No dia 2 de Fevereiro deste ano, foram apresentadas no parlamento duas propostas de alteração da lei da nacionalidade. Uma do PSD e uma do Bloco de Esquerda (BE). A proposta do PSD procurava dar a nacionalidade portuguesa a netos de emigrantes portugueses, mesmo que não falassem a língua, trabalhassem ou residissem em Portugal. Esta proposta segue, e visa ampliar, a chamada lógica do antigo Jus Sanguinis, ou direito de sangue, que determina que a nacionalidade de uma pessoa depende dos seus antepassados e laços familiares. Já a proposta do BE visava ampliar a Jus Soli, dando a nacionalidade a todos aqueles que nascem em Portugal.

Jus Sanguinis vs Jus Soli

A origem da discussão sobre a nacionalidade vem do desenvolvimento do Estado nacional. O Estado nacional moderno desenvolve-se com a ascensão da burguesia e do capitalismo como modo de produção predominante. O capitalismo precisava de criar um mercado e para tal precisava de acabar com as barreiras impostas pelo feudalismo como a divisão geográfica em feudos descontinuados com portagens, as barreiras linguísticas e o obscurantismo religioso. O Estado nacional foi, portanto, a principal ferramenta da burguesia para unificar o território e a economia nacional, uma unificação que englobava a criação de uma língua nacional, uma moeda, uma história nacional, medidas uniformes de distância, peso, etc.

Na maioria dos países europeus este processo ocorre no século XIX. Veja-se a independência da Bélgica e da Grécia nos anos 1830, a unificação da Itália e da Alemanha por volta de 1870. Este Estado é governado pela lei burguesa, que determina o indivíduo — o cidadão — como sujeito jurídico, que tem um estatuto de igualdade individual perante a lei. Internamente, vários factores delimitavam os direitos deste cidadão: nomeadamente a questão de gênero e de propriedade. No século XIX por exemplo, era comum que mulheres e trabalhadores por conta de outrem não pudessem votar — considerava-se a sua dependência um impedimento à acção como cidadão livre e racional. Externamente, a cidadania burguesa é delimitada pela nacionalidade.

Duas componentes ideológicas acompanham as revoluções liberais e o processo de estabelecimento do Estado burguês: o nacionalismo e o republicanismo. O primeiro visa legitimar a unidade da nação na base da história e do mito. O segundo visa legitimar o Estado moderno pela participação política do cidadão. Na primeira componente está baseado o princípio de Jus Sanguinis. Este princípio de direito é uma forma de reacção feudal: os direitos de uma pessoa, o seu estatuto e a até a sua actividade profissional dependiam da sua família. O princípio de Jus Soli por outro lado provém de uma lógica republicana: o direito à cidadania aplica-se aos sujeitos no solo onde o direito se aplica.

A proposta do Bloco de Esquerda visa ampliar a nacionalidade com base neste princípio, ou seja, todos aqueles que nascem em Portugal devem ter plenos direitos como cidadãos portugueses. Dessa maneira quis dar uma resposta a um recorrente problema de muitos filhos de imigrantes em Portugal. Muitos desses imigrantes estão numa posição de chamada “ilegalidade”, porque a UE tem leis muito restritas quanto à migração de pessoas que não sejam cidadãos da UE. Estas leis têm um carácter de classe muito claro. Em Portugal existem duas bases para um cidadão não-Europeu requerer o direito de residência: uma pela posse de capital, a outra pelo trabalho.

Capital e Trabalho

A via do capital é razoavelmente fácil; basta “investir” entre meio milhão e um milhão de euros para receber um “visto gold” — por exemplo comprando um imóvel. Esta via de requerer a nacionalidade é cada vez mais popular, e não só em Portugal. O Estado de Malta, por exemplo, garante a residência maltesa aos investidores — na maioria Russos — que compram imobiliário ou abrem uma conta nos bancos de Malta. O Financial Times refere a 3 de fevereiro como cada vez mais bilionários Americanos compram a nacionalidade Neozelandesa como maneira de se refugiar de eventuais conflitos nos EUA, sejam eles sociais ou militares.

