Em setembro de 2019, uma jovem mulher viu o seu direito de acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez efetivamente barrado. No Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Alentejo Central, o seu médico de família recusou-se a realizar o procedimento, apesar da gestação se encontrar dentro do limite legal estabelecido, alegando objeção de consciência. Encaminhada para o Hospital de Portalegre, foi mais uma vez recusada, em virtude da instituição não realizar a interrupção voluntária da gravidez (IVG) desde finais de 2006. Residente de Estremoz, a jovem foi obrigada a viajar 147 km até ao Hospital de Abrantes. Este caso é representativo de um problema invisível e profundamente inquietante: regiões extensíssimas do solo português, como o Alto Alentejo, não disponibilizam às mulheres os seus direitos consagrados. Em vez disso, oferecem muitas vezes o estigma e a humilhação por parte de profissionais de saúde e da burocracia hospitalar.

Antes da despenalização, em fevereiro de 2007, Portugal era um dos países europeus com legislações mais restritivas em matéria de aborto. Consequência de uma lei conservadora e profundamente violenta, entre 2001 e 2007, 14 mulheres morreram em abortos clandestinos, sendo que 20.000 a 40.000 procedimentos eram realizados todos os anos.

Na sequência da vitória do “Sim”, foi despenalizada a IVG, estabelecendo que esta não seria punível desde que fosse realizada por opção da mulher nas primeiras 10 semanas de gestação. Foi também instituída a obrigatoriedade de um período de reflexão “não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta”. Esta formulação não é por acaso — é justamente a escolha consciente de um período temporal vago, limitado apenas por um intervalo mínimo, que veio permitir abusos burocráticos e atrasos fabricados.

2020: um ano de luta pelos direitos reprodutivos

O último ano foi, para o movimento feminista internacional, marcado pelos levantamentos e movimentações pelos direitos reprodutivos das mulheres em todo o mundo.

As lutas da classe trabalhadora na América Latina, aliadas à defesa intransigente e profundamente combativa levada a cabo pelas mulheres na Polónia, mostram um padrão de luta internacional que reage à escalada da extrema-direita e das forças reacionárias dos últimos anos e à violência atroz que estas representam para toda a classe trabalhadora, e sobretudo para as mulheres.

Já em 2018, depois de longos anos de luta e de demonstrações de rua massivas, as mulheres irlandesas alcançaram uma importante vitória: o aborto livre, seguro e gratuito até às 14 semanas. Tratou-se de um poderoso golpe contra a oligarquia da Igreja Católica.

Também na Polónia a Igreja assumiu e assume um importante papel enquanto agente de repressão. No final de outubro do ano passado, o Tribunal Constitucional, ministrado por juízes ligados ao executivo ultrarreacionário de Kaczyński, liberou uma decisão que considera inconstitucional o aborto em caso de malformação ou doença irreversível do feto. Num país onde essa foi a instância para 98% dos abortos realizados legalmente no ano de 2019, esta decisão representa um bloqueio quase total ao acesso ao aborto legal. Esta violenta investida da direita teve como resposta um colossal movimento de massas. Durante meses, várias cidades polacas foram tomadas por protestos quase diários, numa das mais inspiradoras batalhas da luta das mulheres e dos trabalhadores nos últimos anos.

Mais recentemente, a vitória histórica conquistada em dezembro do ano passado, na Argentina, depois de longos anos de protestos, inspirou uma onda de solidariedade que rapidamente se espalhou por toda a América Latina. A norma aprovada pela Câmara dos Deputados que regulamentou o aborto gratuito até à 14ª semana de gestação e estabeleceu o prazo máximo de 10 dias entre a solicitação da interrupção da gravidez e a sua realização, foi posteriormente confirmada pelo Senado a 29 de dezembro e com ela o movimento Será Ley foi vitorioso.

As 10 semanas portuguesas são vergonhosamente insuficientes

A esquerda parlamentar portuguesa parece ter abandonado por completo esta bandeira. Nos seus programas, nos seus discursos, nos seus cartazes e nas suas reivindicações, a extensão do prazo para o aborto é um fantasma de outros tempos. A esquerda celebra o dia da despenalização do aborto em Portugal, 11 de Fevereiro, mas ignora o Dia Internacional do Aborto Seguro, 28 de setembro, como se já não houvesse razão para lutar.

Por parte da Esquerda Revolucionária e da Livres e Combativas, recusamos a narrativa de que “está tudo feito”. O acesso ao aborto em Portugal é uma experiência frequentemente violenta, humilhante e limitada a um número arbitrário de dias que não garante os direitos reprodutivos e o controlo do próprio corpo às mulheres. As 10 semanas representam um período vergonhosamente restritivo e conservador que anula em muitos casos o direito real ao aborto em Portugal.

A maioria das mulheres descobre que está grávida entre as 6 e as 8 semanas de gestação, e a grande maioria das interrupções ocorrem antes das 14 semanas. Mesmo em países como o Canadá, onde a lei permite o acesso à IVG até às 24 semanas, a maioria das intervenções ocorre até às 12 semanas de gestação. Prolongar o prazo não aumenta sequer o número de abortos tardios. Portanto, o que está em causa é uma limitação moralista que tem como único efeito prático retirar direitos reprodutivos.

Mais ainda, o prazo atual não diminui o número de abortos, mas diminui a segurança das mulheres que abortam, porque causa a continuação de abortos clandestinos. A diferença entre a lei portuguesa e a lei espanhola é de apenas quatro semanas. Ainda assim, cerca de 500 mulheres vão a Espanha todos os anos para aceder à IVG. Ora, sabemos que as mulheres da classe trabalhadora não têm a opção de viajar para Espanha ou para qualquer outro país europeu para aceder a uma intervenção segura quando descobrem, como tão frequentemente acontece, que estão grávidas fora do limite legal português. Para nós, sobra apenas o aborto clandestino, a violência atroz que este representa, o perigo de morte ou de uma fertilidade comprometida para o resto da vida.

