Contradições e movimento

No 1º número — no artigo “Neocolonialismo hoje” —, servindo-nos das palavras de A. Cabral, definimos colonialismo como a dominação directa de um território e sua população por meio de um poder político integrado por agentes estrangeiros ao povo dominado (forças armadas, polícia, agentes de administração). Ele é corolário do modo de produção capitalista no seu estádio mais avançado de desenvolvimento da divisão técnica, social e internacional do trabalho: o imperialismo. Tem a função dúplice de transformar os territórios dominados em fontes de matérias primas e mercados para escoamento de mercadorias, sujeita as economias coloniais às necessidades de desenvolvimento das economias metropolitanas.

Ora, uma das leis fundamentais da dialéctica pode ser formulada da seguinte forma: tudo o que existe está em perpétua transformação. O colonialismo não foi excepção, tinha contradições e, por força destas, avançava para o seu perecimento.

Entre as suas contradições fundamentais estava aquela entre a sua necessidade de desenvolver determinados sectores produtivos, assim como o aparelho administrativo que permitia suportá-los, e a sua necessidade de manter o povo dominado nos níveis mais baixos de conhecimento técnico e político. A burguesia aprendera já, com as revoluções do séc. XIX, que desenvolver a classe operária é engrossar o exército dos seus coveiros.

Cada país colonialista, com as suas condições históricas particulares, encontrou uma forma de adiar o solucionamento desta contradição.

No império português, criou-se o estatuto do indigenato. O povo dominado foi dividido em duas categorias legais: assimilados e indígenas. Os assimilados eram negros ou mestiços que, com os colonos, desfrutavam dos direitos de cidadania e acesso à educação estatal, ainda que desigualmente. Os indígenas viam os seus direitos restringidos ao mínimo no papel e tornados nada na realidade.

Se, na lei, se podia ser promovido por ser cristão, escrever e falar fluentemente o português e adoptar costumes dos colonos, mais fácil era passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um indígena no reino dos assimilados. Na década de 50, Angola tinha a maior percentagem de assimilados: 0,8%.

A construção de escolas e hospitais era rara. A força de trabalho era abundante e a sua educação correctamente entendida como desnecessária e perigosa pela burguesia. O Estado administrava essa força de trabalho, muitas vezes em regime de trabalho forçado tanto em obras públicas como ao serviço do capital.

Paralelamente, a legislação sancionava as instituições pré-capitalistas de dominação de classe. As classes dominantes autóctones, saídas das guerras de rapina e escravização possibilitadoras do tráfico negreiro, viam agora, na cooperação com o colonialismo, a única garantia do seu domínio sobre as classes trabalhadoras que exploravam.

Assim, onde o trabalho assalariado era necessário — centros urbanos —, impedia-se que o assalariado africano acedesse à educaçao ou a qualquer tipo de organização política e garantia-se que os seus salários e rendimentos eram tão baixos quanto possível (às vezes em sobre-exploração). Por outro lado, onde possível, evitava-se o assalariamento, ossificavam-se as estruturas sociais autóctones e explorava-se o trabalho mediante as classes dominantes pré-capitalistas — senhores de escravos, senhores feudais.

Mas nada quebra a lei universal do movimento perpétuo. As economias coloniais desenvolveram-se pelas próprias exigências da acumulação de capital, fazendo crescer consigo as massas exploradas, e com estas o aparelho administrativo, logo, uma camada de africanos com acesso a conhecimentos técnicos e, mais fatalmente, políticos.

Os dirigentes africanos estudaram nas universidades do coração do império para servir a administração colonial. Em Lisboa, entraram em contacto com a luta dos trabalhadores e envolveram-se com as suas organizações — entre as quais se destaca o PCP, partido que auxiliaria os movimentos de libertação durante a luta armada, organizando a saída clandestina dos seus dirigentes, combatendo a desinformação fascista e até sabotando o exército colonialista.

A luta armada

A Cotonang, belga, explorava os camponeses da Baixa de Cassange. Em Janeiro de 1961, estes entram em greve contra a cultura obrigatória do algodão, que vendiam a preços estabelecidos pela empresa. Forçados a trabalhar, sublevaram-se. A repressão não se faz tardar. O Estado respondeu com um massacre de mais de 300 vítimas mortais.

Um mês depois, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) iniciava uma guerra revolucionária.

Seguiu-se a Guiné, em 1963, sob a direcção do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), e Moçambique, em 1964, com a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).

Ainda em 61, as leis do indigenato seriam revogadas. Foi a primeira conquista. Outras concessões, e até uma proposta de “autonomia”, seriam feitas durante a década de guerra.

No ano seguinte, 1962, Portugal gastou 28,7% das suas despesas com o exército. Até 1970, esta quota subiu para 44,4%. No início da década de 70, tinham sido enviados 130 000 homens para combate. Exauria-se a classe trabalhadora com a guerra e granjeava-se o seu ódio. “Sendo a população dos Estados Unidos da América aproximadamente vinte e cinco vezes maior do que a portuguesa”, diz-nos Basil Davidson, “estas forças em África representavam um esforço por parte de Portugal equivalente a um exército norte-americano na República do Vietname de cerca de 3 250 000 homens, isto é, seis vezes mais do que as tropas americanas no Vietname no auge da guerra”.

O colonialismo foi derrotado pela exaustão. Mas, como Amílcar Cabral explicou incansavelmente, a autodeterminação exigia o controlo das forças produtivas. As pequenas-burguesias autóctones, capazes de tomar o aparelho de Estado após a independência, no entanto, estavam desligadas da produção e mantê-la-iam sob controlo das burguesias imperialistas. Era necessário organizar e educar o proletariado para a tomada do poder. A libertação era, numa palavra, o socialismo.

Ora, a Guiné-Bissaul foi onde a revolução chegou mais longe. Em 1973, recebendo armamento da URSS, o PAIGC pôs fim à superioridade aérea do exército português. Mas já antes a revolução avançava contra bombardeamentos de napalm nas chamadas zonas libertadas.

Nestas zonas foram construídos órgãos de poder de um novo tipo: escolas e hospitais geridos democraticamente pelos trabalhadores, milícias populares — i.e., o armamento dos trabalhadores, condição sine qua non para o socialismo — e um sistema de concelhos e tribunais populares coroado pela Assembleia Nacional Popular. As velhas instituições e as divisões religiosas e étnicas eram desfeitas em pó e varridas pela revolução. “Um Homem novo veio da mata, de armas na mão”.

Cada vitória dos explorados em África era uma vitória dos explorados em Portugal, enfraquecia o inimigo comum, aproximava operários e camponeses do poder em todos os países.

25 de Abril

As derrotas da burguesia portuguesa levaram-na à ruína. Em 1974, a guerra estava perdida de forma evidente, e ninguém o sabia melhor do que aqueles que tingiam com o seu sangue o campo de batalha.

Nestas circunstâncias, um grupo de capitães do exército português, querendo a paz, organiza um golpe de Estado que é frustrado no dia 16 de Março de 1974. Pouco mais de um mês depois, uma nova tentativa é bem sucedida. Foi o 25 de Abril de 1974. Haviam sido despertadas as forças profundas da História, começara a Revolução Portuguesa.

Como cada uma das revoluções derrotadas nos últimos dois séculos, esta contém em si sementes de vitória. Ela ombreia outras grandes revoluções, como a Espanhola.

A sua primeira lição é que a luta de classes não se compreende à escala nacional. A Revolução Africana foi a mãe negra da Revolução Portuguesa — o proletariado em Portugal jamais poderá esquecer o laço assim forjado entre si e as massas exploradas em África.

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