A via do trabalho é muito mais restrita. Quem quer pedir a residência em Portugal precisa de ter a garantia prévia de um trabalho altamente qualificado: isto quer dizer que tem de estar a fazer uma investigação académica a nível de doutoramento ou superior, ou que a empresa que o contrata precisa de comprovar que nenhum cidadão Português ou Europeu pode executar tal tarefa. É claro que a maioria das pessoas que migram para a Europa e Portugal não têm estas possibilidades. Quem sai do seu país porque não tem trabalho, vive em circunstâncias miseráveis ou foge da fome, se tem apenas mestrado, licenciatura ou, como na maior parte dos casos, nem isso, está condenado à ilegalidade quando vier viver para Portugal. Muitos destes imigrantes vivem há décadas cá, condenados ao trabalho informal sem direitos básicos, muitas vezes super-explorados. Como os pais não têm nacionalidade Portuguesa, os seus filhos que nascem e crescem em Portugal, também não a têm — e estão condenados à miséria dos seus pais. A isto, a proposta do BE visava dar uma resposta, alargando o princípio de Jus Soli: cada criança que nasce em Portugal deve ter direito à nacionalidade Portuguesa.

A esquerda e a nacionalidade

No entanto, a proposta da alteração da lei da nacionalidade feita pelo BE não conseguiu uma maioria durante a votação no parlamento nacional. O PS votou contra. Na explicação de voto o PS juntou-se ao raciocínio xenófobo do CDS que denominou a proposta do BE como “um convite à imigração ilegal e clandestina”; Pedro Delgado Alves, deputado do PS, avisou que a proposta pode “acarretar riscos significativos”, originando “migrações impulsionadas pela vontade de nascer num determinado território”. Mais surpreendente, em primeira instância, foi a ação do Partido Comunista (PCP), que se juntou à oposição ao alargamento do princípio de Jus Soli, principalmente porque no passado o partido tinha apoiado este princípio. O mesmo António Filipe que declarou que para “qualquer cidadão que nasça em Portugal, mesmo que por acidente, ter nacionalidade portuguesa originária, é ir longe demais”, quando votou contra a proposta do BE, em 2005, defendia o alargamento da Jus Soli e dizia que se “afigura injusta e inadequada a solução da lei vigente, porque ignora a realidade da imigração actualmente residente em Portugal e não contribui, em nada, para criar laços de pertença e de inserção na comunidade portuguesa de cidadãos que sempre viveram em Portugal, que não conhecem outra pátria, que têm a nossa língua como língua materna e que, para além disso, querem, efetivamente, ser portugueses.”

Felizmente o PCP corrigiu parcialmente a sua posição, com a proposta no dia três de março que visa “regularizar estrangeiros ilegais que cá trabalham ou vivem desde antes de 2015” e dar a nacionalidade portuguesa a filhos de estrangeiros residentes no país. Enquanto que esta proposta resolva muitos casos práticos de pessoas que vivem e trabalham em Portugal, não dá resposta àqueles que não conseguem trabalho, nem àqueles que vieram depois de 2015. Também não dá uma resposta fundamental sobre a abordagem da nacionalidade. Este caso do PCP reflete em parte a relação difícil que grande parte da esquerda tem com a abordagem socialista da questão nacional burguesa. Existem, no entanto, casos muito piores, como recentemente o caso da porta voz do Die Linke na Alemanha, Sarah Wagenknecht, que tenta recuperar votos do partido de extrema-direita AfD, por um discurso “rigoroso” em relação aos refugiados.

Sobre a questão nacional vale a pena relembrar o célebre debate entre Vladimir Lenin e Rosa Luxemburg. Em relação a esta questão, no contexto da revolução Russa de 1917, Lenin explicava que os socialistas devem defender o direito à soberania nacional num contexto imperialista — o direito à nacionalidade — na medida em que este é uma conquista democrática e na medida em que a nação se encontra oprimida por outras nações imperialistas. A defesa da soberania das nações oprimidas é importante na construção da unidade na luta contra o capitalismo.

É no entanto crucial manter uma perspectiva de classe nesta abordagem. Caso contrário entra-se facilmente numa lógica social-chauvinista. Esta linha chauvinista tem duas bases históricas no movimento internacional de trabalhadores: no reformismo, nomeadamente de Bernstein, que levou à votação dos créditos de guerra pelo partido social-democrata alemão em 1914, e à colaboração imperialista na primeira guerra mundial; e no estalinismo, que a partir da defesa da autodeterminação das nações por Lenin como tarefa democrática, constrói uma teoria que defende que o Estado nacional-democrático é uma etapa necessária para “preparar o socialismo”. Com esta posição legitimou as políticas de Frente Popular e outras desastrosas alianças com movimentos nacionalistas burgueses como com o Kuomintang na China.