A pandemia tornou o aborto ainda mais injusto e difícil

A luta pela extensão do prazo do aborto em Portugal é uma luta de toda a classe trabalhadora. O Sistema Nacional de Saúde é atualmente incapaz de fazer frente às necessidades de centenas de mulheres todos os anos, consequência do subfinanciamento crónico, da falta de profissionais e de uma lei que permite a profissionais de saúde violar os direitos das mulheres.

A tudo isto veio juntar-se a crise pandémica. Agora que estão liberados os primeiros dados, sabemos que a pandemia da covid-19 já causou pelo menos 1,4 milhões de gestações indesejadas em todo o mundo. Milhões de mulheres e meninas ficaram sem acesso a contracepção. Também em Portugal a crise pandémica atrasou os processos de acesso ao aborto que, logo para começar, nunca foram fáceis ou igualitariamente distribuídos — mulheres pobres do interior vêem-se frequentemente obrigadas a viajar aos centros urbanos para abortar, muitas vezes com grandes custos psicológicos associados à solidão e à violência da experiência. A objeção de consciência permite que regiões inteiras do país, como o Alto Alentejo, não disponham de um único estabelecimento de saúde onde a IVG seja disponibilizada.

O período de reflexão obrigatório, além de infantilizar as mulheres, funciona como uma poderosa arma burocrática que permite a criação de atrasos artificiais. O período de semanas que frequentemente separa a primeira da segunda consulta permite ultrapassar o limite legal das 10 semanas e impedir o acesso à interrupção da gravidez. O Estado coloca desta maneira as ferramentas para negar o direito ao aborto à disposição de todos os profissionais de saúde e burocratas do Estado que se opuserem a este direito.

Defendemos medidas para reduzir o número de abortos, sim, mas não porque os consideramos pecado, senão porque o aborto é um procedimento médico com riscos, psicologicamente difícil e que nenhuma mulher opta por fazer de ânimo leve. O que é necessário para reduzir o número de mulheres que passa pela experiência de abortar é o que o Estado e os seus sucessivos governos se recusam a fazer: investir massivamente num sistema de saúde público e gratuito com serviços de planificação familiar e num sistema de educação igualmente público e gratuito que garanta educação sexual inclusiva para todos e eduque contra todas as formas de violência machista. A limitação do direito ao aborto, tal como existe agora, serve apenas para colocar as vidas de mais meninas e mulheres em risco ou para forçá-las à maternidade indesejada e à dependência económica.

É por isso que defendemos a extensão do prazo legal para o aborto livre, seguro e gratuito até às 24 semanas, sem quaisquer entraves. Fazêmo-lo porque defendemos o total controlo reprodutivo das mulheres e dos homens trans sobre o seu próprio corpo. Afinal, é a classe trabalhadora quem mais sofre com a restrição das 10 semanas, pois são as mulheres trabalhadoras que não têm outra escolha senão o aborto clandestino ou uma gravidez indesejada. Somos nós que arriscamos as nossas vidas por falta de recursos, exploradas pelo sistema capitalista que nos mata.

A liberdade da mulher de exercer total controlo sobre o seu próprio corpo não pode ser limitada em nome de um feto. A esquerda e as organizações feministas precisam de abandonar completamente o moralismo, de parar de adaptar-se aos preconceitos das camadas mais reacionárias e atrasadas. Defender — como acontece tantas vezes até mesmo entre a esquerda — que a lei do aborto deve respeitar princípios morais arbitrários sobre o desenvolvimento dos órgãos ou o número de células mais ou menos desenvolvidas do feto é inadmissível. A esquerda e o movimento das mulheres têm de basear o seu programa na erradicação de toda a opressão machista. Em relação ao aborto, isto significa lutar pelo direito de todas as mulheres a ter controlo sobre os seus próprios corpos. É isto que significa a luta pelo direito ao aborto até às 24 semanas.

24 semanas já! Pelo fim do período de reflexão!

O movimento feminista em Portugal cresce, fortemente impulsionado pelos movimentos internacionais e por uma crise sem precedentes. Este ano, pela primeira vez, o caderno reivindicativo da Rede 8 de Março incluiu a reivindicação pela extensão do prazo da IVG até às 24 semanas de gestação, sem restrições, e pelo fim do período de reflexão obrigatório.

Internacionalmente, a luta pelo direito ao aborto e todo o movimento de libertação da mulher está na linha da frente da luta contra o capitalismo. A organização de uma Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, em luta pelas 24 semanas e por um SNS capaz de fornecer a todas as mulheres em Portugal o acesso não só à interrupção da gravidez, mas também a contraceptivos e serviços de planificação familiar gratuitos, é um importante passo adiante.

Para fazer frente ao entrave que a restrição das 10 semanas representa e para alcançar o acesso total ao aborto, é necessária a luta organizada das mulheres da classe trabalhadora, em volta de uma Campanha Nacional. Há que mobilizar massivamente as mulheres, os trabalhadores e a juventude para a ação nas ruas, em luta contra o sistema que assassina por todo o mundo milhares de mulheres todos os anos, vítimas de abortos clandestinos e insalubres. Apenas a unidade da classe trabalhadora, sob um programa socialista que parta das necessidades da nossa classe e entenda devidamente as necessidades da mulher trabalhadora nos permitirá construir um mundo em que mais nenhuma de nós tenha de morrer em vão.

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