados, as citações que hoje têm apenas interesse histórico, as polémicas com escritores agora esquecidos e, finalmente, numerosos documentos (atas parlamentares, relatórios de inspeções de fábricas e similares) que, apesar da sua importância para a compreensão de uma determinada época, não fazem sentido numa exposição concisa cujos objetivos são mais teóricos do que históricos. Ao mesmo tempo, o Sr. Rühle teve muito cuidado em preservar a continuidade no desenvolvimento da análise científica e a unidade da exposição. Acreditamos não terem sido infragidas em nenhum caso as deduções lógicas e as transições dialéticas do pensamento. Por estas razões, este resumo merece uma leitura atenta e cuidadosa. Para ajudar o leitor, Otto Rühle acrescentou ao texto títulos marginais sucintos. (Nota de Trotsky)
[2] A concorrência como influência restritiva — lamenta o ex-procurador-geral dos Estados Unidos Homer S. Cummings — é gradualmente substituída e, em grande medida, só subsiste "como uma pálida lembrança das condições que um dia existiram". (Nota de Trotsky)
[3] Franklin Delano Roosevelt havia iniciado o seu mandato presidencial em março de 1933, ou seja, seis anos antes de Trotsky escrever este texto.
[4] Em fevereiro de 1937, uma comissão do Senado verificou que, durante os vinte anos anteriores, as decisões de doze das grandes corporações tinham sido equivalentes às da maior parte da indústria estado-unidense. O número de presidentes dessas corporações é quase o mesmo que o número de membros do gabinete do presidente dos Estados Unidos, o ramo executivo do governo republicano. Mas esses presidentes são imensamente mais poderosos do que os membros do gabinete. (Nota de Trotsky)
[5] Nome dado à Primeira Guerra Mundial antes do início da Segunda.
[6] A Guerra da Secessão, também conhecida como Guerra Civil Americana, eclodiu em 1861. Alexis de Tocqueville faleceu em 1859.
[7] New Deal ("novo pacto"): nome dado ao conjunto de medidas económicas e laborais promovidas em 1933 por Roosevelt para enfrentar a crise do capitalismo iniciada em 1929. Os seus eixos fundamentais eram a ajuda estatal aos grandes monopólios e um pacto social com os sindicatos para frear a mobilização da classe trabalhadora. Os estalinistas apoiaram-no com entusiasmo.
[8] O escritor estado-unidense Ferdinand Lundberg, que, com toda a sua escrupulosidade académica, é um economista bastante conservador, escreveu no seu livro, que causou comoção: "Os Estados Unidos são atualmente propriedade e domínio de sessenta das famílias mais ricas, apoiadas por não mais de noventa famílias de riqueza menor". A isso poderia acrescentar-se uma terceira fila de talvez outras trezentas e cinquenta famílias com rendimentos superiores a cem mil dólares anuais. A posição predominante corresponde ao primeiro grupo de sessenta famílias, que dominam não só o mercado, mas também todos os mecanismos do governo. Elas são o verdadeiro governo, "o governo do dinheiro numa democracia do dólar". (Nota de Trotsky)
[9] Alessandro di Cagliostro e Giacomo Casanova foram dois bons vivants italianos do século XVIII, o segundo famoso pelo seu poder de sedução.
[10] Os fascistas italianos usavam uniforme com camisa preta.
[11] Jean Jaurès (1859-1914): líder da ala reformista do socialismo francês. Assassinado por um fascista na véspera do início da Primeira Guerra Mundial.
[12] Léon Blum (1872-1950): líder socialista defensor da coligação com a burguesia. Primeiro-ministro da Frente Popular francesa em 1936.
[13] Todos foram presidentes dos Estados Unidos.
[14] Herbert C. Hoover (1874-1964): Presidente dos EUA entre março de 1929 e março de 1933.
[15] Trotsky escreveu aqui “confusion worse confounded”, expressão retirada da obra O Paraíso Perdido, do poeta inglês do século XVII John Milton. Um pleonasmo é o uso de uma ou mais palavras desnecessárias para que uma frase tenha sentido, mas que acrescentam expressividade.
[16] "Até ao infinito".
[17] Seguidores de Daniel de León (1852-1914), um líder marxista de origem sefardita nascido na colónia holandesa de Curaçao e emigrado para os EUA aos 20 anos, onde ingressou no Partido Trabalhista Socialista (SLPA). Firme opositor do sindicalismo reformista, participou na fundação dos Industrial Workers of the World.
[18] Na terminologia marxista, uma seita é uma organização incapaz de se conectar com as massas.
[19] Neville Chamberlain (1869-1940): primeiro-ministro conservador britânico entre 1937 e 1940. Manteve uma política de conciliação com os nazis, aceitando, na conferência de Berlim de 1938, a anexação pela Alemanha dos Sudetos checos.
[20] Anuários com dados e informações. O termo deve-se às capas de veludo azul que cobriam os usados pelo Parlamento inglês no século XVI.
[21] Cidade na Índia.
[22] Nome dado pelo regime de Mussolini à Etiópia após invadir o país em 1935.