É sobre esta base que Rosa Luxemburg discordava profundamente de Lenin. Partindo do princípio que o Estado tem um caráter burguês e o proletariado não tem nações, considerava a posição de Lenin oportunista porque abdicaria do internacionalismo proletário para obter apoio de elementos burgueses e pequeno-burgueses de nações oprimidas. Considerava que o princípio de autodeterminação nacional ia entregar o poder às classes burguesas e pequeno-burguesas locais em detrimento do proletariado – e que era uma ilusão esperar que as camadas intermédias no final se tornassem aliadas da revolução proletária mundial. Nesse sentido recusava reconhecer qualquer direito nacional.

A abordagem de Rosa Luxemburg é vista muitas vezes como esquerdista e infantil, porque aplica uma posição teórica, sem ter em conta as necessidade e possibilidades práticas. A abordagem de Trotsky na Teoria da Revolução Permanente dá uma resposta a esta eterna polémica entre Rosa Luxemburg e Lenin. Reconhecendo o potencial mobilizador da defesa do direito e soberania nacional nos países coloniais e neocoloniais, segundo Trotsky, num capitalismo globalizado, a burguesia periférica e dependente nunca poderá liderar este processo de emancipação nacional. Tendo em conta a fraqueza desta classe e a sua dependência do capital estrangeiro para se manter, o processo de emancipação nacional só poderá ocorrer pela luta socialista protagonizada pela classe trabalhadora.

Socialismo e nacionalidade – para além da Jus Soli

Transportando este debate para o campo da migração e para a lei da nacionalidade, uma abordagem social-chauvinista seria a defesa de direitos sociais, sob a restrição da nacionalidade e dos direitos de cidadania. Ou seja, a nacionalidade seria defendida como um “privilégio” social duma aristocracia proletária em troca de defender “os interesses da nação” — o Estado burguês. Tal como no seu posicionamento em relação à defesa da produção nacional e do governo “patriótico e de esquerda”, o PCP tende a defender em questão de lei da nacionalidade um posicionamento social-chauvinista. A posição oposta — equivalente à posição de Luxemburg — seria uma de negação da lei da nacionalidade, e a defesa unilateral da abertura de todas as fronteiras, já que a classe trabalhadora não tem pátria.

Esta posição não costuma ter em conta, nem as origens fundamentais das migrações, nem os efeitos que isto teria sobre as condições salariais dos trabalhadores em geral. Ela aborda a migração como uma liberdade individual a celebrar, fora das dinâmicas capitalistas que estão por trás dos processos migratórios. A grande maioria desses processos é fruto de alienação humana, gerada por desigualdades estruturais, económicas e imperialistas, fruto da guerra imperialista e da exploração. Nesse contexto, a migração é uma solução individual para um problema global, que tem de ser tratado como tal. Além disso, a total liberdade de circulação do trabalho, num contexto de livre mercado, seria desastroso para os trabalhadores no país recetor. Fazendo uma abordagem de classe, equivalendo àquela que Trotsky fez sobre a questão da nacionalidade, podemos defender que dentro do quadro capitalista não há uma saída emancipatória, a não ser que esta seja abordada com uma perspectiva de classe. Sem questionar o próprio capitalismo, a restrição da lei da nacionalidade é social-chauvinista, no sentido em que defende os direitos duma minoria da classe trabalhadora dum ponto de vista internacional. Sem questionar o próprio capitalismo, a abertura da lei da nacionalidade é liberal; no sentido em que ataca os direitos do trabalho em geral, criando uma espiral para o fundo.

Duma perspectiva marxista, o direito à nacionalidade só pode ser visto em conjunto com a defesa dos direitos sociais e dos salários e com a transformação da sociedade em geral. A Jus Soli, que aborda a nacionalidade duma perspectiva republicana e liberal, baseada no direito e na participação política e social dos afetados, é um ponto de partida, mas insuficiente, porque ela não traz uma resposta coletiva ao problema da migração. A nacionalidade como conceito de direitos sociais, mesmo a republicana, democrática e socialista, está baseada no direito burguês, tratando o sujeito como indivíduo. Ela só será superada com o próprio desaparecimento do Estado como tal, porque com o seu desaparecimento também desaparecerá a ideologia nacional que o legitima e delimita.

 

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